MacGyver da Mattel

Entre mágoa, mitomania ou paranoia, qual é a sua modalidade esportiva favorita?

Se o combo paranoia + mitomania fosse um esporte olímpico, Gabi Santos seria medalhista, um orgulho para o Brasil. Por favor, leia este parágrafo na voz de Galvão Bueno. Obrigada. Lá vem Gabi Santos, ela pensa que a vizinha olhou feio pra ela, a mulher dilatou a pupila, tava tentando enxergar o andar certo nos botões do elevador. Ela dá um bom dia atravessado, bom diiia. Ela estica o i (de ironia) como se a coitada merecesse um dia terrível. Ela abre a porta de casa e dá de cara com o marido que tá rindo de uma piadola qualquer no WhatsApp. Ela tem certeza de que acabou de descobrir o caso do marido com a vizinha, eles nunca nem se viram, mas na cabeça da nossa atleta estão juntos há anos. Ela manda José Ricardo à merda sem nem entrar com o corpo todo pela porta, ela dá meia-volta, desce no mesmo elevador. Encosta na guarita e pede ao porteiro o livro de ocorrências do prédio. São Paulo, 11 de junho de 2024. Hoje cedo, perto do meio-dia… Pedro como chama a vizinha nova? Kelly? Não acredito. Kelly? Bem Kelly mesmo, só podia ser Kelly. Hoje cedo, perto do meio-dia, vi Kelly do apartamento 71 arranhar um carro vermelho no estacionamento. Eu na janela da lavanderia, Kelly olhou pra cima, me mostrou o dedo do meio e gargalhou feito uma bruxa de história de criança. Aguardo providências. Ela assina com tanta força que fura a próxima página. Ela vai em direção à garagem, risca o Jeep do síndico de ponta a ponta e dá graças a Deus porque mora no bloco de trás e conseguiria ver a garagem da janela da área de serviço. Ela sente ódio do marido, que teve a pachorra de alugar um apartamento no bloco da frente pra vagabunda da amante. Agora o pilates não, o pilates tá muito caro. Ódio.

Eu tinha duas melhores amigas na infância, Gabi Santos e Carlinha. Até que um dia, Carlinha roubou a bota de cano alto da minha Barbie. E roubou assim no singular. Eu fiquei com um pé só e no outro colava uma fita crepe pintada de rosa-choque. Era perto de perfeito, várias voltas da fita, todos os detalhes reproduzidos quase que no microscópio. Quem olhasse com cuidado, capaz de achar a minha mais bonita do que a original. Eu era boa de construir de um tudo pra essa boneca, mainha me chamava de MacGyver da Mattel. Ainda assim era meio punk porque a canetinha rosa que eu tinha não chegava a ser choque e o lápis de cor não fixava muito na fita. Demandava certo esforço. Quando a boneca queria trocar de roupa precisava rasgar e jogar tudo fora, a perna ficava meio grudenta da fita crepe, um horror. Mas não era o fim do mundo, não. Porque embora a boneca quisesse trocar de roupa com frequência, ela só usava bota quando viajava pra Paris. Minha Barbie morava no Hawaii porque meu Ken era surfista, e quando sobrava dinheiro e dias de férias, ela tinha que voar pra Garanhuns pra visitar os parentes. Então Paris era uma coisa bem de vez ou outra mesmo.  

Foi Gabi Santos quem viu a bota no bolso da jaqueta de Carlinha. A gente tinha se juntado lá em casa pra brincar de Barbie num domingo. A bota sumiu e, no outro dia, Gabi Santos me chamou atrás da cantina na hora do recreio pra entregar Carlinha. Disse que falou com ela. Puxa, Carlinha, tem que devolver. Assim a gente vai desconfiar que foi tu quem levou os óculos escuros. E esse roubo doeu até mais que o da bota, sabe? O sol do Hawaii não é brincadeira. Segundo ela, Carlinha disse que tinha pegado mesmo e que não devolvia por nada, eu que me virasse. Cortei de mal. Me aperfeiçoei na bota e nos óculos alternativos, gastei altos rolos de fita crepe, até que umas semanas depois achei a botinha embaixo da cama de minha irmã. 

Carlinha não roubou a bota de cano alto da minha Barbie. Gabi Santos tinha inventado a história e culpado a bichinha com crueldade de adulto. A gente devia ter uns 9. Ela não aceitou meu pedido de cortar de bem e toda vez que eu me dava conta da menina encostadinha na última fileira da arquibancada, com a lancheira no colo, comendo sozinha a banana com leite Ninho, que levava todo dia pro recreio (a menina era eu, porque, depois da descoberta, cortei de mal com Gabi Santos também), tinha vontade de construir um tanto de bota de cano alto e óculos escuros pra Carlinha. Quantos ela quisesse. Só que do tamanho de gente, não de Barbie. Fiz as pazes com Gabi Santos (sou de Peixes), mas Carlinha (de Escorpião) nunca mais restabeleceu contato. Comigo, né? Porque naquele ano mesmo convidou Gabi Santos (adivinha, de Gêmeos) pra festa de aniversário. Naquele e nos seguintes, até daminha de 15 a danada foi.

Agora se o combo associações aleatórias + pavor de rejeição + culpa fosse um esporte olímpico, aí seria eu a medalhista, um orgulho para o Brasil. Se quiser, essa é a hora de voltar a voz de GB. Lá vem Roberta com insônia ontem de noite, ela sabe que é melhor não ficar com luz na cara, ela se desvia do fato comprovado, tira o telefone do carregador, taca luz na cara. Ela se enfia em um monte de post sem noção no Instagram. Ela lê que parece que esquenta essa semana. Ela decide que não vai ter inverno nunca mais. O mundo tá se acabando. Ela se preocupa com o mundo, olha pra gata na cama, pensa que não vai ter mais gato, que vai todo mundo morrer, inclusive as crianças, que as mortes serão horríveis. Ela chora enquanto se despede da gata, acha melhor nem ver as crianças pela última vez. Ela se pergunta: se não vai ter inverno, como ficam as semanas de moda? Sai passeando pelos desfiles de inverno de fevereiro e março, para numa bota de cano alto do desfile da Dior em Paris, lembra da Barbie, lembra de Carlinha. Ela põe na cabeça que precisa desmascarar Gabi Santos. Ela sai procurando por Carlinha no Instagram. Daria pra achar no de Gabi Santos, mas ela bloqueou Gabi Santos que bloqueou de volta na época das eleições. Passam das 5 horas quando a 37ª Carla Muniz responde dizendo que estudou no Santa Sofia de Garanhuns sim, mas que não lembra de nenhuma Roberta. Ela descreve 19 situações que começam com “eu sou aquela que” e terminam com “lembra?”. Carlinha responde que não pra elas todas. As duas param de se comunicar convencidas de que Garanhuns tinha homônimas, alunas da mesma escola, na mesma série. Tu estudava de manhã ou de tarde?, pergunta, mas ninguém responde do outro lado. Ela pede pra seguir Carlinha, Carlinha nunca aceita a solicitação. 

Já se mágoa, que não precisa nem de combo, fosse um esporte olímpico, Carlinha ganharia ouro, prata e cobre na mesma tacada. Sozinha no pódio, com as três medalhas no pescoço, cantando o hino no grito, um orgulho para o Brasil. Passou mais de 20 anos me esperando voltar pra pedir desculpas. Eu acho. Eu esperaria. Onde já se viu uma ofensa dessa se resolver com uma tentativa só. Se brincar quando lembra do meu quero cortar de mal, chora doído. A lágrima rasgando a cara. Deve ter estudado moda e só sossegou quando foi contratada pela Mattel. Na mão dela, os acessórios cada vez mais detalhadinhos. Eu não quero criança conseguindo reproduzir o que a gente faz aqui com fita crepe não, capaz dela repetir nas reuniões de produto. Será que era ela? Será que ficou comovida com as lembranças que eu soltei na conversa do Instagram? Ela lembra de tudo, não lembra? Será que olhou as fotos no meu perfil, me reconheceu menina no rostinho das minhas filhas, riu com o nome da gata? Rubia Rubens era a nossa professora da segunda série, será? A gente tomava muita bronca de Rubia Rubens. Mesmo assim, respondeu que não, não lembro. Pra que isso, Carlinha? Ou será que não lembra mesmo? Eu não tive a menor importância na vida de Carlinha. Gostava tanto de Carlinha.

Se locução de futebol fosse um esporte olímpico, eu dava medalha pro Galvão Bueno. Dava mesmo. Critique não, me deixe, foi o primeiro nome que veio na minha cabeça. E, ao contrário de você e de Carlinha, eu não me esqueço das pessoas. Feito Kelly, que lembrou muito bem lembradinho do bom diiia do elevador, que enxergava perfeitamente e viu nas câmeras de segurança o destempero de Gabi Santos. Pedro, derretido pela moradora nova, liberou o arquivo numa piscada de olhos. Uma não, várias piscadas, cílios compridos tinha Kelly. Ela foi se queixar com João Ricardo, fez que ia chorar, disse que o mundo andava mesmo tão injusto, que puxa vida, ela não tinha feito nada, nadica. Ficou de pensar se contava ou não a verdade na reunião de condomínio. Pedindo assim, João Ricardo, não tem quem negue. O arquivo tá comigo, ninguém viu ainda, falei com Pedro pra apagar antes do síndico ver. Disse que não queria prejudicar Gabi Santos, ela não deve andar bem, se percebe nas imagens. Marcou reunião pro dia seguinte com João Ricardo lá naquele cafezinho da Itacolomi, parece que o croissant de amêndoas é uma delícia. E feita a fama, deitou na cama. Na de João Ricardo, na dela, na de João Ricardo, na dela. Até na de Pedro, mas não era sempre não. Um amor, Pedro. Ao custo de uma mentirinha de nada para 34 condôminos e de um polimento no carro do síndico, deixou de pagar aluguel. Já tá há seis meses comendo croissant de amêndoas todo dia no café da manhã e acabou de ganhar uma aliancinha. De ouro. E é, ééé, é do Brasil-sil-sil.