O bom jogo

Seja por iniciativa de quem escapou de situações de vulnerabilidade e decidiu compartilhar o que conquistou com sua comunidade, seja em projetos liderados por ex-atletas consagrados, o esporte segue transformando vidas.

Tempos de Jogos Olímpicos e Paralímpicos são sempre marcados por histórias de superação. Nós nos acostumamos a conhecer a trajetória de atletas, que muitas vezes fugiram de destinos incertos para terem sua vida transformada pelo esporte. Mas eles não são os únicos impactados pela força de quadras, pistas e piscinas. Nesse jogo do bem, alguns players atuam nos bastidores, ajudando a transformar a realidade de outras pessoas.

Há diversas iniciativas esportivas que têm como meta, por exemplo, formar uma rede de proteção para crianças e adultos em situação de vulnerabilidade. É o caso de projetos como o Vida Corrida, criado por Neide Santos no Capão Redondo, em São Paulo, ou o Social Skate, desenvolvido pelo skatista Sandro Testinha, em Poá, na Grande São Paulo. Iniciativas de pequeno porte, mas gigantes em impacto nas regiões em que atuam.

“As pessoas dizem que o esporte transforma vidas. Eu falo que aqui, no Capão Redondo, o esporte salva vidas.”
Neide Santos

E existem também organizações grandes e com bastante visibilidade, como o Instituto Reação, inaugurado há 24 anos pelo judoca e medalhista olímpico Flávio Canto, que atua em 12 polos, espalhados por cinco estados – Rio de Janeiro, São Paulo, Mato Grosso, Rio Grande do Norte e Minas Gerais. Ou a Fundação Gol de Letra, do ex-camisa 10 do São Paulo, Raí, com base em São Paulo e Rio de Janeiro. Ambos apostam na conexão entre o esporte e a educação.

A seguir, contamos um pouco sobre cada um desses personagens e projetos, que há décadas transformam e salvam vidas nas periferias do Brasil afora.

Forrest Neide, a transformadora de histórias

“Eu vou falar muito sobre essa coisa do brincar, da importância do brincar, porque sempre acreditei nisso. A gente proporciona várias modalidades esportivas para que as crianças, quando chegarem à idade adulta, possam escolher uma para a vida. Eu acredito nisso, em você se encontrar, se identificar com algo.”

É assim que Neide Santos, ou Forrest Neide, como é conhecida no Capão Redondo, explica a base lúdica de seu trabalho na ONG fundada por ela em 1999 na periferia da Zona Sul de São Paulo, cujo objetivo é impactar a realidade de seu entorno. “As pessoas dizem que o esporte transforma vidas. Eu falo que aqui, no Capão Redondo, o esporte salva vidas.”

IMG 9605

Neide Santos Foto: Divulgação

Em 2024, o projeto completa 25 anos, mas essa história começa antes, em 1990, quando Neide decide correr, sozinha e de madrugada, pelas ruas do Capão. De lá, partiu para a São Silvestre e, aos poucos, outras mulheres do bairro, carentes de atividades esportivas – a única opção era um campinho de terra usado pelos homens –, pediram para se juntar a ela. Assim foi se formando organicamente o coletivo que daria origem ao Vida Corrida. “Essas mulheres acordavam de madrugada para treinar comigo, porque depois a gente tinha que trabalhar nas casas de madame. Como dizem os Racionais, a vida é diferente da ponte para cá”, lembra Neide.

Hoje a ONG atende 800 pessoas – 400 mulheres e 400 crianças e adolescentes. E quem participa do Vida Corrida não tem mais a madrugada como companhia, pois as atividades ocorrem das 8 às 16 horas, de segunda a sexta-feira, com opções que vão além do atletismo, oferecendo também acesso à cultura, à educação e ao lazer. Um exemplo da diversificação é a iniciativa Futuro nas Mãos, que atua para conduzir os jovens do projeto à faculdade. “A gente prepara esses jovens para a universidade, para fazer o Enem, para eles não precisarem mais lavar privadas”, conta. É assim que Neide salva e transforma vidas.

A manobra do bem de Sandro Testinha

São Paulo, 1999. Sandro Testinha consegue acesso a uma apresentação de skate na Fundação Casa – à época ainda chamada de Febem – no Tatuapé, bairro da capital paulista. Na unidade, marcada por diversos episódios de violência, Testinha viu pessoas que considerou parecidas com ele. “O que eu encontrei foram meninos da mesma idade e origem periférica, mas que estavam em uma situação de conflito com a lei. Meu questionamento foi: ‘Por que eu não estava lá?’

“Cheguei à conclusão de que eu não estava na Febem por causa do skate.”
Sandro Testinha

A partir daí nasceu a vontade de compartilhar com os jovens internados a cultura do esporte. Articulado com um deputado estadual, colocou de pé um programa de aulas na instituição. Mas não bastou. Testinha percebeu que trabalhar com jovens da Febem era poderoso, mas fazia mais sentido evitar que eles chegassem lá.

Assim, depois de encerrar o projeto, em 2010, ele usou o aprendizado para criar a ONG Social Skate, em 2011, em Poá, município da Grande São Paulo onde mora. Uma manobra após a outra, a ONG tem hoje projetos como o Manobra do Bem e o Movimente-se e conta com uma sede com escritório, sala de aula, espaço para atividades como RPG (Reeducação Postural Global), ginástica e oficinas de costura, entre outras atividades, como basquete, futebol americano, rúgbi e dança, além do foco em educação. 

Há ainda uma quadra para a prática de futebol, além, claro, das pistas de skate – tudo aberto diariamente para a comunidade, fora dos horários de atividades da ONG, que atende atualmente 150 crianças e jovens e 35 mulheres. Essa sede se tornou possível quando Rayssa Leal, medalhista de prata em Tóquio 2020, ganhou o prêmio International Visa Award, que premia os atletas que melhor representam o espírito olímpico e destinou a premiação de 50 mil dólares à ONG do skatista.

Falando em Olimpíada, outra frente que faz brilhar os olhos de Testinha é o Socializando, um time formado por 13 jovens assistidos em seu projeto. Ele sonha, sim, em ver algum dos jovens com quem trabalha em uma Olimpíada – mas sem perder o foco no social, a sua prioridade.

O gol de letra de Raí

Já consagrado no esporte e com uma consciência social que é latente em toda a sua família, Raí, ainda atleta profissional em 1998, inaugurou a Fundação Gol de Letra. A motivação era usar o esporte não como o fim, mas como o ponto de partida para impactar positivamente a vida de pessoas em situação de vulnerabilidade e oferecer a elas a possibilidade de uma vida mais justa e digna. O caminho era associar a prática esportiva e de lazer – fatores tão caros ao bem-estar social – à educação.

A decisão do histórico camisa 10 do São Paulo vem da crença que ele tem na força do esporte. “Sem dúvida nenhuma, o poder transformador do esporte, eu diria até mesmo revolucionário, por vezes é subutilizado, subaproveitado. Mas eu acho que os atletas, os dirigentes e todos os ligados ao esporte começaram a ter consciência da grande responsabilidade que é fazer parte desse universo, com tanta importância econômica, social, cultural e política”, afirma Raí sobre as possibilidades que se abrem a partir disso.

Rai Foto Christian Gavelle 1

Raí Foto: Christian Gavelle

Foi com a crença nesses valores, afinal, que a Gol de Letra desenvolveu seu trabalho ao longo dos últimos 25 anos, expandindo sua atuação para diversas comunidades em São Paulo e Rio de Janeiro, conectando o esporte à educação de modo indissociável como uma única ferramenta de transformação. 

Hoje, além das atividades realizadas em suas sedes, a Gol de Letra trabalha ao lado de diferentes agentes. “Temos parcerias com creches, escolas públicas, universidades e secretarias, entre outros agentes do sistema de proteção às crianças e adolescentes, contribuindo para fortalecer esse ecossistema, que coloca a infância como prioridade.”

Raí não se preocupa com que a Gol de Letra seja dona de algo exclusivo, pois a ideia é multiplicar a experiência e o método construídos, com foco em impactar cada vez mais crianças. Assim, além de ampliar sua área de cobertura, a fundação passou a atuar também como multiplicadora. “Fora nossas unidades em São Paulo e no Rio de Janeiro, onde atendemos diretamente 5 mil crianças, jovens e famílias, disseminamos a nossa metodologia para o Brasil inteiro”, conta o ex-atleta.

“Construir um mundo melhor passa, necessariamente, por oferecer oportunidades de desenvolvimento para todos. E a estratégia com o melhor custo/benefício para alcançar uma boa política de educação, saúde e bem-estar é o esporte.”
Raí

A melhor luta de Flávio Canto

Em 2003, Flávio Canto se juntou ao seu ex-treinador Geraldo Bernardes e um grupo de sócios para criar o Instituto Reação, uma organização da sociedade civil com foco em crianças e jovens em situação de vulnerabilidade social. A proposta é fazer do esporte, mais especificamente do judô – a modalidade em que ele disputou duas Olimpíadas, tendo conquistado uma medalha de bronze em Atenas 2004 –, uma ferramenta educacional e de transformação social.

Hoje com 21 anos de atuação, o instituto já recebeu mais de 20 mil alunos. “A gente tem muitas histórias de mudanças importantes na vida de muita gente. O esporte traz uma relação mais saudável com o ganhar e o perder. Você sabe lidar com frustração, reagir, aprende a ter persistência, criar metas, disciplina… E tudo o que você aprende com o esporte você leva para a vida. Então, realmente é uma escola de formação humana espetacular”, diz o judoca.

“O esporte é uma escola de formação humana espetacular.”
Flávio Canto

O instituto aplica essa visão no projeto Caminho Potente, que se baseia em dois programas estruturantes: Reação Futuro e Reação Olímpico. E ainda conta com três programas transversais: Bolsas de Estudo, Conecta e Reação com Elas. A ideia é acompanhar as crianças desde os 4 anos até o momento de inserção no mercado de trabalho. “Temos uma matriz pedagógica que vai se transformando conforme a criança vai ficando mais velha”, explica Flávio. 

E, claro, a organização também atua ao identificar atletas que tenham talento para fazer do judô uma profissão, entre os mais de 4,5 mil, dos 12 polos do Reação. “Tem um grupo que vai para o programa Bolsas de Estudo, com escola e universidades. E tem outro que vai para o programa Olímpico. O Reação hoje é o número um do Brasil no ranking geral e pega de sub-13, sub-15, sub-18, sub-21 e adulto”, conta. “E tem o programa Reação com Elas, que é voltado para as mães, com um grupo de atenção social que vai acompanhando esse crescimento sem perder o foco em quem mais precisa. Eles identificam alunos com algum tipo de vulnerabilidade importante, seja social, seja de violência doméstica, e fazem um trabalho mais personalizado para os alunos que precisam de mais suporte. A gente segue firme, transformando e levando cada vez mais repertório e qualidade para essa galera.”