Foi em Paris, em 1900, que as seleções mundiais do futebol masculino fizeram a sua estreia nos Jogos Olímpicos. Oito anos depois, a modalidade entrou de vez para o programa de esportes, na edição sediada em Londres, e a partir daí esteve presente em todas as Olímpiadas seguintes, exceto na de 1932, em Los Angeles. Demorou, porém, quase um século para que as jogadoras do futebol feminino também disputassem o campeonato.
Para elas, a estreia só veio em 1996, na cidade de Atlanta, EUA. Entre reivindicações de todos os lados, o passo, que já foi dado tarde, possuía acordos salariais bastante desiguais aos dos homens. Meses antes do evento, algumas das maiores estrelas da seleção feminina dos Estados Unidos, incluindo Michelle Akers, Joy Fawcett e Julie Foudy, chegaram a boicotar os treinos como uma forma de protesto contra o machismo da federação de futebol do país. O ato, por parte de um grupo de atletas que ainda travava uma batalha para ser levada a sério, era tão corajoso quanto arriscado.
Quase 30 anos depois, nem tanto mudou. Progressos existem, é claro, mas, nos campos e fora deles, a equidade ainda parece um anseio distante. E a moda faz desse problema. Repare, por exemplo, no pronome comum entre as últimas interações da indústria com o futebol.
Em novembro de 2021, a Burberry apresentou uma campanha filantrópica com o atacante inglês Marcus Rashford, que desde então se tornou um parceiro fiel da etiqueta. Pouco menos de um ano depois, o brasileiro Neymar esteve na fila A do desfile de verão 2023 da Balmain. “A Balmain te ama”, escreveu o diretor criativo Olivier Rousteing, em uma publicação com o jogador no Instagram.
Um mês se passou e foi a vez de a Louis Vuitton reunir o português Cristiano Ronaldo e o argentino Lionel Messi em uma só fotografia. Sem bolas à vista, a dupla de craques foi clicada jogando uma partida de xadrez sobre as tradicionais malas da marca francesa. Em janeiro deste ano, Ronaldinho Gaúcho, que apesar de já ter se aposentado e feito história no futebol, foi o grande astro na passarela da Kidsuper durante a semana de moda masculina de Paris.
Lionel Messi e Cristiano Ronaldo, Neymar e Olivier Rousteing, e Ronaldinho Gaúcho. Fotos: Getty Images
Os futebolistas não são os novos favoritos da moda à toa, mas nem sempre foram eles. Desde que, nos anos 1950, Audrey Hepburn e Hubert de Givenchy definiram o relacionamento que se tornaria o padrão de ouro do mercado de luxo, a escolha de um embaixador estrelado é como a personificação de uma marca, um atalho para compreender o que ela representa. Em uma troca justa, a etiqueta costuma aproveitar a moeda cultural daquela celebridade, e vice-versa.
Acontece que, ao longo das últimas décadas, as antigas estruturas da fama foram radicalmente contornadas. Os nomes hollywoodianos, por exemplo, já não possuem mais a atenção absoluta. Isso nada tem a ver com os atores e as atrizes de hoje serem menos talentosos ou carismáticos do que os que o cinema já viu um dia. Mas, ao lidar com uma comunicação direta entre artistas e fãs, audiências pulverizadas e interesses cada vez mais específicos, a influência mudou.
Da mesma forma que a moda se interessou por Hollywood para hastear as suas bandeiras, agora ela também se interessa pelo esporte. Assumindo o controle de suas próprias imagens e estando empenhados na construção de uma marca pessoal fora dos campos, os futebolistas simbolizam bem tudo o que as marcas de luxo aspiram: a excelência, as virtudes, o saber-fazer, o heroísmo e a graça. É curioso e um tanto contestável que as jogadoras femininas não estejam sendo incluídas ao movimento.
“Não vejo o apoio da moda, não”, diz Thayla Sousa em entrevista à ELLE. A carioca, de 25 anos, jogou no Fluminense e Cruzeiro e hoje integra o clube chileno Santiago Morning. A gaúcha Thiellen, zagueira do Bahia, concorda. Ambas optam por poucas palavras. Mesmo quando questionadas sobre as possíveis razões para o desprestígio da moda, elas preferem não responder, a fim de evitar polêmicas. Porém garantem se interessar pela área. Thayla, aliás, possui uma etiqueta de bonés, a ZAT. “Há muitas jogadoras que gostam de estar bem-vestidas fora dos treinos. Seria justo que as marcas contribuíssem mais”, opina ela.
É importante pontuar que as atletas femininas não são desconsideradas por completo. Em janeiro de 2021, a estrela do tênis Naomi Osaka foi eleita a embaixadora global da Louis Vuitton. Três anos depois, a skatista Rayssa Leal também integrou o time, sendo a primeira brasileira a conquistar o título na marca francesa. Desde junho de 2021, a campeã mundial de esqui Eileen Gu é um rosto constante nas campanhas da Tiffany & Co. No ano passado, a lendária tenista Serena Williams ganhou a categoria de Ícone de Moda no CFDA Awards, que anteriormente já havia premiado nomes como Naomi Campbell, Rihanna e Franca Sozzani.
Só quem parece ficar de fora são mesmo as futebolistas. A história, talvez, ajude a explicar alguma coisa aí. “O futebol é inadequado para as mulheres”, dizia um livro de atas da Federação de Futebol da Inglaterra, publicado em 1921. Naquele ano, a organização inglesa anunciou que elas estavam banidas de praticar o esporte em campos profissionais. A proibição só foi revogada no país em 1971, tendo impedido o ímpeto feminino na modalidade durante 50 anos. E não foi só por lá que isso aconteceu. Durante o século 20, uma série de restrições ao futebol feminino varreram o globo, inclusive no Brasil.
Eileen Gu, Rayssa Leal e Serena Williams. Fotos: Getty Images
Há quem acredite que nos Jogos Olímpicos de 2024, maiores avanços já serão notados. Por enquanto, o conglomerado de luxo LVMH, que detém etiquetas como Louis Vuitton, Dior e Fendi, é um dos grandes patrocinadores do campeonato, sediado em Paris. Segundo relatório divulgado pelo próprio, foram investidos cerca de 150 milhões de euros para que a empresa obtivesse o selo de patrocinador premium. Entre as ações anunciadas, consta a contratação de atletas embaixadores ‒ não há nenhuma jogadora de futebol feminino.
No entanto, diante do crescimento da modalidade, poderá ser custoso continuar preterindo as suas estrelas. “As futebolistas estão ganhando espaço na mídia com um calendário maior de competição, o que chama a atenção do público e da publicidade”, explica Marcelo Palaia, professor de marketing esportivo na ESPM. “Essa tem sido uma adesão tardia por parte de todo o mercado publicitário, mas que também poderá chegar até a moda”, opina ele.
Enquanto a colisão não é cumprida de vez, é essencial que o futebol feminino seja compreendido como uma entidade própria, e não como uma versão secundária da prática masculina. Só assim elas poderão lançar colaborações de alto nível, controlar as campanhas globais e ter lugares reservados na primeira fileira dos desfiles de moda. Pelo menos, é garantido que, com ou sem o apoio da indústria, as futebolistas, por conta própria, irão seguir quebrando recordes, contornando normas e inspirando as garotas que ainda virão por aí.