Espetáculo à parte

Sem se pautar por um calendário de lançamentos e desfiles, algumas marcas brasileiras têm chamado a atenção justamente por ir na contramão e desenvolver peças exclusivas para artistas.

Descrever a relação da moda com a cultura, especialmente nos tempos atuais, exige um pouco de fôlego. São várias as nuances. Há quem diga que a moda e a arte se encontram, mas caminham em lados distintos. Tem o fator capitalismo, a necessidade de ser funcional e todos os outros checks que precisam ser dados para o business acontecer. No século 16, o filósofo iluminista Immanuel Kant já cantava essa bola. “A arte é um modo de representação que não tem finalidade almejada fora de si mesma”, escreveu. 

Diante dessa teoria, alguns reviram os olhos. Discussão datada, conversa fiada. Arte é perspectiva pessoal e dinheiro no bolso é necessidade coletiva. Aqui, os estilistas brasileiros que trabalham ao lado de artistas têm muito a acrescentar. Sem a pretensão de estabelecer verdades absolutas, a relação entre a roupa e o entretenimento — especialmente em um mundo cão pós-pandêmico — pode alcançar novas formas.

“Antes de me apaixonar pela moda, me apaixonei pela performance dos palcos e pelo drama da noite”, diz Diego Faria, estilista paraense à frente da Silfar. 

Fundada ao lado do também designer Felipe Maltone, a marca é uma das que produzem exclusivamente para artistas e personalidades de diversos nichos — de cantoras pop a drag queens. Tudo sob medida, com detalhes minuciosos e técnicas artesanais exaustivamente testadas. 

“Carregamos a manipulação das formas como um dos traços principais. Ancas marcadas, peitos estruturados, ombros precisos. Tudo tem que ser icônico, mas também confortável e maleável para permitir a liberdade de movimento”, destaca Felipe. “Se a pessoa quiser dar uma cambalhota no show, ela pode.” 

Um dos primeiros vestidos da dupla foi feito para a modelo mineira Victoria Fernandes, vencedora do Miss T World, um concurso mundial de beleza trans, em 2021. A peça foi bordada com mais de 50 mil pérolas e cristais autênticos. “Nosso objetivo sempre foi criar peças memoráveis, do tipo que você bate o olho e se impressiona. O lúdico e o teatral fazem parte da nossa essência. Sempre fui apaixonado por figurinos”, acrescenta Diego.  

SILFAR DEBORAH SECCO 1

Deborah Secco, de Silfar. Foto: Divulgação

Cada look é um flash

Figurinos suntuosos estão entre nós há tempos: surgiram na história da moda como uma forma de demonstrar status e reforçar a identidade cultural. 

Nas civilizações antigas, como Egito, Grécia e Roma, roupas elaboradas eram utilizadas em cerimônias religiosas, eventos públicos e representações teatrais. Já na Idade Média e no Renascimento, grupos nobres europeus adotaram vestimentas luxuosas e ricamente adornadas com bordados extravagantes e pedras preciosas para se destacar.

O objetivo era causar um impacto visual imediato (um pensamento que permanece até hoje). A diferença é que, considerando o momento atual do mundo, a força da internet e o poder da cultura pop, esse impacto tem ganhado proporções cada vez mais astronômicas – e é aqui que entra em cena o talento dos designers.

“Saí em reportagens de diversos países. Vestir Julia no momento do seu auge foi muito significativo para a gente e abriu muitas portas. Até hoje me surpreendo porque não teve ninguém fazendo a ponte. A equipe dela entrou em contato comigo e o processo foi respeitoso do início ao fim”, relembra Mayari Jubini sobre o look viral produzido por ela e usado por Julia Fox, em 2022, quando tudo o que a atriz e modelo fazia (namorar o rapper Kanye West ou ir ao cinema com um look à la dominatrix) virava notícia nos tabloides internacionais.

Fundadora da Artemisi, a estilista capixaba já vestiu também as cantoras Demi Lovato e Katy Perry, além das artistas mexicanas Dulce María e Maite Perroni, integrantes do grupo RBD. “A moda, para mim, sempre foi muito vinculada à arte. Nunca foi sobre o consumo. Eu queria transformar as histórias da minha cabeça em realidade.” 

ARTEMISI ANITTA

Anitta com look Artemisi. Foto: Divulgação

Internet, pandemia e mercado

Desde que viralizar na internet se tornou um sinônimo de sucesso e, consequentemente, de lucro e contratos profissionais, os artistas começaram a se preocupar cada vez mais com o que vestem. Esse fenômeno existe desde os primórdios, mas pesquisas recentes de marketing mostram que as redes sociais elevaram o nível de preocupação com a visibilidade.

 Um estudo publicado em 2024 pela World Industry Insights, uma plataforma global de pesquisa de tendências, destacou que as mídias sociais são cruciais para o sucesso financeiro dos artistas — 68% deles consideraram plataformas como Instagram e TikTok essenciais para conseguir contratos. Nesse ponto, a pandemia foi uma importante catalisadora. 

O mundo real estava aos frangalhos e a conexão virtual era a única opção segura. Por causa disso, muita coisa mudou: a relação dos artistas com o público, o mercado de entretenimento, as novas formas de consumir. No Brasil, o comércio digital alcançou proporções inéditas. De acordo com o MDIC (Ministério do Desenvolvimento, Indústria, Comércio e Serviços), 450 bilhões de reais foram movimentados em operações de compra e venda online entre 2019 e 2022. 

“Lancei a Artemisi meses antes de a pandemia começar, e conseguimos caminhar bem apesar do período difícil”, diz Mayari. “Os artistas gravavam conteúdos, faziam fotos, clipes. Sempre precisavam de roupas.” 

Com o público cada vez mais de olho e os artistas ainda mais exigentes, as marcas desse segmento têm o desafio de inovar constantemente. “Já fizemos peças de metal, resina, impressas em 3D, estampas localizadas, cristais montados manualmente. Dominar tantas técnicas exige muito trabalho, mas é a nossa especialidade.” 

Alta-costura brasileira

Tesoura, linha e agulha são as únicas ferramentas de trabalho usadas por Will Cypriano. Fundador da marca que leva seu sobrenome, Will não usa máquina de costura e passa horas no seu ateliê, desenvolvendo peças exclusivas de jeans, tudo 100% à mão. “Até tivemos uma experiência com tecido de algodão para um projeto, mas o jeans é a nossa principal matéria-prima. Desde o início, tínhamos o sonho de criar para artistas, e as oportunidades foram surgindo conforme a nossa evolução”, conta o designer. 

Filho de artista plástico, Will aprendeu desde cedo a consumir diversos campos da cultura de rua. O hip-hop e a dança, por exemplo, foram essenciais na formação de seu repertório. Antes da Cypriano, lançada oficialmente em 2022, ele dançava profissionalmente no grupo Command, um coletivo de dança trap bem conhecido na cena paulistana. Foi aí que a relação com a moda estreitou. 

O patchwork inconfundível da Cypriano, assim como as silhuetas largas e o caimento despojado, conquistou uma série de artistas. “Vestir Seu Jorge me marcou muito. É um homem que sempre teve uma grande representatividade na minha vida. Sinto um carinho imenso por ele”, relata o designer, que tem uma lista extensa de clientes-personalidades, como as cantoras Pabllo Vittar e Luísa Sonza, as rappers Tasha e Tracie, o ator João Guilherme e o trapper Mc Cabelinho.

Além da produção sob demanda para artistas, a marca lança alguns drops ao longo do ano, com estoque limitadíssimo e sold out de minutos. 

CYPRIANO

Pabllo Vittar, de Cypriano. Foto: Divulgação

Entre o palco e a costura

Com quase 3 milhões e meio de plays em uma única música (vale escutar  “Caipirinha de Milão”), dois álbuns lançados e um feat com Gaby Amarantos, o cantor baiano Totô de Babalong é um fenômeno entre os amantes contemporâneos do brega. Esse é seu lado popstar, mas nem todos os fãs estão cientes de que o artista costuma equilibrar o microfone ao lado dos tecidos. “As duas versões andam de mãos dadas. O problema é que uma me dá muito trabalho, e a outra também”, diz, brincando. 

Em 2016, Totô ainda era Heitor e morava na China. A música sempre foi seu romance, mas a moda era um lance mal resolvido. Até que um dia, um tecido encontrado no mercado local oficializou o match antigo. “Sempre gostei de moda, mas não podia consumir o que eu queria. Morei três anos lá e nunca consegui me vestir por causa do meu tamanho. Em 2019, eu estava andando e encontrei um tecido lindo, meio Versace, e decidi fazer uma camisa. Ali senti um estalo”, revela. 

Bastou uma ligação para que sua irmã, Débora Alencar, topasse a missão de ser sua sócia na Babalong (o nome é a junção de “Bahia” e “dragão” em chinês). Poucos meses depois, Anitta estava exibindo um look assinado pela dupla no maior festival de música do Brasil. “Recebemos uma mensagem falando do show no Rock in Rio, com o Black Eyed Peas. Duvidamos que ia rolar, mas rolou.” 

O forte da marca são as estampas autorais e multicoloridas, sempre com um toque de humor e símbolos culturais clássicos do Brasil. Tem referência a paredão de som, cardápio de lanchonete raiz e até pano de prato. “As minhas paixões vêm do mesmo lugar, de um espaço dentro de mim que é destinado a criar”, finaliza Totô.

QYL58Wjl Babalong Urias

Urias veste Babalong. Foto: Divulgação