Eu quis dizer, você não quis escutar

Qual é a música, Pablo? A partir de diferentes trechos musicais, nossa colunista cria 7 minicontos divertidos. Para ler e ouvir no repeat.

001

Baixinho quase calado

O horário era de encaixe. Depois que Diabo começou a impulsionar post no insta, a agenda lotou que parecia um milagre. 

– Cinco minutinhos pra fechar esse pacto, meu querido. O que você vai pedir hoje? 

– É… É… – Marcos Mion, meio nervoso diante de tamanha presença, fala fino, quase sem voz.

– Normal isso, se aperreie não. Faça uma mimicazinha aí que a gente se entende.

Ele desenha um S no ar, feito aquele comercial antigo da Sadia. Faz o corte do cifrão. Um só, porque se é pra vender a alma por dinheiro que paguem logo em dólar. Nada a ver, mas o bichinho tá nervoso, a mão treme, o corte sai meio diagonal. Diabo entende que o cliente quer os S fora da própria vida. 

– Oxe, tranquilo demais. É pra já. 

Mion já sai da sessão falando “Exe é o xeu Caldeirão. O apregentador tá emoxionado hoje gente, quer agradecer a xua prexenxa, voxê e eu xomox uma família”. 

002

Que beleza é conhecer o desencanto

Mãe e filho na antessala do velório combinam os detalhes da cerimônia. O pai, no último dia de UTI, pediu que tocasse a sua música na hora que o caixão descesse pra terra, foi a única exigência. Mas pediu pra Martim Júnior, que saiu de casa pra faculdade aos 17, voltou uma vez por ano nos primeiros quatro anos, depois de quatro em quatro, depois de dez em dez. Martim Júnior para a mãe e para o resto da família. Para o pai, só Tim.

– Mãe, concentra um pouquinho, tenta pensar. Só falta isso, tá cheio de gente lá fora. 

– Tanto faz, meu amor, tanto faz. Não me lembro de nenhuma favorita assim de cara, tô nervosa, ele ouvia tanta música.

– Você não disse que ele andava com a mesma no repeat antes da internação. Bora botar essa. 

– Era alguma coisa com bonito, beleza, belo, não sei.

Para o espanto dos amigos músicos, Martim pai, que queria encostar o chão tendo certeza pra onde vai e de onde vem, desceu ao som de um pagode de Belo. 

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Se você pretende saber quem eu sou

Dupla dinheirista no aplicativo de relacionamento. Ela olhos atentos a qualquer sinal. Ele selfie de óculos escuros, dirigindo o carro na foto de abertura do perfil, uma BMW 320i, modelo de entrada, mas faz figura. Depois dessa tinha ele em Paris, ele em piscina de hotel, ele esquiando, ele posando do lado de plaquinhas de estrela Michelin em tudo que é canto do mundo. O cartão de crédito com prestação até 2030. Ela joga pra esquerda o mais rápido que dá, não passa nem da primeira foto, “mãos no volante e Ray-Ban falso, deus me livre, deve ser Uber”. 

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Vai trabalhar, criatura

Novembro de 31, FitzRoy abre o arquivo dos currículos não selecionados. Um marujo desistiu de embarcar no HMS Beagle

– Tem aquela indicação do Henslow – lembra o imediato. – Parece que o cara fez Cambridge, deve saber ler carta náutica.

– Que Cambridge o quê. E vai trazer a papelada a tempo? Vai acordar cedo? Tem braço pra puxar corda? Ou vai ficar vagabundeando, fazendo desenho, olhando pra pássaro, correndo atrás de bicho?

– Implicância tua, Fitz. Chama logo que a gente tem que fechar essa escala hoje ainda.

– Tá bom, bota aí: Charles Darwin.

005

Acataremos teu ato

– Mas eu sempre te dou o que tu precisa, faço tudo que tu me pede.

– Eu sei. É que às vezes, me sinto um pouquinho diminuído.

– Como diminuído? Tu era uma sementinha quando chegou. Eu tive a maior paciência do mundo contigo. Podei um pouquinho? Podei. Mas foi pro teu bem, meu amor. Fora isso, eu fiz tudo. Olha aí como tu tá lindo. Te coloquei na terra, na luz, te adubei os sonhos – diz Bel, vaso de cerâmica no colo, o conta-gotas pingando água de gotinha em gotinha no abacateiro bonsai.

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Mais fácil aprender japonês em braile

Usuários de emoji no aplicativo de relacionamento. Ela, coleira, um pé, uma seta apontando pra cima, uma mãozinha de murro, berinjela e pêssego. Ele, novato na solteirice, joga pra direita o mais rápido que dá, não passa nem pra segunda foto: “Dos pets, pé na areia, alto astral, gosta de treinar e ainda é vegana, essa tá pra mim”.

007

Venha me apertar

– Amor, me faz uma maldade.

– Safada. Olha que eu faço. Pode mesmo? 

– Pode, vai. Uma coisa pra me deixar louca. Pra eu lembrar de ti a semana inteira.

Cadu prende os braços de Lila com uma das mãos. Ela solta um ai meio de dor, meio de delícia, vira a cabeça pro lado. Estão suados os dois, a mão de Lila escorrega, ele prende de novo. O movimento brusco faz doer de verdade, Lila grita outro ai, tenta se soltar no instinto. Ele segura as pernas dela com as próprias pernas, imobiliza o corpo com o próprio corpo, os dois assanhados, o rosto de Lila coberto pelos cabelos longos. Com a outra mão, ele agarra os fios com força – ficou forte Cadu de uma hora pra outra -, afasta o cabelo do ouvido dela, chega perto com a boca, suspira morno no ouvido e canta: mande notícias do mundo de lá, diz quem fica. Era sábado. Na sexta da outra semana, Lila ainda não tinha se livrado de Maria Rita.


Roberta D’Albuquerque é psicanalista e coautora do livro Quem manda aqui sou eu (HarperCollins). Atende no seu consultório em São Paulo e escreve mensalmente neste espaço. Acompanhe em @robertadalbuquerque.