“Outro dia, um menino de 18 anos me mandou um inbox falando: ‘Acabei de conhecer seu trabalho. Essa música, ‘Kátia Flávia’, você compôs este ano?’.” Fernanda Abreu, 62 anos, respondeu ao novo fã que foi em 1987 que ela estourou Brasil afora com o hit de Fausto Fawcett e Carlos Laufer.
Naquela época, com apenas cinco anos de carreira, recém-saída da banda Blitz, em que foi backing vocal, ela buscava a própria identidade musical. O sucesso estrondoso do grupo foi uma escola sobre a indústria da música. Na década seguinte, a carioca se lançou em carreira solo e logo nasceu o cultuado álbum SLA radical dance disco club (1990), que inovava ao trazer elementos eletrônicos para o seu pop, superconectado com o funk carioca.
Quarenta e dois anos de carreira depois, a “mãe do pop dançante brasileiro” não se vê saudosista. Se continua sendo “descoberta” por jovens fãs, avalia, é porque sua obra segue atual. “Até hoje pode chegar um garoto e perguntar o que é ‘exocet, calcinha e polícia’. As pessoas acham que eu posso ter composto ‘Rio 40 graus’ no ano passado porque ‘comando de comando submundo bandidaço’, ‘o Rio é uma cidade de cidades misturadas, com governos camuflados, paralelos, sorrateiros’ é o que elas estão vivendo hoje ainda”, diz. “A música tem essa coisa, vai se eternizando quando as letras são fortes. As minhas não estão datadas e a produção também não. Na pandemia, lancei algumas coletâneas e quando fui ouvir (as faixas antigas), fiquei feliz. Nada me dá vergonha. Para mim, tá súper ok o legado que deixei até agora.”
À ELLE, Fernanda fala sobre a longevidade em meio a altos e baixos das quatro décadas de carreira, a importância do pé no chão para manter alguma estabilidade financeira, a maternidade na estrada (suas filhas têm 24 e 32 anos) e os desafios da profissão.
“Na pandemia, lancei algumas coletâneas e quando fui ouvir (as faixas antigas), fiquei feliz. Nada me dá vergonha.”
Da Zona Sul carioca para a Blitz
“Minha história tem coerência. Sou uma pessoa de classe média, branca, da Zona Sul do Rio de Janeiro, mas meus pais me colocaram na escola pública. Lá eu tinha amigos diversos, e isso foi se refletindo e influenciando a minha maneira de fazer música. Em determinado momento da vida, entrei na Blitz, que foi uma banda que estourou, e ninguém esperava isso. Era uma galera do bairro de Ipanema que acabou se juntando no Circo Voador com um grupo gigante de dança, de teatro, de poesia, e virou uma coisa muito grande. Tive essa sorte, a oportunidade de viver um sucesso estrondoso quando era bem jovem. Entre os meus 20 e 23 anos, época em que participei da primeira formação da Blitz, foi um bombardeio de informação. Fiquei muito atenta em relação a como era montar um show, como se viajava, como era uma turnê, o que era o backstage, como era a relação com a mídia, já que eu não tinha o papel de líder. Era uma backing vocal. O Evandro (Mesquita, vocalista e líder da banda) é um cara genial e à frente do seu tempo, que colocava as mulheres em destaque. Tive a sorte de estar cercada por gente muito interessante.”
SLA radical dance disco club
“Quando comecei minha carreira solo, em 1990, fui buscar quem eu era porque sabia que tinha que fazer um produto que fosse ‘eu’. A gravadora falava: ‘Você é linda, maravilhosa, todo mundo já te conhece, nós temos um repertório para você’. E eu falava: ‘Não’. Demorou quatro anos até eu criar o meu repertório e colocar nesse disco o que eu estava vendo acontecer no mundo, que era a tecnologia na música pop. Porque até os anos 1980, a gente entrava no estúdio e gravava com a banda. No meu primeiro dia de estúdio, fui comprar sequências, computadores, samples. A tecnologia entrou na minha linguagem musical. Nesse sentido, acho que o SLA radical dance disco club (1990) foi algo realmente pioneiro e muito demarcatório: o primeiro álbum pop dançante brasileiro. A partir dali, sempre me cobrei muito para andar para a frente. Claro que tudo que um artista quer é ter a sua própria assinatura, não parecer um genérico. Mas, ao mesmo tempo, dentro dessa assinatura dançante, acho importante a gente estar o tempo todo se instigando e se desafiando.”
Repertório familiar
“Tive em casa uma formação musical totalmente leiga: meu pai era arquiteto e minha mãe biblioteconomista, mas sempre amaram música, iam aos festivais, compravam discos de vários gêneros – os mineiros, os baianos, a bossa nova, o samba, o jazz. Então, vivenciei em casa um repertório muito amplo da música brasileira. Outro dia, alguém falou: ‘As pessoas te chamam para fazer participação em bandas de rock, de samba, de funk, de hip-hop’. Tenho essa possibilidade estilística, acho, de conseguir entender a linguagem do hip-hop, do rap, do funk, do samba, da música brasileira. Trabalho mesmo para ouvir coisas novas, pontos de vista novos, que me inspirem. Cada dia que você abre o Instagram, tem uma novidade sobre inteligência artificial. E a gente, sem se deixar perder muito, porque é tudo muito efêmero, pode tentar entender isso e produzir algo novo.”
Altos e baixos
“Todo artista vive um momento que é o ápice e depois ‘sobrevive’ porque virou um nome nacional, continua produzindo coisas interessantes. Não tenho a expectativa de outro grande sucesso. Acho que esse negócio de estourar não existe mais hoje porque às vezes dura duas semanas, e depois as pessoas param de ouvir. Então, não sei o quanto os jovens artistas estão conseguindo construir uma carreira sólida hoje. Isso a gente só vai saber daqui a 30 anos. Tenho minhas dúvidas do quanto esse processo veloz vai sustentar uma carreira artística durante muitos anos.”
“Você tem que ficar o tempo todo atento para não se acomodar nos louros, porque é fácil.”
Redes sociais com moderação
“Uso minha rede social para mostrar basicamente o meu trabalho. Mas sei que as pessoas também querem saber um pouco do que eu gosto, né? Então, boto foto do meu cachorro, eventualmente, no Dia das Mães, de uma das minhas filhas. Mas estou longe de ser essa pessoa que fica o tempo todo ‘olha o que eu tô almoçando, jantando’. Faço isso quando meu assessor pede, em momentos em que vou para fora do Brasil, por exemplo, fazer um show. ‘Pô, Fernanda, se você puder fazer umas imagens de onde você tá, no aeroporto, depois no hotel, ensaiando, a gente faz um aftermovie da viagem’. Faço, não com um superprazer, mas faço. Faço tantas coisas que não gosto na vida. É assim mesmo. Porém estou longe de ficar com o celular na mão o tempo inteiro. Ao contrário, até me esqueço. Vejo que as pessoas estão muito… As pessoas, não, geral. A gente tá fodido. A gente tá muito, muito, muito viciado no telefone, tá foda.”
Espacate aos 60
“Recentemente, fiz um show numa cidade do interior do Rio de Janeiro chamada Cardoso Moreira. Na frente do palco, havia garotas de 15 anos com cabelo azul. Fico pensando que algumas delas vão porque é um show da cidade, mas depois começam a me seguir. Alguma coisa em mim, no meu trabalho, no meu jeito de ser, no meu discurso, na minha música, no meu jeito de vestir, mesmo com a idade que tenho, desperta algum tipo de fascínio. Tem um público gay também, que curte pra caramba minha música, meu show, meu som. Acho que tem a ver com a coisa da dança também. Eu amo dançar, e meu show é superdançante. Então, as pessoas curtem uma pessoa da minha idade fazer um developpé, um espacate, dançar, girar.”
“Ser mãe, na moral, é uma missão.”
As filhas e a estrada
“Fiz há pouco uma participação no DVD da Paula Toller, que é minha amiga desde 1982, no Kid Abelha. A gente ficou muito próxima nos anos 1990, amigas íntimas, de ir para a casa da outra o tempo todo, almoçar, jantar. Depois, a gente teve filho, e aí fica diferente essa relação. A gente se dedica muito aos filhos. Sou aquela mãe que estudava, que ia ao médico, ao dentista com o filho. A gente gasta um tempo grande e é importante, porque, cara, ser mãe, na moral, é uma missão. Educar um ser humano… Hoje, então, fico até com pena das mães. Não sei nem como dá para educar uma criança sem tela, como é que faz? Amamentei minhas filhas até um 1 e meio porque elas não quiseram mais mamar. Levei elas até uns 2 anos e meio para os shows e para as viagens, até que uma delas falou: ‘Mãe, esse fim de semana é a festa da fulaninha’. Aí, pensei que realmente não dava para viver a vida de mamãe. Tudo foi uma construção. Eu tentar me desfazer do que achava que era legal, que era levar minhas filhas para as viagens, para estarem comigo o tempo todo. Elas precisavam ter a vida delas com as amiguinhas.”
Estabilidade financeira
“A minha filha de 32 anos, que é médica neurologista, veio me perguntar um dia: ‘Mãe, como é que você conseguiu, desde 1982, nesses 42 anos de carreira, se organizar financeiramente? Porque é natural que um disco seja superbem-sucedido, outro não, e as coisas acontecem, você teve duas filhas, sua mãe ficou em coma seis anos, você se separou… Como você conseguiu?’ Falei: ‘Filha, sou virginiana, sou uma pessoa zero perdulária ou ostentatória’.”
Os ensinamentos do balé
Fui perceber onde estava na minha carreira quando lancei o álbum Amor geral, em 2016, e a mídia me chamou de ‘mãe do pop dançante brasileiro’ e ‘madrinha do funk carioca’. Aí entendi que muitos anos tinham se passado. Eu me senti muito lisonjeada com o meu reconhecimento no funk também, que é um movimento em que realmente estou desde o começo. Essa trajetória que construí dentro dessa linguagem musical, que hoje tem tantas meninas lindas fazendo – Anitta, Ludmilla, IZA, Luísa Sonza –, é uma coisa maravilhosa, e mais ainda com bailarinas. Também venho da dança. Aprendi uma coisa no balé, que sempre foi muito importante para mim, que é a humildade diante da arte. Muito foco, muita determinação, disciplina e pouco deslumbre. Fui criada assim, não tenho como escapar desses códigos. Nunca entrei nas drogas, por exemplo. Nos anos 1980, era uma loucura, mas segui meu foco. Acho que isso ajuda também quando você está precisando se alimentar um pouco artisticamente para não ficar parado no mesmo lugar. Você tem que ficar o tempo todo atento para não se acomodar nos louros, porque é fácil. Você recebe convites o tempo todo, faz show, faz discos, pessoas te chamam para a TV, para as coisas todas. Mas estou o tempo todo: ‘E aí, Fernanda, e agora, o que vai ser?’.”
Sem preguiça
“Ainda tem muita coisa para fazer, projetos na cabeça. Preciso talvez trabalhar um pouco menos, mas vêm os convites para projetos especiais e não tenho como dizer não, como o show com a Marina Lima no Coala, com o Beto Lee na turnê em homenagem a Rita Lee. (Ambos em 2023.) São coisas muito importantes. O Ruy Castro me chamou para ir à Academia Brasileira de Letras, em novembro, falar sobre o Vasco da Gama. (Fernanda é torcedora do time.) Poderia ter preguiça de estudar isso, mas é tão instigante. Tudo que é meio desafiador dá trabalho. A vida é uma só, tenho 62 anos, muita coisa para fazer ainda. E todas essas coisas são muito importantes para mim. Gosto muito de trabalhar.”