“A mulher em mim foi sufocada por muito tempo”, disse Britney Spears na autobiografia que foi um dos best-sellers de 2023. A frase contribuiu para o título da obra (A mulher em mim), mas poderia facilmente ser aplicada a muitas carreiras de artistas femininas de décadas diferentes. Destacar-se em um showbusiness dominado por homens exige muito esforço e cobra um preço alto de saúde mental e física dessas mulheres. Nesse sentido, pouco mudou entre a Billie Holiday dos anos 1940 e a Britney Spears dos anos 2000.
Por outro lado, as histórias das mulheres na música são também exemplos de força pessoal e excelência criativa, em que artistas que muitas vezes são também esposas e mães expõem ao mundo suas feridas e encantam multidões com suas canções.
E, se antes predominavam nas estantes as trajetórias de cantores e músicos, as narrativas femininas impuseram novas maneiras de olhar e entender o meio musical.
“Não demorou para eu ser uma das escravas mais bem pagas em atividade.”
Billie Holiday
ELLE selecionou sete autobiografias de artistas de diferentes tempos, estilos musicais e países para montar um painel que ilustra um pouco da complexidade e do brilhantismo que é ser mulher e fazer música. Não foi uma tarefa simples: em meio ao boom de biografias musicais da última década, muitos relatos de artistas mulheres se destacaram (em junho, por exemplo, a autobiografia My life as a feminist punk, de Kathleen Hanna, cantora da banda Bikini Kill, estava na lista de mais vendidos do The New York Times). A seguir, as histórias delas por elas.
Fotos: Getty Images
Carmen: uma biografia (2005), de Ruy Castro
Anitta hoje rala para tentar ser alguém no mercado pop global, mas ainda falta um bocado para se equivaler ao que a portuguesa-carioca Carmen Miranda conseguiu nos anos 1940. Carmen foi estrela de Hollywood, se tornou fenômeno de massa nos EUA e chegou a dançar para o então presidente, Franklin Roosevelt. Com mais de 600 páginas, a consagrada biografia do jornalista Ruy Castro oferece tudo e mais um pouco sobre essa que foi uma das maiores exportações musicais da história do país. A pesquisa profunda impressiona, mas o que brilha no livro é o retrato que Castro consegue compor da pessoa por trás do ícone, exuberante por fora e fragilizada por dentro. O livro ganhou o Prêmio Jabuti de Melhor Biografia em 2006.
Elis: nada será como antes (2015), de Julio Maria
Entre seu estouro inicial, em 1965, e a morte trágica, em 1982, Elis Regina foi um fenômeno na música brasileira. A vida e a personalidade da cantora, intensa e generosa, intempestiva e dedicada, são repassadas em um trabalho minucioso de reportagem do jornalista Julio Maria. O trabalho incluiu mais de 130 entrevistas, pesquisa em diversas cidades brasileiras e o levantamento de documentos inéditos, como uma carta endereçada ao filho João Marcello Bôscoli, para ser lida quando ele completasse 18 anos. “Tenho tantos problemas quanto você. Não me culpe. Antes, procure me compreender. Sou resultado do que a vida fez comigo, inconsciente e inconsequentemente”, diz o texto do documento, só conhecido por João Marcello aos 45 anos.
Rita Lee: uma autobiografia (2016)
“Se um belo dia você me encontrar pelo caminho, não me venha cobrar que eu seja o que você imagina que eu deveria continuar sendo”, declarou Rita Lee em sua autobiografia. A frase dá a tônica da obra, em que a artista, cuja morte comoveu o Brasil, em 2023, apresenta os diversos lados de sua caminhada: as doideiras e as aventuras estão pelas páginas, mas também as histórias de viagens para a Disney com os filhos e a Rita vovó, que acompanha de perto o crescimento da neta. Sete anos depois, chegou às livrarias Rita Lee: Outra autobiografia, livro póstumo, em que a artista conta como enfrentou o câncer que provocou sua partida.
Billie Holiday – Lady sings the blues (1956), de William Duffy
Lançada no fim dos anos 1950, a autobiografia da dama maior do jazz foi baseada em longos depoimentos da artista. A cantora morreu três anos depois da publicação, o que significa que o relato abrange quase toda a sua vida e carreira. É uma trajetória de genialidade (quem não ouviu “Strange fruit” ainda não viveu direito) e extrema adversidade (racismo, abuso sexual e vício em heroína marcaram sua trajetória). Apesar do sucesso, Billie comparava sua situação de trabalho à escravidão. “Não demorou para eu ser uma das escravas mais bem pagas em atividade. Ganhava mil (dólares) por semana – mas tinha tanta liberdade quanto um ajudante numa roça da Virgínia um século antes”, afirmou em um dos depoimentos.
Kim Gordon: a garota da banda (2015)
“A garota ancora o palco, absorve o olhar masculino e, dependendo de quem ela é, lança de volta ao público seu próprio olhar”, escreveu a ex-baixista e vocalista do Sonic Youth, um nome lendário do rock alternativo. Cercada por homens na banda, Gordon fala sobre conseguir extrair força do que poderia ser uma posição vulnerável. É o caminho em que a menina vira mulher, tendo como cenário as cenas musicais e artísticas vanguardistas de Nova York nos anos 1980. Amplamente elogiada pela crítica estadunidense, a narrativa do livro alcança até o fim do Sonic Youth, em 2011 (e também o fim de seu casamento com o guitarrista e vocalista, Thurston Moore), no derradeiro show da banda, no Brasil.
Grace Jones: I’ll never write my memoirs (2015)
De modelo a artista musical, Grace Jones marcou a década de 1980 como ícone fashion e autora de hits como “Pull up to the bumper” e “Slave to the rhythm”. Neste livro, Jones se junta ao jornalista britânico Paul Morley, crítico musical e cofundador do selo ZTT, que lançou Grace no Reino Unido, para contar uma história que parte da infância da cantora, na Jamaica, e seguiu pelas passarelas de Paris, pelo Studio 54, em Nova York, e pelos filmes em Hollywood. Para além da retrospectiva, Grace aproveita para cutucar uma série de artistas mais contemporâneas, como Rihanna e Nicki Minaj, por tentarem ser “igual a mim”. O livro contém ainda um caderno de 16 páginas com fotos coloridas, muitas das quais são do acervo pessoal de Grace.
Britney Spears: a mulher em mim (2023)
A cantora só tinha 16 anos quando se tornou uma popstar de sucesso, batendo recordes nas paradas estadunidenses e tendo sua sexualidade explorada sem pudor (incluindo a veiculação da falsa ideia de que ela era virgem). Entre a precocidade imposta pelo trabalho no showbusiness e o controle exercido principalmente pelo pai, Jamie Spears, Britney tentou amadurecer e conquistar o controle de seu próprio destino. Com mais de 2 milhões de cópias vendidas nos Estados Unidos, a autobiografia chama a atenção pela honestidade e pelo estilo direto, mesmo quando relata momentos adversos e traumáticos. O livro foi amplamente elogiado pela crítica, em veículos como The New York Times, The Guardian e BBC.