Por manas a mais

É preciso mexer nas entranhas da indústria musical para sairmos do lugar.

Quando eu e minha sócia, Monique Dardenne, resolvemos criar o Women’s Music Event, em 2016, o Brasil era a terra de ninguém no quesito igualdade de gênero. Na música, que é o nosso foco, não havia nenhuma preocupação, por exemplo, em criar line-ups de festivais com poucas ou mesmo nenhuma mulher, porque essa massacrante desigualdade era considerada normal. A verdade é que havia o senso comum de que “a mulher não vendia ingresso” (chegamos a ouvir isso de alguns programadores e contratantes de festivais).

Vamos revisitar o contexto em que vivíamos naquela época – e as mudanças foram tantas que parece que faz um século. O ano de 2016 marcou batalhas importantes para o feminismo, trazendo à pauta temas como aborto, violência, feminicídio e questões raciais. Estávamos vivenciando a quarta onda feminista, que teve início em 2013 e ganhou força com manifestações pela internet – e por isso ficou conhecida como “feminismo digital”. Foi a partir dessa geração que surgiram as primeiras hashtags antimachismo, como a #metoo nos EUA, e as nacionais #MeuPrimeiroAssédio e #MeuAmigoSecreto, que elencava atitudes machistas dos nossos supostos melhores amigos. 

Tanto eu quanto a Monique tínhamos longas carreiras na indústria da música – eu como jornalista, curadora, DJ e produtora cultural e ela como manager, booker e também curadora. Em 2016, nos encontramos em inúmeras conferências e eventos de música, nos quais invariavelmente nos botavam em painéis sob o nome “mulheres da música”, o que sinceramente não dizia nada sobre o que iríamos abordar. Para nós era uma espécie de “cota” para fêmeas em eventos de música, que mais pareciam convenções de lâmina de barbear, de tão dominadas por homens brancos heteronormativos.

A verdade é que havia o senso comum de que “a mulher não vendia ingresso”.

Foi depois de uma dessas conferências que resolvemos nos unir e criar uma plataforma que entraria em jogo para mudar o mindset (para usar uma palavra “do mercado”) da indústria. Traçamos uma estratégia holística, com vários braços, que continha uma conferência em que as mulheres seriam protagonistas nos palcos e painéis; um banco de dados de profissionais da música para calar a boca de quem viesse com desculpinhas do tipo “não contrato mulheres porque não tem _____ (complete com a profissão da música que você quiser) na minha cidade”; uma seção de notícias para mostrar o que as profissionais de diversas áreas estavam fazendo; e finalmente uma premiação voltada apenas para mulheres.

No mesmo ano em que lançamos o WME, em 2017, com a nossa primeira conferência, outras iniciativas também surgiram no Brasil, como o festival Sonora, focado em compositoras, e o Sêla, festival que continha também uma conferência, além de um selo musical, criado por Gali Galó, voltado para mulheres do mercado da música. 

No início, o grande questionamento que tínhamos que enfrentar era sobre o porquê de fazermos nossos eventos apenas com mulheres no protagonismo. “Por que não colocar homens para falar também?”, cansamos de ouvir. Simplesmente porque precisávamos criar lugares seguros, onde a mulher pudesse aprender, trocar, vivenciar experiências sem se preocupar se seria confrontada ou questionada por homens, sempre muito “solícitos” em nos ajudar a responder melhor, tocar melhor, explicar melhor. 

Não por acaso, também em 2017, um importante combustível pop para o feminismo na música surgiu no formato de um cartaz ambulante. Era a camiseta “Lute como uma garota” (e os spin-offs, como “Toque como uma garota”, “Beba como uma garota” etc.). A frase foi traduzida do inglês (Fight like a girl) pela designer Karina Basso e se tornou um verdadeiro uniforme de feministas pelo Brasil afora.

Portanto, o resumão desse momento é: de um lado, um levante feminista ia para as ruas e para as redes online em busca de igualdade (de gênero, racial, de direitos LGBTQIA+, dos povos pretos, indígenas, PCDs). De outro, conservadores e donos da bola em geral se mostravam pouco atingidos por essa “gritaria” – que era como se referiam às demandas dessas minorias. 

Como um pêndulo desregulado que precisa voltar a marcar o centro de uma esfera, foi preciso fazer força extrema para o lado oposto para que ele voltasse a funcionar. Tanto na música quanto em outras indústrias criativas, como no audiovisual, em que as mulheres também sempre foram minoria, grupos feministas começaram a se unir e entenderam que, como pinguins, juntas se sobrepunham ao grande mal (no caso dos pinguins, o frio congelante e, no caso das mulheres e dissidências de gênero, o machismo e a misoginia). 

Corta para 2024 e lá se foram oito anos desde o início dessa luta. Pesquisas como a “Por elas que fazem a música”, levantamento feito anualmente pela UBC (União Brasileira de Pesquisadores), mostram que existe uma melhora em alguns campos, mas ratifica uma persistente desigualdade de gênero no Brasil. Um exemplo triste é que menos de 10% do dinheiro arrecadado em direitos autorais no país vai para as mulheres. E, dos 100 maiores arrecadadores, só há 13 compositoras – sendo que a mais bem colocada no ranking está em 21º lugar. 

Mas, como sou otimista, acho importante falar das mudanças positivas que sentimos na pele. É fato que os line-ups têm buscado equilibrar suas contas no que tange a gêneros. Hoje um festival de música que anuncie um evento com maioria esmagadora de homens (pior ainda se forem todos brancos), já sabe que vai tomar porrada do público – e isso significa vender menos ingressos e, consequentemente, perder dinheiro. Portanto, vemos “vitrines”, ou melhor, palcos mais equânimes e com mais diversidade, sim. Ainda que seja produto do medo de empresários e curadores, essa diversidade nos eventos de música acontece. Porém essa é apenas a ponta do iceberg. 

As equipes técnicas continuam sendo formadas por homens, sem que haja sequer o pensamento de mexer na hegemonia dessa graxa tão macha.

Uma mudança holística só irá acontecer quando expusermos as estruturas mais profundas desses eventos, apresentando uma peça da engrenagem que permanece igual desde os primórdios: as equipes técnicas continuam sendo formadas por homens, sem que haja sequer o pensamento de mexer na hegemonia dessa graxa tão macha. 

Esse é um universo tão desconectado das mudanças dos últimos anos que ainda não existe uma pesquisa acerca do número de mulheres que ocupam cadeiras em profissões técnicas, especialmente na área do áudio (como técnicas de monitor, técnicas de PA, diretoras técnicas, produtoras musicais). Existem mulheres ocupando essas posições? Sim. Mas empiricamente é um lugar ainda preenchido por homens, com um tímido aumento de mulheres e dissidências de gênero, por falta de dinheiro para fazer os cursos (que são caros) ou, pior, por falta de oportunidade de adquirirem horas de experiência – alô, festivais, hora de pensar em abrir vagas, ainda que de estágio, para ventilar esse setor.

Sabe quando você faz um regime e corta totalmente o açúcar? E você fala para Deus e todo mundo “cara, cortei doce”, mas continua comendo pizza, lasanha, batata frita, refrigerante e daí não sabe por que não emagrece? É mais ou menos isso. Mexer na vitrine sem repaginar a equipe que cuida dela não vai levar a gente muito longe. 

Claudia Assef é cocriadora do Women’s Music Event.

Fotos: Divulgação