Alzira Soriano foi a primeira mulher eleita a um cargo político no Brasil, em 1928, quando se tornou prefeita de Lajes, no Rio Grande do Norte. Nesses quase 100 anos, já tivemos uma presidenta, uma série de governadoras, prefeitas e parlamentares eleitas – o atual governo tem um recorde de 11 ministras nomeadas. Ainda assim, a equidade de gênero está aquém da esperada. Se 51,5% da nossa população é feminina, segundo o Censo 2022 do IBGE, elas formam apenas 18% da representação no Senado e na Câmara dos Deputados. E, nas trincheiras das transformações, as roupas delas lembram a importância comunicativa do vestuário.
No noticiário internacional, são muitas as reportagens e análises sobre o que veste a candidata à presidência dos EUA, Kamala Harris. O atual contexto de mundo – e o que está em jogo – explica o interesse da cobertura jornalística. O assunto, no entanto, não é novidade nem estranho à realidade brasileira. “Precisamos desmistificar a moda para enxergá-la como um elemento presente em nosso dia a dia, comunicando e carregando mensagens”, diz a primeira-dama, Rosângela Lula da Silva, a Janja.
Não são raras as vezes em que o visual de uma mulher em cargo público é criticado por seu suposto impacto nos cofres públicos. Apesar do julgamento se aplicar às figuras masculinas, suas frequência e intensidade são expressivamente menores. “Ternos são caros, mas os seus valores não são questionados porque são os homens quem os vestem”, diz Janja. “É a ideia de a moda ser fútil”, continua a primeira-dama. “É mais um exemplo do pensamento machista de que só as mulheres se preocupam com o que vestem e gastam com isso.” Acontece que a roupa desempenha um papel importante na comunicação dos governantes – de todos. O uso ou não de gravatas durante campanhas é um bom exemplo.
Pense em Lula (PT), quando ele era líder sindicalista dos metalúrgicos na região do ABC paulista, em 1985. Ele costumava aparecer de cabelos e barbas compridas e uma camisa aberta, algo bem distante da imagem atual do presidente: sempre de costume tradicional, cabelos penteados e barba aparada.
Ainda existe a premissa, igualmente falaciosa, de que a roupa não deve roubar a atenção do discurso ou da atuação política. Daí a preferência por trajes comedidos, cores neutras e cortes clássicos. “Não sinto que a minha roupa, o cabelo e a maquiagem diminuem a potência da minha voz”, afirma a deputada federal Erika Hilton (PSOL-SP). Primeira travesti negra em tal cargo na história do país, ela diz respeitar os códigos em situações formais, mas investe em cores, estampas e transparências quando se sente à vontade.
Ela já desfilou em eventos como a São Paulo Fashion Week e a Casa de Criadores, participações que não agradaram uma ala mais conservadora, que afirmou, principalmente nas redes sociais, que uma parlamentar não deveria gastar o seu tempo e imagem em uma passarela. “O mundo não é como o de ontem. Não podemos aceitar que políticos sejam cristalizados naquele lugar distante da sociedade. O político é uma pessoa normal, que gosta de moda, futebol e cerveja. Eu gosto de moda e não acho saudável abrir mão da minha subjetividade para cumprir um cargo”, afirma ela.
A ousadia nas escolhas do que se veste tem um preço: uma fatia do eleitorado já não disposta a lhe dar voto pode se afastar ainda mais. “Por outro lado, você consegue se comunicar melhor com o seu público-alvo”, analisa o marqueteiro Renato Monteiro.
“Expulsar o colorido e a diversidade serve para manter o conservadorismo.”
Erika Hilton
Para Erika, a manutenção de um traje específico no ambiente político diz muito sobre o sistema político em si. “Expulsar o colorido e a diversidade serve para manter o conservadorismo”, opina. Para a deputada, as imagens de parlamentares e governantes são uma estratégia para manter a hegemonia. “Existe uma repulsa histórica, pautada na ideia de que a política é feia e o governante um mentiroso corrupto. Isso afasta as pessoas de decisões que impactam a sua vida. Trata-se de um projeto para excluir a população de espaços políticos – esteticamente até.”
Se a sociedade não olha para a política e se sente atraída, como afirma Erika, a forma de se vestir pode ser, então, uma manifestação de resistência. É o que argumenta Brenda Barreto, professora de sociologia do Instituto Federal de Brasília: “Quebra, ou ao menos questiona, as relações de poder”. Para a doutoranda em ciência política pela Universidade Federal de Minas Gerais e especialista em gênero, Gabrielle Marques, a diversidade aproxima as pessoas. “A gente se vê representado em pessoas plurais, com cores e estilos diversos”, afirma.
Para a ministra dos povos indígenas, Sônia Guajajara (PSOL-SP), a moda é um instrumento de letramento étnico-racial. “As pessoas ficam interessadas ao nos ver com nossos adereços. Querem entender o que eles representam”, fala. Conhecida por usar cocares, colares e brincos de diferentes etnias indígenas, ela enxerga a moda como uma ferramenta de luta para os descendentes de povos originários. O uso do cocar já foi proibido dentro da Câmara dos Deputados. A decisão só foi revogada em 2023.
Anielle Franco (PT), ministra de igualdade racial, adora estampas vibrantes, tranças, colares e brincos grandes. “Até evitei vestir algumas coisas, mas nunca fui esse tipo de pessoa. Quando eu era adolescente, não ligava para o que achavam do meu cabelo, da minha roupa curta. Se ali era normal, aqui também deveria ser. As pessoas precisam entender que mulheres como eu, com roupa colorida, também fazem política.”
“Se uma política usa decote ou mostra mais o corpo, a sociedade, especialmente a parcela masculina, interpreta como falta de seriedade e competência.”
Renato Monteiro
A senadora Mara Gabrilli (PSD-SP) gosta de vestidos que modelam o corpo. Depois de sofrer um acidente de carro, que a deixou tetraplégica, em 1997, decidiu fazer um ensaio fotográfico nua em 2000. “Minha intenção era mostrar que uma mulher na cadeira de rodas também tem beleza. Queria desconstruir essa ideia de ‘coitadinha’”, recorda ela. “Cuido muito do meu corpo para ter um físico em forma e o uso como uma ferramenta de comunicação para motivar outras pessoas.”
Já a atual candidata à prefeitura de São Paulo, Tabata Amaral (PSB-SP), é conhecida pelo uso de tecidos leves, cores pastel e poucos acessórios. Aos 30 anos de idade, a sua preferência por peças atemporais é uma maneira de rebater com o seu visual o argumento da oposição de que seria jovem demais para governar a maior cidade do país. A reportagem entrou em contato com Tabata Amaral, mas não teve retorno até o fechamento desta matéria.
Em dias úteis, a norma do Congresso Nacional não permite bermudas, shorts, camisas sem mangas, minissaias e chinelos para os adultos. Recomendam-se calça, camisa com manga, vestido ou saia na altura do joelho. Em sessões solenes, são exigidos terno e gravata para homens. Não há menção específica sobre o que as mulheres devem usar, mas a preferência é por tons neutros, corte abaixo do joelho, peças mais soltas e pele coberta. “Instaurou-se informalmente um padrão, colocado há muito tempo por homens da elite”, explica Brenda Barreto, cientista política da UNB.
Se o mundo e a moda masculina mudaram nos últimos anos, o perfil de homens ocupando cargos políticos variou pouco – bem como o que eles vestem. “Temos políticos há 30 anos no mesmo cargo”, diz a ministra do planejamento e orçamento, Simone Tebet (MDB). E essa classe tem um perfil.
De acordo com a Justiça Eleitoral (2022), dos 235 candidatos ao Senado, a maioria é formada de homens brancos e casados. “Fui uma das duas únicas mulheres da Assembleia Legislativa em um estado conservador (Mato Grosso do Sul). Então minha escolha era sempre um terninho”, comenta ela sobre como se vestia para o primeiro cargo público que ocupou, como deputada estadual, em 2002.
“Se uma política usa decote ou mostra mais o corpo, a sociedade, especialmente a parcela masculina, interpreta como falta de seriedade e competência”, aponta Renato Monteiro. O nível de exigência em relação à imagem para elas é maior. “Os homens podem optar por visuais mais básicos”, completa o marqueteiro Marcelo Vitorino.
Tebet prefere o estilo clássico, quase nunca usa joias, dá preferência a tecidos sem estampa e usa pouca maquiagem. Para ela, isso lhe confere mais segurança. “É triste dizer isso, mas me proporcionou uma travessia mais tranquila, pensando na violência política”, diz.
Ela pondera, no entanto, que certa dose de formalidade – não o caretismo ou a falta de personalidade – é até importante no atual cenário político. “Vejo uma turma nova no Congresso com posturas nocivas, xingamentos e injúrias. Considerando os discursos que quebram o código de ética, se houver muita informalidade tenho até receio. O problema não é um chinelo ou uma bermuda, mas o que esses políticos trazem de intenção”, finaliza.