Em agosto deste ano, a marca dinamarquesa (D)ivision levou à passarela da semana de moda de Copenhague uma coleção repleta de bichos de pelúcia bordados, usados como broches ou pingentes. Contra a maré do minimalismo escandinavo, a etiqueta dos irmãos Nanna e Simon Wick se diz mais interessada em construir um “maximalismo urbano”.
Em fevereiro, Marc Jacobs transformou suas modelos em bonecas com cabelos e cílios gigantes, roupas de proporções enormes e tecidos com aparência rígida, afastada do corpo. Sobre a apresentação, que celebrava seus 40 anos de carreira, o estilista escreveu: “O que estou procurando é despertar algum tipo de reação emocional”. A ideia, segundo o próprio, era olhar para o mundo com a mente de quando tinha 9 anos.
Simone Rocha, inverno 2024. Division, verão 2025. GCDS, inverno 2024. Fotos: Divulgação
Semanas depois, a estilista irlandesa Simone Rocha teve modelos carregando bichos de pelúcia em seu desfile de inverno 2024 na London Fashion Week. E, já em Milão, a italiana GCDS apresentou uma coleção chamada Toys for Adults (brinquedos para adultos), cujo convite era uma Polly Pocket, uma boneca dos anos 1980, que aparecia também dentro de bolsas transparentes na passarela, ao lado de Hello Kitty e Chucky, o famoso boneco assassino do filme de mesmo nome de 1988, utilizados em roupas e acessórios. Segundo o diretor criativo Giuliano Calza, os elementos lúdicos eram uma resposta às críticas de que ele precisava amadurecer.
Bolsa, GCDS. Fotos: Divulgação
“O que estou procurando é despertar algum tipo de reação emocional.”
Marc Jacobs
Lançar mão de elementos nostálgicos não é exatamente uma novidade. Muitos criadores olham para a própria infância ou juventude em busca de referências. Para a primeira coleção ready-to-wear da Prada, em 1988, por exemplo, Miuccia Prada resgatou seu uniforme escolar, que inspirou a cartela de cores sóbria – um contraste com os tons vibrantes que dominaram a década de 1980 –, as saias na altura dos joelhos, os blazers acinturados e os sapatos oxford.
O estilista estadunidense Jeremy Scott, que ficou uma década à frente da grife italiana Moschino (de 2013 a 2023), é outro que com frequência trazia imagens da cultura pop e do universo infantil em suas coleções – do personagem Bob Esponja Calça Quadrada à boneca Barbie.
E há ainda marcas que nascem com a proposta de “nunca amadurecer”, como a brasileira Mnisis, fundada por Marina Costa. Desde o lançamento, em 2019, a estilista traduz suas experiências na infância em itens de vestir. Seus primeiros hits foram os acessórios de resina inspirados em gummy bears. “Crio peças para que as minhas clientes se divirtam como se voltassem no tempo”, conta Marina. Na coleção atual, ela brinca com laços, penduricalhos de miçangas e tecidos florais que remetem à “tapeçaria de vó”, nas suas palavras.
Acessórios, Mnisis. Fotos: Divulgação
Baseada em Nova York, a estilista Sandy Liang segue um pensamento parecido. Conhecida pelo estilo girly, a designer vive se inspirando em mangás, animes e outros desenhos animados japoneses – desde personagens da série Sailor Moon até protagonistas dos filmes do cineasta japonês Hayao Miyazaki, como Chihiro, de A viagem de Chihiro (2001) e Kiki, de O serviço de entregas da Kiki (1989).
Personagens, vale destacar, têm um potencial ainda maior de evocar lembranças e reviver sentimentos do passado. Além de fazerem parte do crescimento de muitas pessoas, eles carregam características humanizadas, com personalidades e estilos próprios, que geram identificação contínua com o passar das gerações. É só pensar na série Pokémon, lançada em 1995, e em Hello Kitty, criada em 1974 pela designer Yuko Shimizu, na empresa Sanrio.
Aliás, para celebrar os 50 anos de Hello Kitty, a companhia preparou uma série de colaborações com a moda. Entre elas, estão a da Adidas, que preparou versões customizadas de tênis famosos, como o Samba e o Superstar, e as da marca brasileira Alexandre Pavão, conhecida por suas bolsas de visual divertido, que aproveitou a deixa para apresentar sua primeira coleção completa de roupas, com moletons, camisetas, jeans e bonés inspirados na boneca.
Alexandre Pavão. Fotos: Divulgação
“Todos nós temos uma criança interior. Em tempos de estresse, queremos retornar a ela.”
Carolyn Mair
Mas a verdade é que, em determinados momentos da história, como agora, a nostalgia parece ganhar mais força. No livro The psychology of fashion (2018), a psicóloga Carolyn Mair escreve sobre como os momentos de crise podem influenciar o comportamento: “Todos nós temos uma criança interior, segundo a psicologia. Em tempos de estresse, queremos retornar a ela”.
Para Krizia Gatica e Mariana Ferreira, especialistas em tendências da consultoria WGSN, trata-se do desejo por tempos mais simples, familiares e divertidos. Em conversa com a ELLE, elas comentam que “estamos assistindo à crise do custo de vida se desenrolar em nível mundial. Vivemos um dos períodos mais desiguais da história, com grandes disparidades econômicas. Ao mesmo tempo, o mundo enfrenta guerras e alterações climáticas sem precedentes. Esse contexto de policrise sobrecarrega o consumidor. Como reação, temos esse movimento de resgatar elementos da infância”.
De acordo com as especialistas, existe ainda uma reflexão sobre o que significa ser adulto em algumas sociedades atuais e o questionamento da crononormatividade – a pressão social para atingir marcos como casar, comprar uma casa ou ter filhos até certa idade. “A ideia é propor microdoses de alegria para combater as adversidades da realidade”, explicam.
“A ideia é propor microdoses de alegria para combater as adversidades da realidade.”
WGSN
Vale lembrar que entre 2020 e 2021 a entidade filantrópica de saúde mental Mind entrevistou 12 mil pessoas no Reino Unido e, segundo a pesquisa, 88% dos jovens admitiram que a pandemia teve um efeito negativo em sua saúde mental. Nesse período, muitos deles retornaram aos seus quartos de infância, reatando laços com brinquedos e memórias.
Se a moda é o retrato do tempo, nada mais natural do que se apropriar da realidade. Daí a proliferação de brinquedos nas passarelas e na vida real. Nas últimas semanas de moda, o que mais se viu foram bolsas cheias deles, com direito a penduricalhos e customizações – uma tendência conectada à atriz e cantora britânica Jane Birkin, que costumava pendurar toda sorte de objetos em seus acessórios e ao styling do verão 2024 da Miu Miu, a marca queridinha do momento.
A influenciadora carioca Malu Borges é uma das entusiastas do visual. Em suas redes sociais, com milhões de seguidores, ela exibe suas bolsas adornadas com itens que vão de Hello Kitty a bonecas Barbie. Mas não é preciso ter a it-bag da vez ou comprar chaveiros grifados para fazer parte da tendência. O mais divertido é justamente escolher uma peça que carregue algum tipo de memória afetiva.
De olho nesse nicho do mercado, a especialista em acessórios de luxo Amanda Marcuson decidiu criar a Bag Crap, que oferece uma curadoria de penduricalhos vintage para as bolsas, garimpados em diferentes lugares do mundo. Personagens como o Ursinho Pooh, Teletubbies, Snoopy e Tamagotchis, entre os tesouros, são vendidos em kits pré-selecionados no e-commerce próprio.
Ao que tudo indica, quando a realidade fica dura demais, pode ser reconfortante ter o bicho de pelúcia ao qual você recorria na infância.
Acessórios com brinquedos em fotos de street style. Fotos: Divulgação