Novas histórias das roupas

Exposição em Nova York reflete sobre a herança cultural presente na moda de diferentes países a partir da diáspora africana

Neta de um alfaiate jamaicano, Grace Wales Bonner vem ganhando cada vez mais destaque na moda britânica, à frente da Wales Bonner. Não por acaso, sua marca masculina aposta na alfaiataria, mesclando referências europeias com um espírito afroatlântico. Um bom exemplo disso é um conjunto da sua coleção verão 2017, que homenageou Haile Selassie (1892-1975) – o ex-imperador da Etiópia, considerado um símbolo religioso na Jamaica –, exibido em Africa’s fashion diaspora. A exposição que ocupa o museu do Fashion Institute of Technology (Nova York), até 29 de dezembro, joga luz sobre a moda criada a partir da diáspora africana.

Antes de mergulharmos na exposição, vale lembrar que a diáspora é um conceito que passou a ter maior visibilidade recentemente para designar a migração forçada de algum povo ou etnia. Nesse sentido, quando falamos da diáspora africana nos referimos à migração forçada de suas populações para outros lugares do mundo, sobretudo devido ao processo de escravidão. Sem dúvida, esse fenômeno desencadeou uma história marcada por traumas e violências, mas também evidenciou a capacidade de recriação das culturas africanas, que não só mantiveram a sua essência viva como também conseguiram criar novas estéticas e identidades nesses territórios. E é justamente essa a perspectiva que a exposição quer destacar.

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Camiseta com obra de Kerry James Marshall estampada da coleção-cápsula do pintor com a Wales Bonner (2023); conjunto da coleção verão 2017 da Wales Bonner Fotos: Eileen Costa

“Na montagem, me foquei em como estilistas negros ao redor do mundo estavam usando os seus designs como práticas criativas para traduzir histórias e fazer conexões com outras partes da diáspora. Eles utilizam a moda para contar narrativas que foram esquecidas ou deixadas de fora da história tradicional da moda”, conta à ELLE a curadora Elizabeth Way (leia mais sobre ela abaixo).

Ao todo, são mais de 160 itens expostos – entre roupas, tecidos e acessórios em linguagens contemporâneas –, vindos da África, Europa e América do Sul e do Norte, além do Caribe, e criados por 15 estilistas africanos e afrodescendentes, como a sul-africano Sindiso Khumalo, a colombiana Lia Samantha e o francês Olivier Rousteing (diretor criativo da Balmain). A exposição é a primeira a mesclar criações de países tão diversos como Brasil, Bahamas, África do Sul, Inglaterra, França, Nigéria e os Estados Unidos, entre outros que contam com a moda negra.

São narrativas que transitam entre nove eixos centrais, englobando temas como ancestralidade, sustentabilidade, política, espiritualidade e visualidades negras transatlânticas. O designer sul-africano Thebe Magugu, por exemplo, participa da exposição com um vestido intitulado de Mãe e Filho, cuja estampa pop art traz uma figura materna usando uma vestimenta tradicional da cultura Tswana e segurando o seu pequeno, como uma forma de reverenciar a ancestralidade africana.

“Estamos trabalhando com os séculos 20 e 21 por causa da cultura material que temos, pois não há muitos registros que confirmem designers negros criando nos séculos anteriores. Esses vestígios tendem a ser muito raros”, explica Elizabeth. “Além disso, eu queria questionar o que significa ser um criativo negro nesse momento e como os estilistas estão expressando esse sentimento. Como curadora de moda, estou sempre tentando refletir como ela dialoga com questões que estão tão presentes na nossa cultura e história, ou na forma que nós, principalmente pessoas negras, estamos navegando no mundo.”

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Camiseta e saia de 2010 da Stoned Cherrie, da estilista sul-africana Nkhensani Nkosi; segmento da exibição no FIT (Nova York) Fotos: Eileen Costa e The Museum at FIT

A moda afro-brasileira na mostra

O Brasil ganha destaque em Africa’s fashion diaspora com a participação do historiador Jonathan Square, professor de cultura visual estadunidense na Parsons School of Design (Nova York) e pesquisador de moda afro-brasileira, que colabora com diálogos entre estilistas negros estadunidenses e brasileiros.

“Acredito que os afrodescendentes no Brasil são muito bons em falar sobre ancestralidade. Foi a partir da espiritualidade que conseguiram preservar muito da herança cultural africana em suas roupas e cultura. Algo que vejo menos nos Estados Unidos, por exemplo”, responde à ELLE quando questionado sobre o seu interesse no nosso país. “As cores, os tecidos, a joalheria e a prática de se vestir bem estão conectados ao culto de cosmologias afro-brasileiras. Uma das coisas que amo no trabalho de estilistas afro-brasileiros é que, por mais que se inspirem na ancestralidade, eles também tomam isso como ponto de partida e a levam para outros lugares.”

“Acredito que os afrodescendentes no Brasil são muito bons em falar sobre ancestralidade. Foi a partir da espiritualidade que conseguiram preservar muito da herança cultural africana em suas roupas.”
Jonathan Square

Luiz Cláudio Silva, da Apartamento 03, foi o único brasileiro escolhido para representar a moda afro do país na exposição. Desde 2023, um terno da coleção Ouro – anteriormente exibido na mostra ¡Moda Hoy! Latin american and latinx fashion design today –, foi adquirido pelo FIT para o acervo do museu. Na coleção, apresentada em 2022, ele representou alguns dos simbolismos que o ouro carrega na memória coletiva do Brasil. Com foco em técnicas artesanais, a Apartamento 03 eleva a cultura mineira e a cada coleção reforça a sua identidade como uma marca negra, a partir da representação de mitologias e celebração das histórias afro-brasileiras.

Para Elizabeth, a maior parte dos estilistas selecionados conta histórias negras por meio da moda, e o trabalho da Apartamento 03 reflete isso. “Esse é um exemplo de lindas histórias que podem ser contadas por meio das roupas. Dessa forma, eles estão refletindo também sobre o que é ser um designer negro numa sociedade multicultural”, conclui a curadora.

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O terno da coleção Ouro da Apartamento 03, de Luiz Cláudio Silva Fotos: Eileen Costa e The Museum at FIT

Para saber mais sobre a diáspora africana na moda:

Black Fashion Designers
A curadora Elizabeth Way acumula uma longa trajetória voltada para pesquisas sobre a moda afrodiaspórica, sobretudo no contexto estadunidense. Em 2016, colaborou com a exposição Black fashion designers, também sediada no museu do FIT, trazendo perspectivas de estilistas contemporâneos pouco reconhecidos pela historicidade da moda. Ela é autora do livro Black designers in american fashion (2021), que dialoga com a mostra e apresenta a trajetória desde as costureiras do século 18 até os estilistas negros do século 20, nos Estados Unidos.

Lia Samantha
A estilista colombiana evidencia por meio dos wax prints como as formas de criação se assemelham na América Latina. Esses tecidos industriais, conhecidos no Brasil como capulanas, ou ankara, são símbolos de afirmação política e de pertencimento para muitos afro-brasileiros. Trabalhar com eles foi a forma que Lia encontrou, via moda, para denunciar a falta de visibilidade em torno das populações negras na Colômbia.

Pathé’O
O alfaiate de Burkina Faso, também presente na exposição, vestiu diversas figuras políticas africanas – entre elas, o ex-presidente sul-africano Nelson Mandela. Ao longo dos seus 50 anos de trajetória profissional, utilizou a moda como uma forma de expressar o orgulho da herança cultural do seu país. O seu legado tem se expandido para além de suas fronteiras continentais e, em 2020, colaborou numa coleção para a Dior.

CIAFE
Council for International African Fashion Education é um conselho sediado na Inglaterra e em Gana voltado para pensar a educação de moda diaspórica africana no mundo. Parte das suas iniciativas inclui práticas para descolonizar os currículos de moda em universidades estadunidenses, europeias e no próprio continente africano. Anualmente, publicam inúmeros conteúdos acadêmicos, como artigos, relatórios e cursos, tudo com acesso gratuito. 

Entre a cabeça e a terra: arte têxtil tradicional africana
A Pinacoteca de São Paulo recebe essa exposição até fevereiro de 2025. Na mostra, 129 peças têxteis celebram diversas técnicas e criações artesanais, rompendo com o imaginário de que os tecidos africanos são necessariamente coloridos.

Ana Rafaella Oliveira é historiadora de moda afro-brasileira e especialista em história da África e da diáspora atlântica.