O pesadelo de Kafka é um Gregor Samsa bem tranquilinho, trabalhando numa startup de Pinheiros. Hoje foi acordado às 9 em ponto pela mãe, que acabou de fazer um suco verde à base de maçã. Com gelo. Tadinho, entra no escritório ao meio-dia e parece que o treino de corrida das segundas é um longão. Filho, né? Tem que cuidar. Nem lembrar do sonho de ontem lembra, deve ser a melatonina da Goop, já provaram? Ma-ra-vi-lho-sa.
O pesadelo da Gwyneth Paltrow é um convite da Truth in Advertising para o Alexandre de Moraes assumir a presidência da associação. Não, tô brincando. O pesadelo da Gwyneth Paltrow é o Alexandre aceitar o convite.
O pesadelo do Alexandre de Moraes… Não, vou arengar com o Alexandre de Moraes, não. Deixa o bichinho dormir. Já o pesadelo do Alexandre, o Grande, é estar vivo pra saber que mesmo tendo conquistado uma cacetada de coisa – da Grécia ao Egito antes dos 30, rei da Macedônia e aquela pompa toda -, na pesquisa do Google, ele vem depois do de Moraes, do Frota, do Pato e do Pires.
O pesadelo do pires é toda uma geração que agora só toma café em caneca e copo.
O pesadelo do café é ser requentado no micro-ondas depois de perder temperatura na garrafa térmica.
O pesadelo do micro-ondas é a farofa com ovo cozido.
O pesadelo da bandeja de ovo é o focado de academia que já começa o dia comendo uns quatro.
O pesadelo do focado de academia é a moda da calça larga, que não dá nem pra mostrar o resultado da trabalheira no quadríceps. E a glutamina fake, claro.
O pesadelo da glutamina fake é a Puravida ter sido comprada pela Nestlé. Vai baixar o preço. Vai, né? Será? Tomara.
O pesadelo do otimista é pensar que qualquer coisa baixa de preço, que nem as passagens de avião, agora que não dá pra despachar. As fotos da viagem todas com a mesma roupa, o cabelo torto porque não deu pra levar xampu e creminho na mala de mão.
O pesadelo do cabelo é sair de casa. Ah, tem uma festa hoje? Uma reunião presencial? Um date? Ótimo, vou ficar bem horrível pra essa pessoa aprender que eu não gosto de rua.
O pesadelo do inseguro é date em lugar com música alta. Além de ter que falar com o outro, tem que falar gritando no ouvido do outro.
O pesadelo do ouvido é beijo no ouvido.
O pesadelo do beijo é um jantar árabe com tabule e os verdinhos que sobram nos dentes.
O pesadelo do dente é o canal.
O pesadelo do canal são as gôndolas de turista.
O pesadelo do turista é o IOF na fatura do mês que vem.
O pesadelo do mês que vem são as rebarbas desse mês.
O pesadelo da barba é a falha.
O pesadelo da falha é a entrevista de emprego. Um defeito? O perfeccionismo, eu sou uma perfeccionista.
O pesadelo do recrutador do RH é perfil fechado no Instagram. Que também é o pesadelo do inseguro antes daquele date em lugar de música alta.
O pesadelo da música alta é caixa de som estourada.
O pesadelo da caixa de produto de supermercado é a mudança.
O pesadelo da caixa de mudança são os livros. Cabem muitos, fica um peso que ninguém consegue carregar.
O pesadelo do carregador da Granero e do cara que tira as malas do avião é a palavra frágil. Tudo frágil.
Conheci uma moça que tinha horror à palavra palavra. Dito assim, pensando na ordem das sílabas, esse tanto de As, esse “avra” no final, é meio esquisita mesmo. O pesadelo da moça que tinha horror à palavra palavra é a palavra palavra.
O pesadelo do corretor do Google Docs é quando você fica repetindo uma palavra 500 vezes. Ele grifa tudo, fica aperreadíssimo.
O pesadelo do ano 1500, se ele for bem antidrogas, é se ver escrito em números romanos.
O pesadelo dos romanos é a pizza romanesca da Cantina Cheiro de Pizza, em Salvador, vem com bacon, catupiry, presunto e champignon temperado.
O pesadelo dos cogumelos vermelhos são os Smurfs.
O pesadelo dos Smurfs é o Gargamel.
O pesadelo do Gargamel é o designer de sobrancelhas.
O pesadelo do designer da década de 1990 é o Hans Donner.
O pesadelo da hanseníase é o antibiótico.
O pesadelo do farmacêutico é o mercado livre da deep web.
O pesadelo do Deep Purple eu não sei qual é porque não tenho muito essa referência. Mas o do cabeleireiro é a referência de cabelo cacheadíssimo que o cliente liso mostra na tela do celular.
O pesadelo da tela do celular são o hidratante e o protetor facial. Feito o que dona Samsa passou em Gregor enquanto ele bocejava e tomava suco. Um rostinho perfeito desse. Filho, né? Tem que cuidar.
Roberta D’Albuquerque é psicanalista e coautora do livro Quem manda aqui sou eu (HarperCollins). Atende no seu consultório em São Paulo e escreve mensalmente neste espaço. Acompanhe em @robertadalbuquerque.