Certa vez, li um livro da Nina Garcia, editora-chefe da ELLE estadunidense, em que ela falava sobre o “fator Kate Moss”. Ali, a jurada do icônico reality show Project runway explicava a estética “toda errada” (mas que dava muito certo) difundida pela modelo britânica. Cabelo bagunçado, maquiagem borrada, roupa amassada… Esse estilo – hoje chamado de “indie sleaze” – foi um hit na adolescência de boa parte das meninas millennial. Eu, inclusa.
No mesmo panteão “messy girl” estavam Karen O., a vocalista do Yeah Yeah Yeahs, e a cantora-compositora Santigold. No Brasil, quem liderava o movimento era Luísa Matsushita, do Cansei de Ser Sexy – banda que, assim como esse visual, fez um comeback recente.
Sim, em 2024, para a minha alegria, a ideia de uma feminilidade imperfeita está em alta e, de repente, no TikTok, explodem vídeos que emulam o make de olhos pretos esfumados. A culpada? Na verdade, são muitas, mas Charli XCX talvez seja uma das principais.
Da esquerda para a direita, as cantoras Santigold, Karen O., Lovefoxxx e Charli XCX.
O sucesso do seu clipe para a faixa “360”, do álbum brat, deste ano, é prova disso. No vídeo, as garotas mais cool do cinema, da moda e da música – Quenlin Blackwell, Rachel Sennott, Julia Fox, Gabbriette, Hari Nef e até a veterana Chloë Sevigny – desfilam cabelos naturais ou descoloridos, cheios de textura, de frizz e de raízes “por fazer”, além de pálpebras manchadas de lápis ou de máscara de cílios que saiu do lugar… Com make assinado pela também rebelde Isamaya Ffrench, a meta, segundo elas mesmas, é “ser muito gostosa, mas de um jeito assustador”.
Em solo brasileiro, Laura Diaz é uma das melhores representantes desse lema. A Mamba Negra – festa eletrônica que ela ajudou a fundar em São Paulo – é a meca das esquisitas: todo mundo veste o que quiser, se maquia como quiser, usa o cabelo que quiser. Madrugada adentro, tudo vai se desmontar depois de horas e horas de pista – o importante é se divertir e não posar de bonita. “Sou uma metralhadora em estado de graça”, canta Diaz em “Gasolina”, um dos hits do Teto Preto, banda em que atua como vocalista.
Laura Diaz, uma das fundadoras da festa Mamba Negra e vocalista da banda Teto Preto.
Na última temporada de moda internacional, as passarelas corroboram o argumento. Em desfiles importantes, os fios arrepiados marcaram presença. Os casos mais impactantes estão na Prada, na Fendi e (surpreendentemente) nas tradicionalíssimas Chanel e Dior. “Eu queria criar o look de uma mulher ativa e dinâmica” disse Peter Phillips, diretor criativo da divisão de maquiagem da Dior ao The Zoe Report. Ali, um “delineador pós-academia” era o principal elemento do make. Além dele, vale olhar para as lentes bizarras de Inge Grognard na apresentação da Diesel e para o batom preto que apareceu na Area.
“Quando a tendência da clean girl surgiu, ela representava uma ruptura: será que a gente precisa de tanta base, de tanto cílios?”, lembra a maquiadora brasileira Branca Moura, responsável pelas belezas de desfiles de marcas como Hist e Another Place, no SPFW, em que o estilo messy girl reinou. “Depois de essa estética ser cooptada pelo mercado e ter se tornado uma grande mola propulsora para procedimentos estéticos, essa nova fase ‘bagunçada’ é uma retomada daquele argumento inicial. Uma vez que a gente tirou o que não precisava, o que é que a gente quer colocar? É um impulso de insubordinação. Você não precisa ser uma garota impecável, uma boneca. Você pode ser só humana.”
Belezas de Branca Moura para os desfiles de Another Place (nas laterais) e HIST (no centro).
Em julho deste ano, a jornalista Carrie Battan publicou uma análise na revista semanal The New Yorker sobre “o verão do pop das meninas”. Em seu texto, ela defende a ideia de que mulheres como Charli XCX, Sabrina Carpenter e Chapell Roan estão trazendo ao cenário musical um novo tipo de feminilidade. “Para as estrelas pop de dez ou 20 anos atrás, a imagem infantil e a feminilidade estereotipada apresentavam um dilema. Ao mesmo tempo que eram obrigatórias para a sua ascensão no cenário pop, eram também o motivo de chacota. Hoje as mulheres nessa posição olham para essa feminilidade com frieza e lançam mão desse visual sem deixar de criticá-lo. E isso está acontecendo também na cultura de massa.” Por mais ambíguo que possa parecer, a it-girl de hoje é também alternativa.