Era uma vez um conto de fadas qualquer. Nele, a bruxa aparece como a figura má, a antítese da heroína ou da princesa doce e inocente. Ela veste preto, às vezes roxo, usa um longo chapéu pontiagudo, sapatos bicudos, tem unhas compridas, nariz protuberante, cabelos longos e desarrumados, pele enrugada e, frequentemente, alguma verruga.
Histórias como essa, às quais somos apresentados desde a infância, carregam arquétipos fundamentais à construção da imagem feminina na sociedade. De forma simplista, esses relatos, ao estabelecer normas de comportamento e estéticas, dividem o mundo entre o bem e o mal, o bonito e o feio.
“Os contos de fadas têm um propósito civilizatório, reproduzindo uma cultura opressora”, diz Manuela Xavier, psicanalista, doutora em psicologia e ativista dos direitos das mulheres. “A bruxa é sempre uma mulher má, colocada do lado oposto ao da boa, ingênua, amada. Desde novas, aprendemos o que não ser. Não podemos ser feias, más, sozinhas ou egoístas.”
Manuela Xavier. Foto: Divulgação
Essa narrativa foi cuidadosamente construída e perpetuada ao longo dos séculos, contribuindo para uma visão maniqueísta das mulheres. Quem não se enquadra na candura vira alvo de condenação. A bruxa se tornou, assim, sinônimo de feiura, velhice, maldade e perversão.
Contudo o cenário vem mudando timidamente há algum tempo. Em uma reportagem da edição de outubro de 2022 desta ELLE View, as repórteres Bárbara Rossi e Ísis Vergílio exploram as evoluções sociais que contribuem para a reformulação de tais concepções. Agora o assunto volta a ganhar fôlego nas passarelas e nas redes sociais.
Do começo…
A origem dessa imagem estereotipada remonta à Idade Média, quando mulheres passaram a ser acusadas de bruxaria como uma estratégia de controle social. No livro Calibã e a Bruxa, a historiadora italiana Silvia Federici destaca como a caça às bruxas foi uma resposta à transição do feudalismo para o capitalismo. Ela observa que, antes desse período, as mulheres ocupavam um papel central nas comunidades: eram agricultoras, curandeiras e detentoras de conhecimentos transmitidos de geração em geração.
“Na minha família, as mulheres sempre tiveram muitos rituais. É difícil encontrar pessoas que compreendam essa vivência, e aí entra a conexão entre as bruxas. Nos encontramos e ouvimos umas às outras.”
Ale Valois
As que detinham conhecimentos sobre ervas medicinais e saúde obstétrica, práticas que mais tarde seriam absorvidas pelo saber científico, então restrito aos homens, eram vistas como ameaças. “As bruxas da Idade Média tinham conhecimentos que passaram a ser negados às mulheres. Elas eram parteiras, sabiam como fazer abortos, tinham um amplo conhecimento sobre a vida”, afirma Manuela. Em uma sociedade cada vez mais sob o domínio de estruturas de poder patriarcal (a família tradicional, a igreja, o Estado), isso não era só um problema, era uma ameaça.
O look bruxona
Desde então, a representação das bruxas está enraizada em uma simbologia visual apoiada pelo medo do envelhecimento e da sabedoria feminina. A pele enrugada e os traços acentuados pela velhice se relacionam com o fato de que muitas mulheres acusadas de bruxaria eram viúvas. A fisionomia cansada, então, foi associada à decadência e à proximidade com a morte, alimentando a ideia de que elas eram criaturas sobrenaturais e temíveis.
Por isso, toda a construção visual gira em torno do preto, cor que costuma simbolizar o luto, o mistério e o desconhecido. Na sociedade medieval, o claro-escuro desempenhava um papel crucial nas representações do bem e do mal. Quem usava roupas escuras era visto como alguém em comunhão com o submundo, com as forças ocultas. Em contraposição, os tons vibrantes começaram a ser associados à vitalidade, à pureza e às virtudes femininas idealizadas na época.
Nas cortes europeias, o preto também ocupava um lugar de destaque como símbolo de poder (os tingimentos eram caríssimos). O resultado é um paradoxo fascinante em que o proibido se misturava ao majestoso, conferindo a quem o vestia um ar de autoridade enigmática. Contudo, rainhas famosas por preferir o tom entraram para a história como pessoas duras e cruéis. Catarina de Médici e Elizabeth I que o digam.
A silhueta angular e pontiaguda, emblemática das construções visuais das roupas das bruxas, também evoca uma ameaça silenciosa: a figura da mulher que se recusa a se encaixar nos moldes convencionais. Enquanto curvas suaves e arredondadas remetem ao papel materno e à passividade associada ao feminino tradicional, as linhas afiadas e os chapéus cônicos sugerem perigo, resistência e uma independência feroz. Detalhes como o bico afilado dos sapatos, as garras estilizadas e a agressividade implícita no chapéu revelam uma mulher que, longe de apenas nutrir, está preparada para desafiar.
Na prática (e na passarela)
“É muito bom ser uma bruxa velha, de 54 anos. São os melhores tempos da minha vida”, celebra Ale Valois, designer carioca radicada em São Paulo, que comanda uma etiqueta homônima. Suas criações, desenvolvidas em pequena escala em seu ateliê, oferecem uma ampla grade de tamanhos e priorizam tecidos sustentáveis. Entre seus produtos, destacam-se as camisetas com dizeres provocativos, que se tornaram best-sellers da marca.
A estilista Ale Valois. Foto: Divulgação
“Na minha família, especialmente do lado da minha mãe, as mulheres sempre tiveram muitos rituais. Fui adaptando isso para a minha vida, conforme minhas próprias opiniões. É difícil encontrar pessoas que compreendam essa vivência, e aí entra a conexão entre as bruxas. Nos encontramos e ouvimos umas às outras”, fala.
A visão de Ale sobre a moda é profundamente influenciada por sua experiência como uma mulher mais velha em um campo dominado por vozes jovens. Para ela, a maturidade traz um entendimento mais profundo das relações interpessoais e do papel que a moda pode desempenhar na autoafirmação. “Quando alcançamos nossa autoestima, entendemos que não existe um único caminho, mas vários. Estar entre mulheres, caminhar com elas, trocar experiências, ter profundidade, confiar, oferecer colo e amizade umas às outras nos fortalece profundamente. Isso esclarece nossas fraquezas e potencializa nossas forças. Essa é uma grande sacada da bruxaria.”
A ressignificação da bruxa não é uma novidade, embora esteja ganhando força em plataformas como o TikTok, em que membros das gerações mais novas têm adotado a estética como uma forma de se distanciar dos padrões de beleza convencionais. Na moda, com sua capacidade de ressignificar narrativas, essas características já são exploradas há algum tempo como uma metáfora poderosa para a subversão do feminino domesticado. Designers, cientes desse simbolismo, revisitam repetidamente a figura da bruxa, criando um interessante contraste visual.
Entre as marcas que capturam esse visual recentemente, vale destacar o trabalho de Dilara Findikoglu, estilista turca que tem chamado a atenção pelo equilíbrio entre elementos góticos e contemporâneos. Dilara utiliza texturas diversas e técnicas refinadas para criar peças cheias de mistério, de espartilhos a jaquetas de couro. As silhuetas são dramáticas e o uso de texturas, como veludo, renda e couro, ganha um brilho extra quando combinado a bordados intrincados.
Da esq. para a direita: Rihanna, Dilara e Kim Kardashian. Foto: Divulgação
Queridíssima entre it-girls de diversas gerações e com forte presença nas redes sociais, a estadunidense Dolls Kill é conhecida pela irreverência e relação próxima com o universo das subculturas. Fundada em 2011, a label passou pela melancolia rebelde do Tumblr, pelo vampirismo da saga Crepúsculo e segue conquistando um público apaixonado pelos seus vestidos de vinil e botas com plataformas imensas. Aqui os símbolos de magia aparecem com um toque bem provocativo.
Com uma abordagem mais sóbria e enraizada no universo gótico, a polonesa Restyle, criada em 2009, construiu uma identidade marcada pela evocação de símbolos pagãos. Seus acessórios, corsets e vestidos – sempre pretos – celebram pentagramas, luas crescentes e figuras geométricas que remetem à antiga tradição esotérica europeia.
Como uma menção honrosa, vale destacar a The Vampire’s Wife, fundada em 2014 pela atriz e designer britânica Susie Cave. Com modelagens sofisticadas e técnicas artesanais minuciosas, a marca conquistou fãs como a cantora Florence Welch e a princesa de Gales, Kate Middleton, que já foi vista usando o icônico vestido Falconetti durante um evento oficial. A etiqueta é um ótimo exemplo de como incorporar elementos místicos sem apelar para caricaturas. Para a tristeza de vampiras, góticas e bruxonas, as atividades da empresa foram encerradas em maio deste ano.
Da esq. para a direita: Florence Welch, Susie Cave e Kate Middleton. Foto: Divulgação
Por fim, vale lembrar que a ressignificação da figura da bruxa na moda contemporânea não se limita a um revival estético. Toda essa reflexão é sobre evolução cultural e busca por liberdade – individual e coletiva. Ampliar o olhar sobre o significado da bruxaria é um convite a redescobrir narrativas que celebram a complexidade feminina, a espiritualidade e a ancestralidade. Permitir que mulheres vivam suas sombras e abracem suas facetas, mesmo as mais controversas e malquistas, é essencial para a construção de uma nova identidade. Afinal, toda história – mesmo as que desafiam os contos de fadas – merece ser contada. Essa é a grande magia.