Muito recatada, muito atenta

Como um vídeo viral se tornou a mais nova representação das estéticas ligadas a comportamentos conservadores.

“Viram só como eu faço a minha maquiagem para ir trabalhar? Very demure, very mindful”, diz Jools Lebron em um vídeo publicado na sua conta do TikTok no início de agosto. Desde então, o conteúdo já ultrapassou 50 milhões de visualizações e 4 milhões de curtidas. O sucesso foi tamanho que passou a pautar quase tudo que é postado no perfil de Jools – “como responder a drama de maneira recatada”, “como agradecer ao staff do hotel de maneira recatada”, “como andar pelo aeroporto recatadamente” – e já rendeu parcerias comerciais e aparições em programas de TV, como o Good morning America e o talk show de Jimmy Kimmel.

@joolieannie

#fyp #demure

♬ original sound – Jools Lebron

Em português, demure significa “recatada, quieta, modesta”. Segundo o Cambridge Dictionary, o termo é especialmente aplicável a mulheres “bem-comportadas”. A palavra viralizou, virou meme, mas, no fundo, é só mais um adjetivo para caracterizar os visuais e comportamentos conservadores ou tradicionais, em ascensão nos últimos anos. Uma versão bem-humorada da tal moda recatada.

Professora da Universidade Belas Artes e cofundadora do The Modest, o primeiro marketplace de moda modesta do Brasil, Viviane Pratis explica que as peças dessa estética variam conforme a perspectiva cultural, religiosa ou pessoal de cada um. No aspecto religioso, o objetivo é transmitir “decência” e “respeito”, sem despertar o desejo no outro. “Se é sensual, não é modesto”, explica. “O público cristão, incluindo católicos praticantes, tem buscado roupas que não expõem o corpo demasiadamente. Como evangélica, posso afirmar que nem toda roupa evangélica é modesta.” 

De acordo com ela, os trajes evangélicos são caracterizados pelo uso de saias, vestidos e blusas com mangas longas e podem incluir comprimentos acima do joelho e silhuetas justas. Já os modestos, não. “Existia um preconceito muito grande em relação à moda modesta, mas hoje ela tem se tornado um motivo de orgulho, principalmente entre as mulheres”, diz. “Tanto que muitas influenciadoras não cristãs têm aderido ao visual como uma forma de expressar seus princípios e valores. O empoderamento feminino não se dá exclusivamente por meio da exposição demasiada do corpo.”

Segundo o IBGE, até 2010 mais da metade dos brasileiros se considerava católico. Esse número, porém, está em queda: entre 1970 e 2010, o grupo diminuiu de 91,8% para 64,6% da população nacional. O segmento evangélico, por sua vez, cresce a todo vapor. Eles eram 15,4%, em 2000, e tornaram-se 22,2% dez anos depois.

O e-commerce Shopee divulgou recentemente que, nos últimos 12 meses, as buscas pelo termo “legging academia com saia evangélica” tiveram o aumento de 600%. “Moda evangélica” cresceu 400% e “saia calça fitness evangélica”, 270%. No TikTok e no Instagram, as hashtags #ModaEvangelica, #ModaModesta, #LookDoCulto e #ModaCrista reúnem milhões de postagens e visualizações.

“Tem uma virada conservadora muito grande acontecendo.”
André Alves

Psicanalista, escritor e pesquisador de cultura e comportamento, André Alves observa a fé passar por um processo de rebranding. “Existe um casamento entre a cultura de influência e o conservadorismo neopentecostal implicado no desempenho máximo”, opina. É algo na linha de “Deus não quer que você seja somente feliz, quer que você prospere, seja a sua melhor versão”. “Tem uma virada conservadora muito grande acontecendo, e podemos nos perguntar se isso não seria uma reação a um início de século bastante progressista, em que muitas questões e convenções foram mudadas. É significativo que haja muitos homens jovens dizendo que ‘o feminismo foi longe demais’. É uma dança curiosa de dois passos para frente e três para trás.”

Suzana Avelar, professora de moda e têxtil da Universidade de São Paulo, associa a tendência demure a uma reportagem publicada pela revista Veja em 2016. Intitulada Bela, recatada e do lar, a matéria era sobre Marcela Temer, que estava perto de se tornar primeira-dama do Brasil, durante o desenrolar do processo de impeachment da então presidente Dilma Rousseff. O título se mostrou como um aperitivo para o que viria nos anos seguintes, com a ascensão da extrema direita e do fundamentalismo cristão.

Para além do sucesso causado pela lógica algorítmica, a narrativa comedida da estética remete ao crescimento da religião combinado ao estado, mas não só isso. É importante lembrarmos do aspecto mercadológico. Coordenadora da graduação em moda da Fundação Armando Álvares Penteado, Maíra Zimmermann argumenta que o Brasil é um país muito conservador e seria difícil tentar desconectar a religião do conservadorismo. “Moda é a inovação, então são ideias conflitantes”, analisa ela. 

Zimmermann pontua que o demure talvez tenha só virado mais uma brincadeira de rede social, visto que elas são os ambientes ideais para o marketing e para uma mera catalogação que atende aos interesses do mercado. “Qualquer pessoa pode colocar a sua vida ali, então elas fazem uma curadoria do que querem mostrar.”

André Alves lembra que roupas e maquiagens “muito modestas, muito atentas” não são necessariamente contemporâneas ao vídeo viral. O tsunami vintage que ganha forma nas tendências quiet luxury, novo preppy e grandpacore mostra isso – suas peças vêm às vezes literalmente do passado, propondo looks discretos, atemporais e frequentemente compostos de peças de brechó, como camisas polo, peças de alfaiataria e mocassins, que remetem a uma atitude de decoro. 

Alguns desfiles recentes nos ajudam a ter uma dimensão do cenário. Em junho deste ano, a Chanel apresentou uma coleção de alta-costura dramática, mas ainda assim discreta. Blazers com mangas bufantes, casacos longos com bordados brilhantes e tailleurs de tweed adornados com joias propunham looks chiques às mulheres que talvez queiram dispensar a exibição excessiva de pele. No prêt-à-porter, desfilado no início deste mês, o clima era mais leve, porém sempre comedido.

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Da esq. para a direita: Chanel inverno 2024 e Chanel verão 2025 Fotos: Getty Images

Na mesma temporada, a de verão 2025, a estreia de Alessandro Michele na Valentino trouxe boas ofertas modestas (exceto os looks à la lingerie) com um perfume vintage. E não tem como esquecer as “ladies who lunch” de Carolina Herrera e da discrição deluxe da The Row. Até o eterno roqueiro obcecado pela cultura jovem Hedi Slimane aderiu à onda em sua última coleção para a Celine.

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Da esq. para a direita: Celine, Carolina Herrera, The Row e Celine, tudo verão 2025 Fotos: Agência Fotosite

Assim como essas estéticas propõem o clássico como algo seguro, diz Alves, a religião, à sua maneira, também o faz. “As instituições derreteram, os relacionamentos estão líquidos, a desigualdade econômica é extrema e temos países em guerra”, finaliza.