O corpo que a gente habita

Filmes recentes como “Imaculada”, “A primeira profecia”, “Pisque duas vezes” e “Alien: Romulus” refletem os horrores e as angústias particulares e coletivas das mulheres.

O cinema de terror parece estar ecoando o medo que é viver num corpo feminino em 2024. Basta examinar algumas das produções lançadas neste ano para concluir que temas como abuso, gravidez indesejada e envelhecimento numa sociedade pautada pela ideia da juventude eterna dão o tom de clássicos readaptados e roteiros inéditos, fincados na fragilidade da mulher diante do inexplicável. 

Imaculada Diamond Films 5

Sydney Sweeney, em Imaculada. Foto: Divulgação

Em dois deles, Imaculada, dirigido por Michael Mohan, com Sydney Sweeney no papel principal, e A primeira profecia, um prólogo de A profecia (1976), dirigido por Arkasha Stevenson e com Nell Tiger Free como protagonista, a história é praticamente a mesma: duas jovens noviças estadunidenses vão a Roma para se tornarem freiras e se deparam com o horror de engravidar sem saber como. Lançados com menos de dois meses de intervalo no Brasil, são histórias sobrenaturais, mas que nos fazem pensar sobre uma gravidez indesejada.

TFO 07276

Sonia Braga e Nell Tiger Free, em A profecia Foto: Moris Puccio

Uma gravidez misteriosa e indesejada também é o fio condutor de Alien: Romulus, de Fede Alvarez, mais um capítulo da série iniciada com Alien – O 8º passageiro (1979), de Ridley Scott, que originalmente já tratava de estupro e bebês monstros. E na série Apartamento 7A (Paramount+), dirigida por Natalie Erika James e um prelúdio de O bebê de Rosemary (1968), clássico de Roman Polanski, o medo de gerar um ser indesejado aparece na forma de um bebê, que talvez seja o próprio capiroto.

romulus dtrl4 v16 s240 t 240528 g r709f.089276L

Cailee Spaeny em Alien: Romulus. Foto: Divulgação

Já em A substância (2024), de Coralie Fargeat, com Demi Moore e Margaret Qualley, o horror é o envelhecimento e a perda da beleza. E em Pisque duas vezes (2024), estreia na direção da atriz Zoë Kravitz, o medo é a impossibilidade de sair de uma relação infernal: a garçonete Frida (Naomi Ackie) é convidada por um bilionário (Channing Tatum) para sua ilha particular e fica presa ali, sem seu consentimento.

BT 15197 R 1

Naomi Ackie e Channing Tatum, em Pisque duas vezes Foto: Divulgação

Além dessa safra de produções de 2024, nos últimos anos, o corpo da mulher tem sido tema constante de filmes de terror. Mas por que isso está acontecendo? A seguir, um time de especialistas ouvidos pela ELLE explica esse fenômeno.

Filmes de terror sobre mulheres não são exatamente uma novidade

É só dar uma olhada na quantidade de prólogos de produções dos anos 1960 e 70 lançadas em 2024 para ver que body horror (gênero que mostra violações explícitas do corpo) e terror sobre gravidez não são exatamente assuntos inéditos. “Muitos desses filmes antigos estão interessados na metamorfose. Eles exploram gravidez e nascimento de uma maneira que demonstra ansiedade em relação aos corpos, suas capacidades e às nossas origens. Quase todos foram escritos e dirigidos por homens, então talvez a questão seja: essa ansiedade é de quem?”, diz Erin Harrington, autora do livro Women, monstrosity and horror film: gynaehorror (Mulheres, monstruosidade e o cinema de horror: terror ginecológico) e professora sênior do departamento de inglês da Universidade de Canterbury, na Nova Zelândia, em entrevista à ELLE.

A diferença, em muitos dos novos filmes, é que vários são dirigidos por mulheres – o que não garante, logicamente, uma perspectiva feminista ou mesmo original. Mas esses longas com frequência são mais pessoais, com detalhes da experiência feminina. Outra novidade é uma maior atuação e expressividade das personagens, que muitas vezes escolhem caminhos surpreendentes ou antes condenáveis. Hoje é frequente que elas não sejam nem vítimas indefesas nem mesmo mocinhas, mas vilãs ou pelo menos coniventes.

A indústria está interessada no gênero horror

Para Heidi Honeycutt, historiadora do cinema e autora de I spit on your celluloid: the history of women directing horror movies (Eu cuspo no seu celuloide: a história de mulheres dirigindo filmes de terror), há, sim, uma tendência do cinema de horror lidando com o corpo feminino. “Mas sempre houve mulheres fazendo body horror e homens também”, afirma Honeycutt à ELLE. “Mas agora cineastas mainstream estão se focando no body horror de maneiras inéditas, com cenas mais explícitas e não sexualizadas.” Em sua opinião, isso se dá porque o cinema é uma indústria. “Os cineastas fazem seus filmes com honestidade. Essas histórias vêm de um desejo artístico genuíno. Mas apenas os projetos que as pessoas com dinheiro querem fazer serão levados à tela, e para eles no momento o terror é rentável.”

Vale lembrar que nem sempre as produções do gênero têm bilheterias exorbitantes, mas seus orçamentos são bem mais modestos, então o lucro costuma ser grande.

As produções de terror refletem a sociedade

PhDs em sociologia pela Universidade do Colorado Boulder, Marshall Smith e Laura Patterson criaram o curso universitário Gênero, Raça e Serras Elétricas: A Sociologia dos Filmes de Terror, em que também são professores. A dupla decidiu produzir o podcast Collective Nightmares, cujo título vem de uma frase do crítico de cinema e acadêmico Robin Wood. “Ele propôs a ideia de que os filmes de terror podem ser entendidos como pesadelos coletivos de uma cultura. Nós achamos isso infinitamente intrigante”, disse Smith à ELLE. “Gostamos dessas produções de terror porque elas são um fórum pelos quais podemos confrontar os medos e as preocupações de uma cultura diretamente.”

O horror como forma de lidar com nossos medos

Olhando para determinada época, é possível identificar um demonstrativo dos tabus daquele período, segundo Diego Amaral Penha, psicanalista, doutor em psicologia clínica e mestre em psicologia social. Por isso, é comum alguém dizer não gostar desse tipo de produção. Normalmente, é porque o filme de terror contém algo que aquela pessoa rejeita. “E a função deles é justamente esta: lidar com aquilo que é recusado socialmente. Eles são espaços protegidos para tratar de assuntos vetados ou censuráveis”, diz Amaral Penha. 

O corpo feminino é histórica e culturalmente considerado misterioso pelos órgãos sexuais não serem tão visíveis, além de ele passar por transformações que o corpo masculino não enfrenta. A gravidez traz consigo a falta de certeza sobre quem é o pai, resvala na ideia da Imaculada Concepção do cristianismo e chega à evidente mudança física. “Há uma idealização da gestação que é violentíssima para as mulheres, e a experiência da gravidez é assustadora. A gente não dá espaço para que as mulheres falem sobre isso, sobre algo começar a crescer dentro de você, a ter vida própria e a dar a sensação de que vai te rasgar”, acrescenta o psicanalista. 

É muito comum que mulheres grávidas sonhem estar gerindo um monstro. O cinema é, então, um ambiente controlado em que esses medos podem ser colocados para fora. “É como um parque de diversões, onde você despenca lá de cima e grita. Há algo de orgástico e catártico nisso”, explicou a psicanalista e escritora Luciana Saddi.

A perda de controle sobre o corpo feminino  

Sendo assim, o cinema que está sendo produzido hoje reflete os tabus da nossa sociedade, nossos pesadelos coletivos, e expiam medos particulares que muitas vezes expandem para a cultura em geral. A perda da juventude, por exemplo, e da beleza é um terror particular amplificado pela e para a cultura.

“Os filmes estão explorando o que ocorre quando você não tem autonomia sobre o que acontece com o seu corpo, quando você foi controlada ou objetificada, ou quando há algo sinistro acontecendo”, avalia Erin Harrington. “Todas essas produções, em algum nível, tratam de paranoia. E, de uma forma estranha, há algo reconfortante nisso, porque as experiências femininas são constantemente minimizadas. Ouvimos que estamos exagerando, que somos histéricas. E esses filmes dizem que não, que nossos instintos estão corretos, que definitivamente há algo de errado acontecendo.”

Valeria Villegas Lindvall, PhD especialista em cinema de horror latino-americano com um foco feminista e decolonial, concorda. “Esses novos filmes são diferentes dos antigos em grande medida porque colocam o público em uma posição em que perguntamos: quem é o monstro na verdade? Talvez não sejam essas mulheres. Talvez seja um sistema que nos coloca nessas situações exaustivas.”

Não é preciso ir muito longe para pensar que as redes sociais aumentaram a pressão sobre as mulheres para se manterem jovens, bonitas e desejáveis. Ainda mais para alguém que vive da imagem, como a atriz Elisabeth, interpretada por Demi Moore em A substância.

TheSubstance Still 03

Demi Moore, em A Substância. Foto: Divulgação

O movimento #MeToo também expôs os abusos de poder masculinos dos mais variados tipos, do gaslighting ao mansplaining, chegando até o assédio sexual e o estupro. A consciência de que isso é algo disseminado em todas as classes, etnias e países despertou uma raiva que aparece em longas como Pisque duas vezes.

E Imaculada, A primeira profecia e Alien: Romulus, sendo ou não prólogos de filmes de décadas anteriores, são espelhos de medos muito específicos referentes ao direito das mulheres sobre seus próprios corpos. O Caso Roe vs. Wade, que legalizou o aborto nos Estados Unidos, em 1973, foi derrubado há dois anos pela Suprema Corte do país. Sendo assim, os estados ficaram livres para decidir sobre o direito ao aborto. 

“Hollywood sempre evitou tratar do assunto por causa da polarização”, disse Marshall Smith. “Mas desde a queda de Roe vs. Wade, que provocou na verdade uma criminalização do aborto em grande parte dos Estados Unidos, esses tópicos estão na psique cultural estadunidense. E os cineastas independentes estão confrontando algumas das preocupações com a gravidez.”

Além do cinema estadunidense

O Caso Roe vs. Wade é especificamente estadunidense, mas a luta pela autonomia do corpo feminino é mundial. Em alguns lugares, há outras interseções, como no Brasil e na América Latina em geral. “O cinema latino-americano está refletindo não só os horrores de ser mulher, como poder dar à luz, precisar de um aborto ou poder exercer sua sexualidade livremente”, diz Valeria Villegas Lindvall. “Há uma ligação entre a misoginia, as relações raciais, o capitalismo e o empobrecimento de mulheres e pessoas LGBTQIA+ racializadas.” Ela destaca, no cinema brasileiro, filmes como Medusa (2021), de Anita Rocha da Silveira, sobre a pressão que sofre uma jovem mulher (Mari Oliveira) para ser bela e bem-comportada, e As boas maneiras (2018), de Marco Dutra e Juliana Rojas, sobre Clara (Isabél Zuaa), uma mulher negra e periférica contratada para ajudar Ana (Marjorie Estiano), que vive em um apartamento de luxo e espera um bebê.

as boas maneiras

Isabél Zuaa e Marjorie Estiano, em As boas maneiras. Foto: Divulgação