“Olá, sou Chucky, seu amigo até o fim.” Embalado em uma caixa amarela, o boneco de cabelo ruivo e macacão jeans promete ser fiel e companheiro em todas as aventuras. Mas isso muda quando o brinquedo inanimado e inofensivo é possuído pelo espírito do serial killer Charles Lee Ray (o nome vem da junção de três assassinos famosos: Charles Manson, Lee Harvey Oswald e James Earl Ray), que foi morto pela polícia e está em busca de vingança.
Essa é a premissa de Brinquedo assassino (1988), filme dirigido por Tom Holland e criado por Don Mancini. De lá para cá, o protagonista, dublado por Brad Dourif, já morreu e voltou à vida em outros seis e uma refilmagem, que renderam milhões de dólares nas bilheterias e o transformaram em um dos antagonistas mais populares do terror.
Em mais de 30 anos de história, ele cometeu todo tipo de crime, deixou um incontável número de corpos pelo caminho, se casou com a boneca Tiffany, interpretada pela atriz indicada ao Oscar Jennifer Tilly (que foi a principal inspiração para a personagem), e teve um filho de gênero fluido chamado Glen (ou Glenda).
Fora da ficção, virou fantasia clássica de Halloween, ganhou uma infinidade de produtos licenciados, incluindo uma colaboração com a Hello Kitty, e inspirou livros e histórias em quadrinhos.
“Entre tantos antagonistas memoráveis que habitam o universo do terror, Chucky se destaca justamente pelo seu carisma. Ele tem algo que não estávamos acostumados a ver em filmes do tipo slasher, que são marcados por assassinos silenciosos e sem expressão, como Michael Myers, de Halloween (1978). Sua personalidade contribuiu muito para que os fãs criassem uma espécie de vínculo emocional com o vilão”, diz Gabriela Müller Larocca, doutora em história pela Universidade Federal do Paraná (UFPR) e pesquisadora de cinema de horror.
Em 2023, ela foi responsável pela tradução de Chucky: o legado do brinquedo assassino (Darkside), livro com mais de 600 páginas, que reúne detalhes de bastidores, entrevistas e ensaios sobre o personagem. “Chucky não é apenas malvado, mas também engraçado, debochado e obstinado. De certa forma, ele engloba muitas características humanas, mesmo que nem sempre positivas e corretas. Fica praticamente impossível não começar a torcer por ele em algum momento”, afirma Gabriela, que também é apresentadora do podcast República do Medo.
Para a historiadora, a capacidade de adaptação de Chucky é um dos principais motivos que ajudaram a franquia de terror a se consolidar no imaginário popular. “Ao contrário de outras, que acabaram replicando a mesma fórmula em suas sequências e ficaram presas nos mesmos enredos, Brinquedo assassino soube se renovar e experimentar outros estilos sem perder sua essência”, avalia. “Enquanto os três primeiros filmes optaram por um terror mais sério, A noiva de Chucky (1998) e O filho de Chucky (2004) abraçaram um lado mais cômico, metalinguístico e até mesmo camp. Apesar dessa mudança de tom, a trama nunca perde sua continuidade. Isso mostra como Don Mancini sempre soube para qual direção queria levar Chucky e como ele se manteve fiel a isso.”
Jennifer Tilly nos bastidores de A noiva de Chucky, de 1998.
Aliado queer
A franquia ganhou ainda mais força e reconhecimento dos fãs por meio de personagens e temas pertinentes à comunidade LGBTQIAP+, adicionados ao longo dos filmes. “Brinquedo assassino não foi a primeira franchising de terror a trazer subtextos queer e Mancini não é o primeiro cineasta gay do gênero, mas a forma com que Chucky abraçou a comunidade LGBTQIAP+ é algo bastante emblemático”, explica Gabriela.
“É possível enxergar como os longas sempre discutiram temas relevantes, como parentalidade, bullying, masculinidade tóxica, homofobia e identidade de gênero de maneira natural, relevante e divertida, sem deixar o terror de lado”, defende. “Com isso, Chucky se transformou em uma das franquias mais amigáveis e receptivas ao público LGBTQIAP+, principalmente por causa do envolvimento direto de Mancini, que garantiu que esses tópicos fossem representados de forma positiva.”
Em 2021, o protagonista ganhou uma nova chance de atormentar os vivos com a estreia de uma série homônima produzida pelo canal estadunidense SyFy, com Mancini no comando. A trama segue os acontecimentos de Culto de Chucky (2017), a última vez que o boneco havia aparecido nas telonas, e mostra o personagem-título ajudando um garoto que sofre bullying por ser gay.
“Essa série foi um grande dedo do meio para os caras que me perseguiam na época da escola. Nas minhas redes sociais, onde estão as pessoas que estudaram comigo, posso esfregar isso na cara delas e finalmente dizer ‘ser gay é legal’”, disse Mancini em entrevista à Folha de S.Paulo na época da estreia.
Exibida no Brasil pelo Disney+, a produção também foi responsável por apresentar Chucky para uma nova geração, além de manter o espírito irreverente e sombrio deixado pelos filmes. “O alcance simultâneo entre um público antigo e um mais novo, fisgado pelos protagonistas jovens e pela trama sobre amadurecimento, identidade de gênero e a descoberta da sexualidade, definitivamente influenciou o sucesso da série”, afirma Gabriela.
Embora tenha sido bem recebido pela audiência e crítica, o seriado foi cancelado após a terceira temporada, lançada no final do ano passado, quando o brinquedo havia se infiltrado na Casa Branca e estava morando com a família do presidente dos Estados Unidos.
O anúncio foi feito pelo próprio criador nas redes sociais e acabou gerando uma campanha intitulada #RenewChucky, que busca apoio para dar continuidade à produção. “Estou de coração partido com a notícia de que Chucky não terá uma quarta temporada, mas sou imensamente grato pelos três anos incríveis que tivemos juntos. Chucky sempre voltará. Ele sempre retorna”, escreveu Mancini.
Don Mancini, criador da franquia Brinquedo assassino.
Outros brinquedos macabros
Chucky não foi o primeiro brinquedo a fazer sucesso no terror. Na antologia Na solidão da noite (1945), um boneco chamado Hugo induz seu dono a cometer crimes. Outra história parecida é a premissa de Um passe de mágica (1978), protagonizado por Anthony Hopkins, que interpreta um ventriloquista que mata sob a influência de seu companheiro.
Uma década depois, Bonecos da morte (1989) deu início a uma saga, que posteriormente ficou conhecida como Mestre dos brinquedos. Já Boneca assassina (1991) foi um dos que seguiram a onda de Brinquedo assassino, sobre uma família perseguida por uma boneca possuída.
Na década de 2010, foi a vez de Annabelle ganhar popularidade. Inspirada em um caso do início do século 20, sobre uma boneca que assombrou uma enfermeira, passou por um exorcismo e atualmente está em exposição em um museu nos Estados Unidos, a figura apareceu pela primeira vez na saga Invocação do mal (2013). O longa do diretor James Wan é baseado na vida dos investigadores paranormais Ed e Lorraine Warren. Após o sucesso, ela já teve três filmes próprios: Annabelle (2014), Annabelle 2: a criação do mal (2017) e Annabelle 3: de volta para casa (2019).
Depois dela, veio M3GAN (2022), também com produção de Wan, que mostra o caos gerado por um protótipo de uma boneca dotada de inteligência artificial que vai parar nas mãos de uma garotinha órfã. O look e uma coreografia feita pela personagem viraram trend no TikTok e garantiram que uma sequência fosse encomendada para 2025.