A realidade pós-reality

Mais do que entretenimento, os reality shows tiveram uma influência fundamental na cultura pop deste século. E, talvez, tenham afetado até os rumos da política mundial. 

Duas grandes novidades sacudiram e abalaram a televisão no século 21. Uma, de caráter tecnológico, foi a revolução digital, que mudou a forma como se assistem novelas, séries, partidas de futebol e tudo mais. As plataformas de streaming hoje oferecem catálogos de tamanho ilimitado, permitem que o espectador veja o que quiser quando bem entender, e no aparelho de sua preferência – no celular, no laptop, no computador ou até mesmo na TV.

A outra grande novidade se deu no campo do conteúdo e precedeu a revolução tecnológica. Falo do reality show. O termo designa os programas sem roteiro, protagonizados por gente comum, supostamente vivendo situações reais e dramáticas. Gente que estuda a televisão afirma que, a rigor, já havia programas com essas características no rádio, na década de 1940. 

Dois programas costumam ser citados como marcos da pré-história dos realities na TV: Uma família americana e The real world. O primeiro foi exibido em 1973, na TV pública dos Estados Unidos, e contou em 12 episódios, o resultado de 300 horas de filmagens, o cotidiano de uma família de classe média alta da Califórnia. O segundo, lançado em 1992, pela MTV estadunidense, buscava documentar o cotidiano de jovens adultos vivendo num mesmo apartamento em Nova York. Esse reality teve 33 temporadas, até 2019.

A partir do ano 2000, primeiro com Survivor (no Brasil, rebatizado de No limite) e depois com Big Brother, o reality show promove uma erupção. Como afirma uma reportagem recente da revista Time, que busca elencar os 50 programas mais influentes do gênero até hoje, “os reality shows remodelaram o nosso mundo, quer gostemos ou não”. É verdade em parte. Concordo com a revista quando ela fala sobre como o mundo das celebridades e da política foi impactado pelo sucesso dos realities. 

no limite tribos 1

A ascensão de figuras anônimas, sem nenhum talento artístico específico, famosas por serem famosas, é uma consequência direta dos realities e da revolução digital, que ofereceu também, além do streaming, as mídias sociais. Kim Kardashian, cuja família protagoniza o mais célebre reality dedicado à vida das celebridades, tem hoje o patrimônio de 1,8 bilhão de dólares.

No Brasil, nenhum outro reality promoveu tanta mobilidade social e turbinou tanto a fama de anônimos quanto o BBB. Juliette e Gil do Vigor, protagonistas da edição 21, se tornaram influencers respeitados e dínamos em matéria de publicidade. O que falam e fazem tem impacto, gerando reações e debates.

gil e julliete bbb

Vigiados por câmeras, embalados por bebidas alcoólicas e clima de festa, os participantes dão vazão aos seus piores sentimentos e traços de caráter.  Tanto nos EUA quanto no Brasil, é comum esse tipo de programa gerar situações chocantes e debates acalorados entre o público sobre temas importantes, como racismo, homofobia, violência sexual, machismo e tantos outros problemas. É a TV de baixa qualidade, na visão de muitos, pautando o debate público.

“É a TV de baixa qualidade, na visão de muitos, pautando o debate público.”

Pensando em diversão, meus realities favoritos são os mais falsos. Sempre falei mal, mas nunca deixei de dar muita gargalhada com Mulheres ricas e The bachelor, por exemplo. Os dois são versões de programas estadunidenses, também célebres pela baixaria e mentira que exibem. São atrações que prometem mostrar a realidade, mas não conseguem disfarçar o esforço para criar intrigas, promover brigas e gerar crises de choro entre os participantes. 

Há uma nova geração de realities de muito sucesso, que são o fruto do casamento do streaming com o gosto da geração millennial. São programas como De férias com o ex, Casamento às cegas, Império da ostentação e Ilhados com a sogra, entre outros.  Vários flertam com o soft porn e buscam situações-limite, na fronteira do excesso de exposição da imagem, do abuso e do constrangimento. 

Das centenas, talvez milhares de realities nascidos depois de Survivor, nenhum causou o mesmo impacto que O aprendiz. Muita gente se pergunta até hoje se esse programa foi o responsável pela primeira vitória de Donald Trump na eleição presidencial dos Estados Unidos, em 2016, e sua escalada de poder e influência.

Para um grupo específico de pessoas, a equipe técnica do reality show, não há dúvida a respeito, como relata a jornalista e crítica Emily Nussbaum no livro Cue the Sun! – The invention of reality TV. Uma operadora de câmera lamentou que o programa tenha criado “uma falsa imagem” de Trump, então um empresário polêmico e celebridade, que apresentou o programa entre 2004 e 2015. “Isso me dói porque nós criamos esse idiota”, disse um operador de áudio. 

Trump Em O Aprendiz 2009 getty images

Jamie Cannifer, que começou no reality como um produtor e, na sexta temporada, assumiu o papel de showrunner, resumiu melhor: “O aprendiz foi feito como entretenimento. Nós o fizemos parecer um super-herói. Este era o nosso trabalho –  proteger nosso apresentador. E, quanto maior e mais bem-sucedido ele era no programa, melhor o programa era”. Na visão de Kwame Jackson, um candidato negro que chegou à final, mas perdeu, o grande responsável pelo sucesso de Trump na política não foi o programa, mas o criador do reality show, Mark Burnett.  

Em um artigo publicado em setembro no jornal The New York Times, Michael Hirschorn, diretor e dono de uma produtora de televisão, defendeu a tese de que personagens ultrajantes da política, como Trump, encontraram inspiração nos reality shows. Segundo ele, o vencedor da primeira edição do Survivor, Richard Hatch, ensinou o caminho das pedras.

Abertamente gay, Hatch, com postura arrogante e rude, entendeu que o reality era um jogo, e não uma exposição de virtudes. “Não estou aqui para fazer amigos. Estou aqui para vencer.” Foi o primeiro a fazer isso. Manipulou os adversários para sobreviver, fez alianças com “inimigos” e até enganou a produção do programa para avançar em uma das rodadas da competição.

“O grande prazer de quem assiste um reality como o BBB parece ser a possibilidade de julgar o outro.”

Como já escrevi antes, além de espiar, o grande prazer de quem assiste um reality como o BBB parece ser a possibilidade de julgar o outro. A partir das qualidades e defeitos – éticos, morais, físicos – que enxergamos nos candidatos, elegemos nossos favoritos e escolhemos quem queremos eliminar. Como se sabe, um falso espelho permite às emissoras filmarem os participantes. Graças a ele, podemos ver sem sermos vistos, mas é impossível não pensar que, no fundo, estamos nos vendo ali. 

Como observa Emily Nussbaum em seu livro, escrever sobre o gênero reality sempre foi uma armadilha para os críticos. Se você se prender aos absurdos e não conseguir ver o que há de divertido nisso, você se transformará em um chato, um repressor. Mas, se tratar esses programas com muita leveza e alguma leviandade, você demonstrará que não entendeu o negócio. Sempre busquei analisar a forma como esses programas são editados e apresentados ao público. Foi a maneira que encontrei de contribuir para uma melhor compreensão desse gênero incontornável da televisão no século 21. Não sei se consegui. 

Mauricio Stycer é jornalista, colunista da Folha de S.Paulo, autor de Adeus, controle remoto (Arquipélago) e Gilberto Braga, o Balzac da Globo (Intrínseca), entre outros livros.