“O casal se beija, as coisas esquentam, e eles fazem sexo.” Normalmente, é com uma descrição assim, breve e inespecífica, que o roteiro de um filme ou de uma série anuncia uma cena íntima. Nesse espaço tão genérico, cabe de tudo: nudez parcial ou total, toques suaves ou não, simulação das mais variadas práticas sexuais ou apenas um rala e rola na cama, por baixo de lençóis. E é nesse lugar indeterminado que desconfortos, exploração e até abusos podem acontecer se o diretor e os atores não estiverem alinhados.
Um exemplo marcante é O último tango em Paris (1972). No filme, dirigido por Bernardo Bertolucci, a jovem Jeanne (Maria Schneider) conhece um estadunidense de meia-idade (Marlon Brando) e os dois começam um relacionamento baseado em sexo, sem saber nada um do outro. Em um dos encontros, ele força uma relação sexual. A “cena da manteiga”, como ficou conhecida, na verdade uma cena de estupro, foi decidida na noite anterior pelo cineasta. Juntamente com o ator, ele resolveu não comunicar a atriz nem na hora da filmagem para captar sua surpresa e resistência. Anos mais tarde, ela disse ter se sentido humilhada e até um pouco violentada pelos dois.
Marlon Brandon e Maria Schneider na polêmica cena de O último tango em Paris (1972) Foto: Reprodução
“A pretexto de seguir o fluxo, muitas atrocidades já aconteceram, e muitas pessoas foram machucadas mentalmente, emocionalmente e até fisicamente”, afirma a atriz e preparadora de elenco Larissa Bracher.
Na esteira do movimento #MeToo, que foi criado originalmente por Tarana Burke em 2006 e ressurgiu em 2017, após as denúncias contra o produtor de Hollywood Harvey Weinstein, o espaço para situações como essa está diminuindo, tanto pela conscientização como pela popularização da presença no set da figura do coordenador de intimidade.
Larissa é um exemplo. Ela passou por um processo seletivo e foi convocada pela plataforma Prime Video em 2020 a se especializar nessa área com outros três brasileiros, fazendo um curso com a estadunidense Alicia Rodis, precursora nessa função. “Na época, a gente nem tinha ideia do que era isso aqui, no Brasil. Mas pensei: ‘Claro, como não cogitaram antes?’”, diz. Desde então, ela já trabalhou em produções como Novela (2023), do Prime Video, DNA do crime (2023), da Netflix, Justiça 2 (2024), da Globoplay, e O amor da minha vida (2024), do Disney+.
A bailarina e coreógrafa Roberta Fernandes Serrado também nunca tinha ouvido falar de coordenação de intimidade até se deparar com Sex/Life (2021, Netflix) e achar as cenas de sexo incríveis. Nos créditos, viu a função: coordenação de intimidade. Começou a pesquisar, fez cursos online durante a pandemia e, no ano passado, foi a Londres estudar com Ita O’Brien. Uma das pioneiras na área e coordenadora de intimidade, a inglesa trabalhou em Normal people (2020) e I may destroy you (2020), tramas em que o sexo é um componente essencial.
Michaela Coel na série I may destroy you (2020) Foto: Reprodução
O surgimento
A coordenação de intimidade começou no teatro – Lizzy Talbot fundou a companhia Theatrical Intimacy, em 2016, para oferecer esse cuidado nos palcos. Na TV, The deuce (2017-2019), criada por David Simon e George Pelecanos (ambos de The wire) para a HBO, foi a primeira a utilizar um profissional específico para essa tarefa. A série mostrava o universo da prostituição e da pornografia na Nova York dos anos 1970 e 80.
Cena da série The deuce (2017-2019) Foto: Reprodução
Sem nem saber que existia a função de coordenador de intimidade, a atriz Emily Meade, que interpreta Lori Madison, sugeriu ao canal que houvesse alguém no set especificamente para ajudar nas cenas de sexo. Alicia Rodis foi então contratada na segunda temporada e a partir daí todas as séries da HBO com cenas de nudez e sexo simulado passaram a contar com alguém na função.
Atualmente, aliás, quase todas as plataformas de streaming e estúdios de Hollywood usam coordenadores e diretores de intimidade em produções tão diversas como Bridgerton (2020), A casa do dragão (2022) e Heartstopper (2022).
O que faz um coordenador
Segundo a companhia Intimacy Directors and Coordinators (IDC), que atua na coordenação de intimidade e treina profissionais e nos EUA, “um diretor ou coordenador de intimidade é um coreógrafo, um defensor dos atores e um ponto de contato entre eles e a produção para cenas que envolvem nudez/superexposição, atos sexuais simulados e/ou contato físico íntimo”.
“Ele não deixa de ser também um fator político, do feminismo, de cuidar da paridade de gênero”, completa Larissa. Como atriz e preparadora de elenco, ela cansou de presenciar e até de participar de situações constrangedoras que não deveriam se repetir. “Vejo o coordenador de intimidade como um mediador entre a direção e o elenco e que mantém todas as equipes confortáveis e seguras para cenas de nudez e sexo simulado no audiovisual.”
No Brasil
Larissa conta que está ajudando a inaugurar a profissão no país. Ainda não há regulamentação por aqui, mas é comum, principalmente nas produções das plataformas de streaming, haver um coordenador de intimidade no set. “No Brasil, o Amazon MGM Studios tem adotado a coordenação de intimidade como parte integral de todas suas produções locais desde 2019”, afirma Glauco Sabino, head de não-ficção da empresa no Brasil. “E, como não existia essa função no mercado audiovisual brasileiro até então, buscamos capacitar e certificar profissionais nos Estados Unidos.” Para ele, o trabalho contribui para cenas mais autênticas e narrativas cuidadosas, resultando em uma produção que respeita tanto o elenco quanto o público.
Não à toa, esse papel está se expandindo para as produções de não-ficção e reality shows. O Amazon MGM Studios também adota a prática para produções não roteirizadas, como os reality shows Soltos (2020) e a recém-lançada Ilha da tentação (2024).
Já em longas-metragens, um espaço geralmente mais autoral e independente, a profissão ainda engatinha. Roberta foi coordenadora de intimidade em Motel destino (2024), filme de Karim Aïnouz sobre um triângulo amoroso, apresentado em competição no último Festival de Cannes. Mas ela se lembra de, nos primeiros contatos com produtoras, ouvir que a função jamais pegaria no Brasil.
O trabalho na prática
Normalmente, a coordenação de intimidade começa já na pré-produção do filme ou série. Na leitura do roteiro, o profissional identifica as cenas e conversa com o diretor sobre a intenção daquelas passagens, como ele ou ela visualiza aquilo na tela. Quem cuida da coordenação de intimidade também costuma trabalhar em proximidade com a preparação de elenco para entender melhor os personagens, a maneira de contar a história. “Senão, a gente cai no lugar de ser o sexo pelo sexo, e o sexo precisa ajudar a contar a história”, acrescenta Roberta.
Há conversas com os atores separadamente e depois em conjunto para definir consentimentos. Nos ensaios, que podem acontecer na preparação, no set ou em ambos, os atores são coreografados e reproduzem os movimentos.
O coordenador de intimidade também conversa com o figurino para a criação de tapas-sexo e estabelece barreiras entre os corpos. Cuida para que, na hora da filmagem, só estejam presentes as pessoas absolutamente indispensáveis. E para que tudo corra como foi combinado – o que não quer dizer que não haja espaço para mudanças e para que consentimentos anteriores sejam retirados.
O profissional está ali principalmente para, caso haja ainda assim desconforto para algum dos atores, ser o mediador entre os atores envolvidos ou entre o ator e a direção e a produção. Assim, evita-se que aconteçam constrangimentos referentes às posições hierárquicas – por exemplo, um ator consagrado e uma atriz novata. “A gente está ali para a comunicação não azedar”, diz Roberta. Até porque, no caso de atrizes e principalmente jovens, há o temor de serem consideradas difíceis por parte da equipe. “Elas têm muito medo de não serem mais chamadas para trabalhar.”
Tanto ela quanto Larissa deixam claro, porém, que sua função não é ser o “compliance” da produção, mas ajudar a manter um ambiente saudável e apoiar os atores e a equipe em cenas que são delicadas, respeitando a visão da direção. “(Esse trabalho) Me ajudou muito porque me senti resguardada, sabia que não estaria lidando com isso sozinha se tivesse qualquer incômodo nem me sentiria constrangida caso precisasse expor uma situação desconfortável”, disse Nataly Rocha, atriz de Motel destino que vive na trama um triângulo amoroso com Fábio Assunção e Iago Xavier. O conforto não vem só para as atrizes. No dia da entrevista, Roberta recebeu uma ligação de um ator agradecendo sua presença e seu trabalho.
Iago Xavier, Nataly Rocha e Fábio Assunção no filme Motel destino (2024)
Foto: Reprodução
E, sim, o coordenador de intimidade também está lá para prevenir abusos. “Não tenho dúvida de que coibimos ou pelo menos inibimos situações potencialmente traumáticas”, finaliza Larissa.
Se cenas perigosas têm coordenadores específicos, por que cenas com potencial de dano físico, moral e psicológico não deveriam ter?