Se houvesse um reality show novo – The Second Microphone seria o nome –, tipo um BBB, mas com microfones ligados ao cérebro dos participantes, microfones que leem e transmitem os pensamentos em rede nacional, talvez fosse bom que um tipo muito específico de gente não aceitasse o convite para participar. Gente assim, vê.
– Tás pensando em quê?
– Nada de mais.
– Conta.
– Sei lá, eu penso cada coisa.
– É? Tipo o quê?
– Às vezes, eu penso na pontinha curva daquele aparelho que os dentistas usam para tirar o tártaro da fronteira entre o pedaço de dente coberto pela gengiva e o pedaço do dente pelado de gengiva e na imensa capacidade que essa pontinha tem de se enganchar na própria gengiva fronteiriça. Ela enganchada como se no beiço de um peixe recém-pescado. Eu penso no dentista. Embalado pela força, pela facilidade com que rodam as rodinhas dos banquinhos de rodinhas e pelo ódio que sentiu do vestibular, das provas dos cinco anos de faculdade de saúde, dos estágios mal remunerados e da água fluorada de São Paulo, o dentista não contém o movimento e puxa. Mas puxa bem puxado. E vê diante de si uma pele longa e inteiriça se desdobrar como um bolso de calça jeans ao avesso. É uma cópia murcha da criatura que deveria ter escovado os dentes antes de dormir, mesmo quando chegou tarde em casa, para evitar a necessidade da profilaxia anual. O pedaço de carne com todas as costuras à mostra olha para o paciente, que segue deitado com o sugador na boca e diz: “Cospe”. Às vezes, eu penso nisso.
– Minha nossa senhora!
– Mas não é só assim, não. Às vezes, eu penso na quantidade de estatísticos frustrados que desejaram secretamente ser pizzaiolos e se não seria essa a razão para que os gráficos pizza tenham esse nome. Eu penso nos que queriam ser ortopedistas, professores de educação física e costureiros. Penso nos gráficos coluna, nos gráficos barra, nos gráficos linha e me entristeço com tamanha frustração profissional. Fora as depiladoras. O que queriam ser as depiladoras que não queriam ser depiladoras? Eu monto um tanto de gráfico pra marcar as possibilidades e, em todos eles, somente 13% fez a escolha por gosto. Dos 13%, 11% eram sádicas e 0,03% era sádico, porque pouquíssimos depiladores são homens. Eu imagino um projeto artístico em que o primeiro “ai” de todas as sessões de depilação do mundo é gravado e compilado em um disco a ser vendido aos 11,03% de depiladores sádicos. Se a Organização Mundial da Saúde recomenda que haja um dentista para cada 1,5 mil habitantes, depilador deve ser mais ou menos a mesma coisa. Tem 8,025 bilhões de pessoas no mundo. Os estatísticos que me corrijam, mas calculo aqui um público potencial de 590.150 sadiquinhos arrancadores de pelo. Se eu vender cada disco a 10 dólares, o dólar a 5,77 reais, na cotação de hoje, seriam 34.063.452,75 reais. E é por isso que sou uma artista frustrada, porque artista de verdade não precifica ideia nenhuma. Manda pra Bienal e irrita um prédio inteiro com esse bando de grito. Às vezes, eu penso nisso.
– Eita!
– É. E ainda tem vezes que eu penso na Barbie do bolo de Barbie de padaria e na inveja que ela deve sentir da Barbie ciclista, que, além de ter pernas, tem joelhos articulados, ou até da Barbie sereia, que não tem pés, mas pelo menos tá sempre bronzeada, de biquíni e com o cabelo lindo de praia. Mesmo que, como as sereias, venha com cauda e que seja com L e de chocolate, eu penso na hora de cortar o bolo, a bichinha nervosa, sabendo que estão a poucas fatias de descobrir que não tem perna por baixo do vestido. Isso quando não chega a data de vencimento antes que alguém libere a refém da vitrine giratória da padaria. Aposto que o confeiteiro é homem. Eu penso nas duas camas de Barbie que tive. Uma era parte do kit lar/escritório, e a outra, um kit de quartinho completo. Eu achava a cama do quartinho leve e sentia pena do móvel de plástico rosa-choque quando a boneca pesada ia dormir. É por isso que a minha Barbie passava a maior parte das noites no trabalho, pra não incomodar a cama. Aí eu penso que deve ser esse o motivo que me faz ter vergonha da minha cama quando engordo. Corto o pão e os doces, principalmente os de aniversário, como que pra pedir desculpas. Só abro exceção pra aqueles bolos que têm a foto do aniversariante impressa. Alguma coisa sobre a cara do festejado sendo esfaqueada, esfarelada e mastigada mexe comigo. Será que tem mais mulheres ou homens sádicos? Às vezes, eu penso nisso.
– Bolo dá tártaro?
– Rapaz, não sei. Mas fiquei pensando naquela piazinha que a gente cospe no dentista. Coitada. Que vida horrível, né?
– Nossa, muito. Tadinha.
Roberta D’Albuquerque é psicanalista e coautora do livro Quem manda aqui sou eu (HarperCollins). Atende no seu consultório em São Paulo e escreve mensalmente neste espaço. Acompanhe em @robertadalbuquerque.