No dia 1º de março deste ano, a partir das 4 horas da manhã, pouco antes da alvorada do sábado de Carnaval, o Gala Gay fará uma volta em grande estilo à folia momesca. Não exatamente como um baile, como acontecia do início dos anos 1980 a 2010, quando teve sua última edição. Tampouco será no Rio de Janeiro, onde encerrava os dias de escapismo. Será em São Paulo, como uma das atrações do desfile da Estrela do Terceiro Milênio, escola do Grupo Especial – na parte superior do carro alegórico dedicado à festa, o carnavalesco Murilo Lobo vai replicar o tapete vermelho do baile. “Os convidados da Terceiro Milênio vão subir alguns degraus, passar pela passarela, sair pelo fundo e retornar ao tapete, num eterno loop de travestis e de drags, superproduzidas”, conta à ELLE View. O enredo “Muito além do arco-íris!” é um manifesto contra a LGBTfobia e a favor dos direitos da comunidade LGBTQIA+. Lobo conta que conheceu o baile em uma de suas idas ao Rio para assistir aos desfiles de escolas de samba. “A gente acompanhava pela TV, né? A família brasileira parava!”, relembra. “No Gala Gay, as fantasias não eram necessariamente luxuosas, mas engraçadas, debochadas.”
Senta que lá vem história
Sempre realizado às terças-feiras de Carnaval, o Gala Gay foi criado por Guilherme Araújo (1936-2007), produtor musical de Caetano Veloso e Gilberto Gil, entre outros, e teve sua primeira edição em 1982, na extinta casa de espetáculos Canecão, em Botafogo. Chegou a acontecer na boate Help, em Copacabana, até se estabelecer mais longamente no Teatro Scala, no Leblon, pertencente ao empresário da noite Chico Recarey. Nesses anos, chamou-se Scala Gay. Grande parte dos frequentadores eram travestis, como Roberta Close, que à época era uma celebridade, ganhando até canção de Erasmo Carlos (“Close”, de 1984). Mas havia espaço também para personalidades como Elke Maravilha (1945-2016), Chiquinho Scarpa, Lady Francisco (1935-2019), Claudia Raia e Isabelita dos Patins.
A fotógrafa Thereza Eugenia fazia registros da noite quando o Gala Gay era realizado por Guilherme Araújo. As imagens eram distribuídas para jornais como O Globo e as revistas Fatos & Fotos e Manchete. Thereza recorda que não era um baile “exclusivamente para os gays, pois as socialites locais também frequentavam”. A música era ao vivo, e o evento chegou a ter uma apresentação da cantora Elza Soares. “O Guilherme não queria saber de ‘Mamãe, eu quero’ e outras marchinhas. O que tocava era música brasileira da época, como Cazuza”, conta Thereza.
Até 2010, quando o Scala fechou suas portas e o Gala Gay deixou de acontecer, foi uma das atrações televisivas de maior audiência no Carnaval brasileiro. A transmissão ao vivo foi feita pelas emissoras Manchete, SBT, Band e, por último, RedeTV!. Numa edição do fim dos anos 1980, a Band – que ainda se chamava Bandeirantes – foi advertida pelo Departamento Nacional de Telecomunicações (Dentel) por exibir “homens sugando seios, enfiando os dedos atrás e na frente. Seios esfregando em outros seios”.
À moda dos festivais e das premiações de cinema, o Gala Gay tinha seu próprio tapete vermelho, em que apresentadores como Otávio Mesquita, Monique Evans e Rogéria (1943-2017) se alternavam nas entrevistas com celebridades e foliões anônimos. Do lado de fora, curiosos esperavam a chegada dos famosos.
Habituée, Luiza Brunet lembra bem de quando o baile era transmitido pela extinta TV Manchete. “As pessoas se amontoavam na porta para assistir ao desfile das roupas, fossem de gala ou fantasias”, conta a modelo e atriz. “Era um baile leve, lindo, com banda ao vivo. E a sociedade inteira comparecia. Toda a diversidade era admirada e respeitada. O ambiente era bem tranquilo. Enfim, uma época em que tudo era possível e permitido, sem julgamento ou exposição midiática. Era realmente maravilhoso.”
A exposição de que Luiza fala hoje seria ainda mais problemática: com os celulares e as redes sociais, a privacidade dos foliões fica pra lá de comprometida e se perde a espontaneidade. “Hoje todo mundo ficaria fazendo conteúdo”, reclama Magda Cotrofe, outra frequentadora assídua do Gala Gay, especialmente na segunda metade dos anos 1980. “As pessoas não se divertiriam mais. Fariam selfies, públi das roupas que estivessem usando. A real é essa.”
Magda tinha uma costureira de confiança para confeccionar suas fantasias. Segundo ela: “Lindíssimas, mas, vamos dizer assim, bem peladas”.
Do alto de seus camarotes, convidados VIP como ela conseguiam ver quando a folia fervia na pista. “As coisas esquentavam mesmo. A ‘geral’ era uma loucura. E às vezes as gays saíam brigando, uma dando em cima do marido da outra, muitos deles gringos”, conta.
Hoje em dia, os bailes carnavalescos já não atraem Magda. Tanto os de hotel cinco estrelas do Rio quanto os de São Paulo. Se o Gala Gay voltasse, diz ela, teria de acontecer, como antes, no Rio. “O babado é aqui, meu amor.”
Ao vivo, para todo o Brasil
Leonora Áquilla foi apresentadora das transmissões do Gala Gay pela RedeTV no fim dos anos 2000 e será uma das convidadas especiais da Terceiro Milênio. Leonora conta que foi chamada para a missão depois de suas participações no programa Noite afora, também da RedeTV, em que fazia “uma versão LGBT da Monique Evans”, sua companheira de atração. As duas usavam o mesmo figurino. O sucesso fez com que ambas passassem a fazer a cobertura do Gala Gay.
Novamente com roupas iguais, Leonora e Monique faziam entrevistas e, à medida que as conversas iam acontecendo, os diretores avisavam no ponto como estava a audiência. “Pautada nisso, a gente permanecia com o entrevistado, para que ele rendesse mais, ou passava a bola para outro próximo apresentador”, diz Leonora, que chegou a ficar com uma mesma pessoa no ar por meia hora. “O grande desafio era também ter bom repertório e saber improvisar para segurar a audiência. E eu fazia isso muito bem. Tinha o dom de tirar leite de pedra.”
Nem sempre, no entanto, as coisas corriam às mil maravilhas. “Às vezes, a gente pegava uma trans mais alcoolizada ou mais abusada, que tirava o peito para fora, e a gente tinha que fazer todo o malabarismo para controlar a situação”, diz. “Algumas deixavam até escapar as partes íntimas.”
Um “atentado ao decoro” chegou a acontecer também com Otávio Mesquita, quando foi apresentador do Gala Gay na Band e entrevistou celebridades como Roberta Close. Já perto do final da transmissão, encontrou dois foliões, um segurando o outro para não caírem, alguns drinques a mais e juízo de menos. “Quando olhei bem para ele, para baixo, vi que tinha coisa saindo da roupa.” Falei: “Põe pra dentro!”
“Aos 20 e poucos anos”, Mesquita trabalhava como contato publicitário do SBT, quando um diretor da Band, que cuidava das coberturas no Rio, o convidou para ir a um baile no clube Monte Líbano. Ao chegar ao lugar, Mesquita descobriu que o repórter escalado para a festa faltou. O então publicitário foi convocado a assumir o microfone e, com seu humor peculiar, brincalhão, caiu nas graças do então presidente da Band, João Saad. Logo depois, acabou se tornando apresentador do Gala Gay e virou fã dos foliões “divertidos e superqueridos”, que falavam bobagens como ele, sempre com respeito. “Comecei a fazer televisão graças aos gays, porque foi um sucesso.”