É domingo de Carnaval e daqui dá pra ver mais ou menos uns 46 papangus só na Ladeira da Misericórdia. Talvez alguns deles sejam à la ursas, mas, do alto de seu consumo de cerveja, que começou às 8 da manhã, seria exigir demais de Gabi uma definição mais precisa.
Ela vem paquerando com Jesus e cuscuz antes mesmo de botar a primeira garfada do café da manhã da pousada na boca. Disseram que fazia sentido investir na sustança matinal, então ela botou cuscuz, inhame e carne de sol no prato — só para começar. Pois bem, paquerou da camareira que encontrou no corredor ao garçom que traz o café preto para a mesa.
Está paquerável, Gabi, com uma fantasia de odalisca, escolhida para exibir a lipo LED, que lhe custou mais do que a própria viagem. Mas isso foi no ano passado, quando decidiu abrir mão do Carnaval do presente para fazer a barriga do Carnaval do futuro.
Do café para o pé na rua, paquerou mais uns três, que nem valer a pena valiam. É que já é o segundo dia e o primeiro deixou a moça meio profissionalzinha no flerte. Vai se criando um hábito, tu entende? Até quarta-feira, já terá piscado para todas as estampas de chita, todas as cores de lamê e todas as variedades de glitter disponíveis no comércio pernambucano — quiçá brasileiro.
Mas, enfim, é domingo de Carnaval, e o plano para hoje nem era ficar em Olinda. O negócio é que, depois das 4 da tarde, qualquer plano de Gabi e das amigas desanda, inclusive o plano de saúde de Julieta, que é coparticipação e vai dar um sustinho nela na volta para São Paulo. Pé torcido, ressonância, raios X e um ou dois soros de glicose.
Está em Olinda, na Ladeira da Misericórdia, às 8 da noite, misturada a um papangu. Se perguntarem, ela dirá que não flertou sozinha, que ele piscou para ela, que o olhar isso e aquilo… Papangu é aquele do cartaz do filme do Kleber Mendonça, vocês lembram, né?
Ela olhou para ele, ele olhou de volta — aquela olhada pintada a tinta guache — e Gabi se apaixonou desavergonhadamente. O que deu para puxar de braço para fora da multidão, ela puxou. Mirou bem na cara da criatura e fez que “venha” com a mão. Ele veio.
Veio e fez uso da própria mão também, no pescoço, na cara, na cintura dela — inclusive na pochete. Pegou o celular, o RG, o cartão e sumiu. Ela ainda com gosto de papel machê na boca, porque beijou a figura com máscara e tudo.
Leva mais ou menos o tempo da vontade da próxima cerveja para se dar conta. E umas três horas para conseguir sair da ladeira e ir para a Delegacia de Polícia do Viradouro. Anotem aí o telefone, caso precisem: (81) 3184-3720.
Agora, só lembrando que dá para fazer BO online. Tu sabe, né? Pois Gabi não sabe.
Diante do cara da delegacia, pede um Kleenex.
— Oi?
— Um lenço.
— Tem não, minha senhora.
— RG?
— Pois é exatamente isso. Me roubaram o RG.
— Não, o número do RG. Qual é o número do RG?
A bichinha não lembra nem se Gabi é de Gabriela ou de Gabeira. Diz que não sabe, depois conta de um a nove na sequência, e o policial, de tão exausto, anota: 12 345 678 9.
— Como foi isso, minha senhora?
— Eu estava na Misericórdia e fui assaltada. Levaram meu celular, meu RG e meu cartão.
— Certo, ok. A senhora lembra da cara do sujeito? A gente só vai falar com quem lembra, senão não tem como dar conta disso aqui, não. A senhora tá vendo aquela fila ali (uns 20 na fila)? Pronto, ali são só os da Misericórdia. Só vale perder tempo se der pra identificar.
Gabi, espalhando glitter pela cadeira, pela mesa, pelo copo (não tinha lenço, mas tinha água), pela caneta, pela atmosfera da delegacia, não precisa fazer esforço. Pode estar beba bosta, mas tem a impressão de ser a melhor fisionomista do Brasil.
— Lembro, calma. Claro que lembro. Precisamente.
Desde menina repara no povo, na roupa do povo, no cabelo e na maquiagem do povo. Mas não na chave do talento, na chave da fofoca mesmo. Fofoqueira de dar medo. Já identificou, inclusive, três cáries só na arcada superior do escrevente. Fiapos de uma manga-espada que ela toma por cáries das grandes.
— Mangas longas e luvas brancas. Isso, usava um macacão inteiro de estampa florida. Soltinho no corpo. Tem o rosto branco, maquiagem carregada, uma expressão meio dura… Acho que já o vi. Não sei se em algum bloco ontem ou no hotel, mas a fisionomia me é familiar. Olhos caídos, uma boca grande, sabe? Cabelos coloridos, cacheados…
— Minha senhora, isso que a senhora está me descrevendo é um papangu. A senhora tá me achando com cara de palhaço?
Voltou pra casa com o BO em uma mão e a vontade de reencontrar o moço de nome interessante (que era um dos 789 papangus de Olinda, segundo registro do ano passado — a bichinha não tinha entendido ainda). Era ladrão? Era, mas o importante é que o danado beijava bem. E aquele olhar…
Roberta D’Albuquerque é psicanalista e coautora do livro Quem manda aqui sou eu (HarperCollins). Atende no seu consultório em São Paulo e escreve mensalmente neste espaço. Acompanhe em @robertadalbuquerque.