Em um daqueles sem-número de encontros de fim de ano, em dezembro passado, entre chopes aguados (para mim) e taças de espumante (para ela), veio o desabafo: “Saudades de quando as editoras (de moda) se montavam, tipo Anna Piaggi, Isabella Blow. Hoje elas só usam alfaiataria oversized ou preto e branco”.
Vestindo calça jeans e camisa de linho, ambos pretos, ambos largos, saí em defesa de causa própria (sem querer me equiparar aos ícones mencionados acima). O look uniforme, como é chamado vez ou outra, o visual discreto e a aparência genérica são expressões criativas e pessoais igualmente válidas. Para uns, dá segurança, conforto, camuflagem. É aquela passagem despercebida muito bem-vinda.
Muita gente que trabalha com moda… Quer dizer, muita gente que exerce um trabalho criativo prefere a neutralidade na hora de se vestir. Quase como um cleanser estético, um canvas, uma distração ou uma informação a menos para um ofício acostumado a processar uma série de estímulos visuais e emocionais.
Pode significar ainda alguma desconexão, não-conformidade ou aceitação. Tem os que preferem os curingas menos por sua versatilidade do que pela independência – esbarrando na noção de exclusividade e escassez do grupinho fechado do luxo. É a tal antimoda, a rejeição dos gostos populares de determinado momento, como os modismos relâmpago que nascem do vácuo das redes sociais e morrem quase no mesmo instante.
A partir de meados de 2024 – e isso já foi pauta aqui –, o termo deinfluencing começou a ganhar tração em pesquisas sobre a moda. A premissa era de que, depois de um tsunami de cores (as microtrends do tipo tenniscore, braziliancore, barbiecore), as pessoas teriam se cansado de se vestir como uma camponesa em um dia e como a esposa de um mafioso no outro. A resposta veio na forma de itens clássicos do guarda-roupa: uma blusa de cashmere, um bom casaco de lã, calças e jaquetas de alfaiataria, jeans de modelagem reta, camisas e camisetas largas e, claro, suéteres com capuz. Tudo em uma paleta de cores suaves, de preferência em tons de preto, branco, cinza, bege, marrom e azul-marinho.
Acontece que o deinfluencing acabou ele mesmo se tornando uma grande tendência – dá-lhe quiet luxury, novo minimalismo, a volta do normcore. E, como toda tendência acaba em excesso, nos primeiros dias de 2025, em meio ao marasmo do noticiário, comentaristas digitais e alguns veículos da imprensa especializada tentaram reverter o baixo engajamento com uma suposta teoria sobre o fim do estilo individual. Segundo tais analistas, a massificação de informação e o overload de modismos chegaram ao ponto de fazer com que todo mundo se vestisse igual.
“O problema, então, não é que estamos vestidos todos iguais. É que estamos sendo alimentados por uma ração sem gosto e nada nutritiva.”
No livro Filterworld: how algorithms flattened culture (2024), o jornalista e crítico cultural Kyle Chayka argumenta que, na tentativa de escapar do caos algorítmico, nos refugiamos no mediano. “Nossa reação natural é procurar por culturas que abracem o nada, a insignificância que cobre e acalma, em vez de desafiar e surpreender, como uma obra de arte poderosa deve fazer”, escreve o autor.
Será só isso mesmo? Pode até ser. Tem a ver com a natureza cíclica da moda em sintonia com acontecimentos ao redor do globo e com a disposição e o humor das pessoas em determinados contextos. Mas a homogeneidade visual é algo novo? Só agora, em plena terceira década do século 21, estamos nos vestindo todos iguais?
Se vestir como o coleguinha faz parte da maneira como os seres humanos se relacionam. Nossas roupas são amostras ou símbolos de nossas personalidades, capazes de estabelecer conexões com pessoas semelhantes: membros de uma mesma comunidade, de uma tribo, de uma ideologia política, fãs de um gênero musical, adeptos de determinado estilo de vida, editores de moda avessos ao que todo mundo está usando… A diferença agora é que estamos expostos a uma infinidade de imagens e, por consequência, influências estéticas.
Influências essas nem sempre são livres, mas pressões ou imposições externas. As etiquetas sociais datadas, os manuais de elegância e dress codes que o digam. Mas não é só isso. O comércio também desempenha um papel importante na definição e difusão de gostos e comportamentos. É assim desde a Antiguidade.
Um centro mercantil promove toda uma variedade de trocas culturais, sociais e econômicas, com potencial de influenciar toda uma geração ou grupo demográfico. Some-se o fato de se tratar de uma negociação, com partes mais favorecidas e outras nem tanto. Conforme diferentes agentes se familiarizam com as práticas e preferências de quem leva vantagem, estabelece-se um padrão, uma tendência. A moda inclusa.
Aí, é matemática. Ou economia, para ser mais preciso. Da metade do século 20 para cá, com a produção industrial, a comunicação em massa e a indústria do entretenimento, ficou mais interessante, barato e lucrativo fazer com que o maior número de pessoas, ops, consumidores, desejasse a mesma coisa.
Com amplo acesso à informação, as narrativas desenvolvidas para seduzir e criar o desejo em pessoas de todo o planeta foram potencializadas ao máximo com a popularização da internet. Se a publicidade já impunha seus cases de sucesso via mídia tradicional (revistas, jornais, televisão, rádio, cinema), imagina quando nossas próprias escolhas deixam de ser nossas de verdade e passam a ser calculadas e recomendadas na timeline de cada um?
O mundo está fervendo, às vezes literalmente em chamas. A ordem global está cada vez mais desorganizada (para dizer o mínimo). Ucrânia, Rússia, Gaza, Israel, Congo são só algumas das nações envolvidas em conflitos bélicos. A economia pode até caminhar bem em alguns países, mas nem os melhores ranqueados estão imunes a narrativas que teimam em minar a confiança do cidadão e instaurar insegurança e desconfiança generalizadas. No meio disso tudo, faz mais sentido sair com um look monocromático à la The Row do que incorporar a boneca Barbie.
É também menos custoso e possivelmente mais lucrativo produzir e vender peças com maior apelo popular. Roupas fáceis de entender, sabe? O problema, então, não é que estamos vestidos todos iguais. É que estamos sendo alimentados por uma ração sem gosto e nada nutritiva.
Gosto, aliás, é um tópico central em Filterworld. Kyle advoga que a programação dos algoritmos que nos recomendam conteúdos de todos os tipos tem o efeito homogeneizador, deixando tudo na mesma superficialidade. O resultado é um achatamento da cultura.
Músicas são produzidas sobre fórmulas quase idênticas e testadas para ter audiência garantida. Filmes, séries de TV, decoração de ambientes e até a redação de notícias são submetidos à lógica de otimização para mecanismos de busca (o tal SEO). Na moda, não é diferente. O que muda é a relação das pessoas com o objeto ofertado, ou, no caso, recomendado.
Sempre digo: a moda não se vende nem se consome como Danone. Existem uma série de fatores decisivos para a conclusão da compra e até para o despertar do desejo. Fatores que, nos últimos anos, foram escanteados em prol dos resultados financeiros e dos retornos a curto prazo. Claro, não é a única causa, mas a queda nas vendas de muitas marcas de luxo tem relação com essa estratégia de comunicação e negócio.
Hermès, verão 2025. Fotos: Getty Images
Não por acaso, quem se deu bem em 2023 e 2024 foi quem não se rendeu ao modelo pré-calculado. Ou melhor, ao modelo só calculado. A Hermès é um exemplo de Maria que nunca vai com as outras. É quase uma exceção do mercado. Prada e Miu Miu, duas Marias seguidas pelas outras, perceberam a importância de oferecer alternativas propositalmente imperfeitas e desarmoniosas à frieza previsível recomendada como bom-gosto por algoritmos mil.
Nas duas primeiras fotos, looks do verão 2025 da Prada. Nas duas últimas, do verão 2025 da Miu Miu. Fotos: Getty Images
Jonathan Anderson, na Loewe, e Demna, então na Balenciaga e futuramente na Gucci, são dois nomes que também fogem à regra robótica. A eles se juntam dois estreantes da recém-terminada maratona de desfiles internacionais de inverno 2025: Sarah Burton, na Givenchy, e Haider Ackermann, na Tom Ford. Comum a todos são um senso forte de identidade, o respeito, a aceitação e o interesse em imperfeições e questionamentos constantes sobre concepções, representações e assimilações que se tem sobre a roupa e o que vem debaixo dela.
Look do verão 2025 da Loewe, dois looks do verão 2025 da Bottega Veneta e look do verão 2025 da Marni. Fotos: Getty Images