Chefs provam que chuchu é chique
Vegetal composto por mais de 90% de água dribla a fama de insosso e revela sua preciosidade em pratos do Maní e do Lasai.
Um dia propus à Roberta Sudbrack que fechasse os olhos e construísse, instintivamente, um menu imaginário. Foi formidável ouvi-la contar, com poética e sensibilidade, sobre o que tramou. Pôs-se no século 19 e armou um belo d’um banquete para Carême, o cozinheiro dos reis e rei dos cozinheiros.
Recebeu seus 12 convidados em uma grande mesa ao ar livre num jardim, protegida pela sombra das árvores. Entre eles, Claude Troisgros, Neide Rigo e Jonathan Nossiter, o cineasta e sommelier norte-americano, versado nas obras de Gilberto Freyre e Machado de Assis, que, aliás, fez a seleção dos vinhos do festim.
Nessa aura deleitosa, com certa magia, Roberta serviu ingredientes bestas, do cotidiano: quiabo, maxixe, chuchu. Foi a primeira vez que notei uma chef do calibre da Sudbrack eleger elementos tão marginais para um grande acontecimento.
Em sua cozinha, nunca deixou que a estética e as técnicas exuberantes apagassem a matéria-prima. Em outra ocasião, diante da minha pergunta meio tola, experimentou um exercício de futurologia e disse que a gastronomia ia filiar-se ao primitivo. Não se tratava de uma premonição mediúnica ou sobrenatural.
No último mês, atestei sua aposta em duas degustações ultrasexies que fiz em restaurantes estrelados pelo Michelin. Ambos – que poesia! – sensíveis, criativos, com preparos belos de ver e de comer. Atrás desse juízo elogioso, algo em particular me despertou: ambos serviram pratos extraordinários com chuchu, esse ingrediente composto por mais de 90% de água, tido como insosso e monótono.
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Helena Rizzo e Willem Vandeven, que trabalham lado a lado no Maní, fazem o chuchu dar piruetas ao acomodá-lo sobre mexilhões previamente preparados em um caldo de vôngole e espumante – são fios de chuchu enrolados, cozidos a vácuo em um salsa verde. Para finalizar, água de cambuci, coentro vietnamita, agrião selvagem e azeite de huacatay, aquela erva aromática andina de sabor mentolado.

Chuchu com mexilhões, do Maní. Foto: Juliana Primon
O prato do Rafa Costa e Silva, no balcão do Lasai, causou paralisia. Eu estava sozinha e pude usufruir do meu próprio silêncio enquanto mastigava, demoradamente, como se daquela comida eu quisesse até ouvir o som. Um crocante de linhaça sob uma cavaquinha com azeite de ervas e creme de abacate, recebiam, por cima, tiras de… chuchu.
Cozido inteiro, com casca e tudo, de modo que se mantenha al dente, é resfriado em água e gelo. Depois, são retiradas lâminas ultrafinas temperadas com azeite, limão galego e sal.
É engraçado que Rafa odiava chuchu quando criança. Só depois ele descobriu que, na verdade, havia comido chuchus mal-feitos a vida inteira.

Chuchu com cavaquinha, do Lasai. Foto: Luiza Fecarotta
Com genialidade criativa, porém, cozinheiros são capazes de demonstrar que a neutralidade do chuchu, compreendida vulgarmente como defeito, é justamente seu mais precioso atributo. O sabor delicado e suavemente adocicado lhe habilita a absorver bem outros temperos, e ele pode se desdobrar em várias texturas, que variam conforme o preparo.
Quando a gente se dá conta desse óbvio, que se apaga e se esconde por trás de mantras gastronômicos démodés – como o que propaga a ideia do “picolé de chuchu” como símbolo de tudo aquilo que é desenxabido –, é como se o nosso léxico sensorial se alargasse, deliciosamente. O chuchu, então, é reverenciado – e somos nós, comedores, que gozamos.
Eleva-se o chuchu tal qual as nossas expressões populares “meu chuchuzinho” e “bom pra chuchu” o fizeram; como nossos compositores o fizeram, muito antes da gastronomia, na canção popular brasileira. Adoniran, Caetano, Caymmi o associam com um prazer cotidiano, simples, um Brasil popular e poético.
Tive a ousadia de entrar em contato com o muso da nossa língua portuguesa, Caetano Galindo, autor de um dos meus livros de cabeceira, Latim em pó, para entender um pouco sobre a etimologia da palavra. Ele achou improvável tanto o meu contato (alguém à sua procura para saber de chuchu?), quanto o meu fascínio pelo vegetal. Rá rá rá!, em homenagem a Zé Simão, com quem aprendi a rir por escrito.
Galindo estranha que essa leguminosa, com reputação de ser insossa, gere essas expressões ligadas a afeto, como o ‘chouchou’, do francês, querido. Acha que, além de duas possíveis origens etimológicas – do francês e do quíchua –, sua sobrevivência pode vir também de um sentido expressivo, “uma coisa muito chata para os etimólogos”.
“É o tipo de palavra que quase surge espontâneamente quando você começa a dizer para um bebê ‘chuchu’, ‘fififi’, ‘nhunhunhu’. Não quero dizer que a palavra tenha surgido espontaneamente, mas que o fato de se encaixar nesse modelo talvez tenha contribuído para o sucesso da palavra.”
A palavra triunfou. Na cozinha, embora comumente desprezado, tem tido lá suas glórias. Repare: até esquecido no fundo da geladeira, discreto e meio sonso, pode virar um pequeno prazer – minha vó fazia um suflê de chuchu apaziguador que minha mãe repete ainda hoje. Na escassez, quando o lobo bate à porta, façamos da falta de ingredientes um divertido ensaio de criatividade. Alcance aquele chuchu escanteado, ame-o, e quem sabe não sai um vinagrete de gala?
Luiza Fecarotta é jornalista de gastronomia, pesquisadora da cozinha brasileira e professora de escrita.
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