O que aprendi viajando de motorhome

Autonomia, divisão de tarefas, quebra de preconceitos: uma família e um casal sem filhos compartilham a experiência de viajar levando a casa sobre rodas.


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Foto: Nathalia Campos e Marcos Faria



O brasileiro nunca se interessou tanto pelos motorhomes. Na ferramenta Google Trends, as buscas pela palavra motorhome, no país, atingiram o pico de popularidade a partir de agosto de 2020. Já o levantamento Pinterest Predicts, que comparou buscas na rede social entre outubro de 2019 a setembro de 2020, mostra que as pesquisas sobre “acessórios para motorhome” aumentaram 40% – justamente na mesma época em que o interesse por “lugares para observar as estrelas” cresceu 165%.

A ideia de viajar levando junto os confortos de uma casa é bem antiga – os primeiros trailers de que se tem notícia, ainda com tração animal, foram montados nos Estados Unidos há mais de 130 anos. No início, eram usados por profissionais que percorriam diversas cidades, mas logo foram incorporados pelo setor de turismo. Ao Brasil, o conceito chegou lá pela década de 1950 e se popularizou sobretudo na região Sul. Mas, cá entre nós, o brasileiro nunca chegou a ser fã das casas sobre rodas como os americanos – o filme Férias no Trailer, de 2006, com Robin Williams no papel de um pai de família atrapalhado na condução do motorhome, é uma comédia deliciosa para assistir em família e mostra como essa modalidade de viagem é arraigada na cultura do país.

Foi a pandemia que fez o brasileiro olhar para os motorhomes com mais interesse. “Muitas famílias cancelaram suas viagens nacionais ou internacionais e procuraram uma alternativa para sair da rotina respeitando o distanciamento social, evitando hotéis e restaurantes. Para a maioria de nossos clientes, foi a primeira viagem de motorhome”, afirma Aline Frediani, da locadora Vandão Motorhomes. Localizada em Salto, interior de São Paulo, a empresa registrou um aumento de 70% na procura pelos veículos a partir de março de 2020.

Aos marinheiros de primeira viagem, a Vandão oferece treinamento sobre o funcionamento dos veículos e dá dicas práticas de como proceder na estrada e nas paradas. Mas os relatos de quem já pôs o pé na estrada dentro de um motorhome são a melhor forma de saber o que esperar de uma viagem tão fora do comum – quem debuta no mundo das casas sobre rodas logo descobre uma tribo entusiasmada e solidária, que ama compartilhar experiências e encara o turismo como projeto de vida. Os dois relatos a seguir mostram pontos de vista bem distintos – um casal sem filhos, que está em sua terceira longa jornada sobre rodas, e uma família que acaba de estrear a primeira aventura na companhia de duas crianças. Ambos têm em comum a sinceridade. Eles contam, sem disfarces, as dores e as delícias de passar dias e dias dentro de um motorhome. Para quem se entusiasmar, reunimos dicas preciosas para começar com o pé direito. Boa viagem!

“Vivemos para viajar”

Nathalia Campos, 30 anos, passa mais da metade do ano na estrada na companhia do marido, Marcos Faria, 34. Ambos são servidores públicos, moram de Brasília (DF) e preferem construir os próprios motorhomes.

Tamanho é documento

“Nosso primeiro motorhome era uma Kombi, que reformamos seguindo instruções de vídeos no YouTube. Passamos dez meses na estrada, de Brasília até a Chapada Diamantina, passando por Palmas, Jalapão, Belém e litoral do Nordeste. Como a Kombi não tinha banheiro, só podíamos parar em campings ou pousadas – e não dava para ficar de pé dentro do carro, o que não é confortável. Com o segundo motorhome, uma van Renault Ducato com banheiro, fomos até o Ushuaia, na Argentina, e a qualidade de vida melhorou muito.”

Autonomia vale ouro

“Em dezembro de 2020, caímos na estrada com nosso terceiro motorhome, um furgão Peugeot Boxer – estamos no Nordeste neste momento. Hoje, nosso tanque de água tem capacidade para 205 litros e dura de cinco a seis dias, o que nos dá mais tranquilidade. Já fomos obrigados a estacionar ao lado de um lago e encher o tanque com balde e funil! Também temos placas de energia solar, que nos permitem passar uma semana sem carregar as baterias, e nos livramos da cama que precisava ser montada e desmontada diariamente.”

Divisão de tarefas

“Quem viaja de motorhome tem muitas tarefas a cumprir. A mais chata é a obrigação de despejar os detritos do banheiro, em um sanitário de posto de gasolina ou camping, a cada três ou quatro dias. Por isso é importante ter as tarefas bem divididas. Como não gosto de dirigir, meu marido assume o volante e fica mais cansado. Eu compenso cuidando da comida e da roupa. Temos geladeira e congelador na cozinha, então não preciso cozinhar todos os dias. A máquina de lavar roupas só funciona quando conectamos o carro a uma tomada externa, mas não tem função centrífuga. O Marcos usa os músculos para torcer as roupas.”

Paradas seguras

“Pela nossa experiência, já temos segurança de estacionar fora dos campings. As regras são: nunca chegar nos lugares à noite; jamais deixar o tanque de combustível atingir a reserva, porque já paramos por falta de gasolina; e sempre consultar o app iOverlander para escolher as paradas mais seguras e ler os relatos de outros viajantes.”

Fim do preconceito

“Eu morria de medo de usar banheiro em posto de gasolina cheio de caminhoneiros. Achava um ambiente hostil para uma mulher, mas mudei de opinião. Hoje, me sinto em casa. O clima é sempre muito familiar. Quanto mais caminhoneiros, mais seguro.”

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Marcos e Nathalia na Kombi adaptada por eles: o primeiro motorhome do casal.Foto: Arquivo pessoal

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“A viagem superou nossas expectativas”

O auditor Diego Nascimento, 34 anos, trocou o carro pelo motorhome pela primeira vez em novembro de 2020. Com a mulher, a analista de crédito Carla Guimarães, 35, e as filhas Livia, 5, e Laura, 3, ele alugou um furgão Renault Master, para quatro pessoas, e passou 13 dias na estrada.

Carro X motorhome

“Na estrada, achamos a viagem mais confortável e menos cansativa. A posição de dirigir é mais cômoda e havia mais espaço para as crianças, mas não pude pegar longos trechos de estrada de terra com o motorhome, porque o veículo é muito pesado e a trepidação danifica os encaixes da estrutura da casa. Tive dificuldade para estacionar pela falta de experiência, morria de medo de bater em muros ou outros veículos. Viajar com crianças, em compensação, é um sossego. Se alguém tem vontade de ir ao banheiro, posso parar onde estiver.”

Pousada X motorhome

“Um quarto de hotel é sempre mais espaçoso, mas foi tranquilo dormir no motorhome com o ar-condicionado ligado. Até o montar e desmontar das camas foi tranquilo, porque o veículo era grande e não precisávamos fazer isso todos os dias. Os banhos devem ser curtos para economizar água do tanque, o que não foi um problema. E achamos ótimo ter mais contato com as pessoas. Em hotéis, a gente não interage tanto com outros viajantes.”

Refeições em família

“O motorhome tinha uma cozinha interna, com fogão de duas bocas, e outra externa, com churrasqueira, onde também preparávamos o café da manhã. Fizemos churrasco todos os dias! A estrutura era pequena, não dava para fazer nada muito elaborado, mas prática o suficiente para nossa família.”

Surpresas são inevitáveis

“Quando buscamos o motorhome na locadora, passamos pela entrega técnica, na qual explicam em detalhes todo o funcionamento do veículo. Mas é como um manual de instruções: você pode ler mil vezes que, na hora H, vai se atrapalhar. Manusear coisas simples, como TV e micro-ondas, foi fácil. Mas apanhamos muito para operar o climatizador e para esvaziar o tanque de dejetos pela primeira vez. Depois pegamos o jeito.”

Planejamento é tudo

“Traçamos um roteiro de São Paulo até Santa Rita do Passa Quatro, no interior do Estado, passando por Cunha, Trindade e Arraial do Cabo, no Rio de Janeiro, e Capitólio, em Minas Gerais. A ideia inicial era estacionar sempre em campings, mas um dos trechos era longo demais e fomos obrigados a parar em um posto de gasolina para dormir. Inicialmente ficamos preocupados, mas não tivemos qualquer problema.”

Orçamento na ponta do lápis

“As diárias dos campings são baratas e você economiza nas refeições, por não precisar comer sempre em restaurantes. Mas o aluguel do motorhome é caro, o que aumenta o custo total da viagem. Comparando com um roteiro convencional, gastamos até um pouco mais, mas valeu a pena. Durante a pandemia, não teria segurança para visitar tantos lugares diferentes sem correr risco.”

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Carla e as filhas, Livia e Laura: com Diego, o pai, a família passou por três Estados no furgão alugado.Foto: Arquivo pessoal

 

Saiba antes de botar o pé na estrada

Como alugar

Há empresas como a Vandão Motorhomes, que alugam veículos próprios, e outras como a Pura Vida, que atua como uma espécie de Airbnb, conectando proprietários a pessoas interessadas.

Quem pode dirigir

A maioria dos motorhomes disponíveis para locação pode ser conduzida por motoristas que têm carteira de habilitação comum, categoria B, exigida para condução de automóveis. Mas existem veículos bem maiores, como ônibus e até caminhões adaptados, para os quais é necessário ter CNH específica para a categoria. As empresas costumam exigir que o motorista tenha experiência comprovada de cinco anos.

Quanto custa

Na Vandão Motorhomes, as diárias para pacotes de três dias variam de R$ 776 (modelo Otium, para dois adultos e uma criança) a R$ 1.078 (modelo Lunae/Vesel, para até seis passageiros), com seguro incluso. Quanto mais longo o pacote contratado, mais barata vai ficando a diária. Na Pura Vida, os pacotes iniciais são de três ou cinco dias, dependendo do modelo. A locação do furgão Bella, para dois adultos e duas crianças, por três dias, sai a R$ 1.740 o pacote, com seguro e taxa de limpeza cobrados à parte.

Olho vivo no contrato

Itens de manutenção do veículo, utensílios de cozinha, wifi móvel e até cadeiras de praia podem fazer parte do pacote, mas é importante conferir a lista item por item para não ser surpreendido pelas taxas extras. Lençóis e toalhas, por exemplo, costumam ser cobrados à parte. Os contratos também preveem franquia de quilometragem – quem roda mais do que o estipulado por cada diária paga um extra por quilômetro excedido. O viajante que planeja cruzar a fronteira brasileira deve cumprir outras exigências, como contratar seguro especial (a Carta Verde, exigida pelos países do Mercosul), providenciar documentação para transportar animais de estimação e até instalar microchips nos pets, conforme o país de destino.

Quem orienta a viagem

Um dos apps mais usados pelos viajantes, o iOverlander contém informações sobre rotas, campings pagos e gratuitos, pontos de parada mais seguros e lugares a evitar, tudo informado pelos próprios usuários. Importante: nem todos os campings aceitam motorhomes, por isso é aconselhável consultar portais como o macamp.com.br e o vivasobrerodas.com.br antes de planejar a viagem.

Preços pesquisados em janeiro de 2021 e sujeitos a alteração.

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