A redenção dos vinhos licorosos brasileiros

Apesar de doces, esses rótulos amargam uma má fama que vem se dissipando devido ao trabalho de esforçados novos produtores.


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O que você faria, diria ou pensaria se, ao final de um menu harmonizado, no restaurante caro de um chef bacanão, o garçom trouxesse um vinho licoroso brasileiro, produzido no interior de São Paulo, para fazer par com a sobremesa? Por mais estranho que possa parecer, muita gente tem adorado a ideia, ainda que pese a má fama que nossos vinhos licorosos, apesar de docinhos, amargaram durante décadas. Em alguns casos, estão longe de ser a opção barata, simplória e extremamente doce de tempos idos. Rótulos mais simples ainda existem a rodo no mercado, mas hoje temos uma nova geração de vinhos doces bem elaborados, de ótima estrutura e, a quem interessar possa, premiados internacionalmente.

Nascido na paulista São Roque, o Licoroso Edição Especial Gumercindo de Góes 2011 (pomposo até no nome) é um desses exemplares. Feito com a uva BRS Lorena, é profundo, complexo, com bom balanço entre dulçor e acidez, o que é fundamental. Tem uma linda cor âmbar e traz notas de mel, amêndoas, abacaxi em compota e de especiarias como cravo e canela. Harmoniza bem com chocolate meio amargo e sobremesas à base de frutas secas ou, por oposição, com queijos azuis como gorgonzola e roquefort.

Se você achou a descrição sensorial parecida à de grandes vinhos doces europeus, há uma semelhança fundamental de método entre eles. Uma das formas nobres de elaborar vinhos doces (há outras) é a fortificação. Uma vez obtido o mosto (o sucão formado pela prensagem das uvas), as leveduras começam o trabalho de fermentação – devoram o açúcar das frutas, transformando-o em álcool. Em dado momento, o produtor agrega uma dose de álcool ou aguardente vínica ao mosto, o que interrompe o processo de fermentação e faz sobrar açúcar no líquido.

O vinho está pronto? Sim, mas fortificados como Porto, Madeira, Banyuls ou Marsala levam alguns anos para ficarem mais ricos, no ponto. Passam por envelhecimento em madeira e, na hora do engarrafamento, os líquidos de várias barricas são misturados a fim de que se chegue ao perfil desejado. É algo bem complicado mesmo e, por isso, se você tem a chance de apreciar um belo vinho doce, saiba que ali há estão engarrafados montes de trabalho, tempo e paciência. “Cada safra evolui de uma maneira distinta e cada barrica também, por isso não há uma fórmula matemática para blendar as parcelas chegar ao produto final”, diz Gregório Salton, enólogo da Vinícola Salton.

O que diferencia os licorosos rápidos e rasteiros destes vinhos laboriosos é o processo plá-pluf: basta adicionar xarope de açúcar ou outro elemento doce (tem produtor que coloca até adoçante artificial) e mandar para a prateleira. São Roque, no interior de São Paulo, fez fama com esses vinhos doces populares e hoje subverte a tradição. “Os vinhos doces mais simples nem têm tanto giro de mercado, o paladar do público vem evoluindo”, diz o enólogo Fábio Góes, que envelhece seu licoroso por oito anos em madeira.

Convencer as pessoas desavisadas de que há qualidade dentro da garrafa são outros quinhentos em que valem o poder de persuasão e a perseverança do produtor. Os passeios guiados e degustações na Góes são finalizados com o licoroso do bom, harmonizado com chocolate meio amargo, e não faltam exclamações. “Fazer o visitante provar o vinho e reconhecer sua qualidade é a melhor forma de dissipar qualquer preconceito”, diz Fábio.

“Os vinhos doces mais simples nem têm tanto giro de mercado, o paladar do público vem evoluindo”, Fábio Góes, enólogo.

Gustavo Borges, vinhateiro da BellaQuinta, também de São Roque, adotou uma estratégia parecida, levando seu licoroso de Niágara Branca a degustações às cegas, quando os provadores, profissionais e especialistas do mundo do vinho, não sabem o que bebem. Sempre saiu delas com boa pontuação e comentários boquiabertos dos especialistas: “Como um vinho licoroso de São Roque pôde ficar entre os cinco melhores da prova?!”

Adepto da vinificação de baixa intervenção, sem adição de aditivos, Gustavo teve boa acolhida entre os fãs dos vinhos naturais e ganhou cartas e menus de sommeliers e chefs como Lis Cereja, Bel Coelho e Alex Atala, além de comentários favoráveis de críticos etílicos. “Quis fazer um vinho à moda de meus avós, fermentado com as cascas, fortificado e envelhecido em barricas. E é muito bacana que outras vinícolas da região estejam voltando a essas origens”, diz Gustavo. Seu licoroso tem notas de mel, castanha, toques florais e a tal acidez que equilibra a bebida e faz com que ela ganhe maior amplitude de harmonização.

A acidez presente em um vinho doce pode permitir que, pela semelhança dessa característica, o casamento com sobremesas cítricas. O Intenso Licoroso Chardonnay, da gaúcha Salton, brilha em parceria com uma torta de limão ou com sorvetes ácidos, como o de cupuaçu, e tem sido a estrela no gran finale dos jantares harmonizados que a vinícola promove em seu casarão-showroom paulistano, a Enoteca Família Salton, espaço de prazer e aprendizado.

O Intenso Licoroso está no portifólio da empresa desde meados dos anos 2000, sem que houvesse muito alarde sobre ele até pouco tempo. O interesse por esse tipo de produto, no entanto, vem crescendo. “Ainda é um mercado pequeno, mas estamos dispostos a movimentá-lo e desenvolvê-lo”, diz o enólogo Gregório Salton, que adianta a chegada de um licoroso da uva tinta Tannat, com quatro safras em amadurecimento nas adegas da vinícola.

“Temos uma longa história com os vinhos licorosos e uma queda natural do brasileiro pelos sabores doces”, diz o sommelier Adius Bastos, que sempre comete a ousadia de colocar, em suas cartas, rótulos nacionais feitos com castas híbridas ou americanas – as uvas de mesa, consideradas menos nobres. BRS Lorena, Niágara e Isabel são algumas dessas variedades, com as quais Adiu acredita que já criamos um estilo próprio. “A Moscatel brasileira é uma lindeza, gera vinhos tranquilos, espumantes e licorosos fantásticos. Há um potencial enorme e um mercado de bico doce disposto a conhecer estes vinhos. É muito bom que produtores estejam olhando com cuidado para a essa tradição”.

O QUE PROVAR

Licoroso Edição Especial Gumercindo de Góes

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É elaborado com a uva BRS Lorena, casta híbrida criada pela Embrapa com o cruzamento das uvas Malvasia Branca e Seival. Com seu buquê fino e sabor elegante, já descrito acima, o licoroso chic da Góes conquistou medalha de bronze do Decanter World Wine Awards, um dos concursos vínicos mais importantes do mundo. O rótulo retrô reproduz a arte que Gumercindo de Góes aplicou em seu primeiro vinho licoroso, lançado em 1963.
Garrafa de 700 ml, teor alcoólico de 18%.

Branco Licoroso Doce Niagara BellaQuinta

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Ele é o queridinho dos chefs modernos, uma prova de que uvas de mesa como a Niágara podem render ótimos vinhos, quando bem trabalhadas. É uma bebida delicada, com aromas de mel, nozes, frutas secas, perfeita para harmonizar com todos os doces que levam esses ingredientes ou preparos cremosos. Você pode usá-lo (este e outros licorosos) como calda, dando uma leve batizada de vinho na sobremesa. Fica um escândalo com sorvete de nata.
Garrafa de 500 ml, teor alcoólico de 16%.


Branco Licoroso Dona Hilarina

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Outro fortificado de São Roque, também feito com a uva Niágara. Passa por 36 meses de descanso em barricas de carvalho e é um pouco mais encorpado que o exemplar da BellaQuinta. Uma delicinha que funciona bem com sobremesas carameladas, tortas cítricas e sobremesas com frutas secas como figo, passas, damascos. Boa surpresa da Adega Terra do Vinho.
Garrafa de 375 ml, teor alcoólico de 16%.


Salton Intenso Licoroso

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Belo exemplo de como os vinhos fortificados também vêm renascendo no sul do país. O Intenso é elaborado com uvas Chardonnay colhidas na Serra Gaúcha e traz muita delicadeza no paladar, apesar do corpo denso. De cor dourada, ele tem aromas de mel, baunilha, frutas secas e cristalizadas. Por sua acidez notável, combina especialmente com sobremesas cítricas, mas também tem enormes possibilidades no casamento com outras sobremesas.
Garrafa de 500 ml, teor alcoólico de 15%.


Cave de Pedra Licoroso Branco e Tinto

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A Cave de Pedra, de Bento Gonçalves, na Serra Gaúcha, produz um fortificado branco (Moscato e Malvasia de Candia) e outro tinto (Cabernet Sauvignon e Merlot). O primeiro traz notas de mel, abacaxi, ervas e o floral característico das castas brancas empregadas. Na boca, uma persistente acidez. O tinto vem com buquê de ameixa seca, uvas passas, tabaco, chocolate e outros aromas intensos. Na boca, frutas em calda, chocolate, cacau e café.
Garrafa de 375 ml, ambos com teor alcoólico de 18%.

Licoroso Miolo late Harvest

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Late harvest (colheita tardia) é outra forma de produção de vinhos licorosos. Consiste em colher as uvas depois do tempo ideal de maturação, quando elas concentram ainda mais açúcar. Em certos casos, as frutas chegam a desenvolver o que se chama de podridão nobre, ataque de fungos que, acredite, enriquece o vinho. Este late harvest da Miolo, feito na Campanha Gaúcha com as brancas Viognier e Gewürztraminer, vem com notas de pêssego, castanhas e boa acidez.
Garrafa de 500 ml, teor alcoólico de 15,5%.

Licoroso Branco Passito Santa Augusta

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Os passitos, comuns na Itália, formam outra categoria de licorosos. São elaborados com uvas desidratadas (ou seja, passas), com ainda mais concentração de açúcar. A vinícola catarinense Santa Augusta utiliza o processo de torcer as hastes dos cachos de uvas para impedir a passagem da seiva e murchar as frutas. Não bastasse, os cachos são envelopados para evitar o ataque de aves e insetos comilões. O passito de Moscato Giallo, feito na região de Videira, é floral e muito frutado.
Garrafa de 200 ml, teor alcoólico de 15,5%.

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