Academia de imortais

Sobre a ABL, protocolos e palavras não-ditas.


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Diz a lenda que Clarice Lispector achava a Academia Brasileira de Letras um lugar de mau agouro. Segundo ela, depois de eleito, bastava um espirro para desencadear boatos sobre morte iminente seguida de cadeira vaga. Em todo caso, decidiu jamais passar perto daqueles fardões.

Em 2008, a escritora Conceição Evaristo colocou sua candidatura à ABL. Ainda não havia, como não há, uma mulher negra na história da Academia, que nasceu em 1897. A escritora mineira, uma das mais importantes do país, fez muito barulho com sua iniciativa. Mas parece que os ouvidos dos imortais são muito sensíveis e só gostam de escutar o que não contraria o fluxo ancestral da louça de chá.

Conceição não deitou açúcar como queriam. Não deu festas nem pediu apoios. Se inscreveu pelas regras oficiais, pelos livros que escreveu, sua obra potente, insubmissa. Mas ali não é bem isso que está em jogo. O que é, evidentemente, muito interessante de se notar. Conceição, com seu talento, deu o chamado nó em pingo d’água com muita elegância. Quem ficou com a cadeira naquela ocasião foi o diretor de cinema Cacá Diegues, amigo e frequentador assíduo dos eventos do grupo, um candidato bem à moda da casa.

Hoje, anos depois, comemora-se a eleição de Fernanda Montenegro, nova acadêmica. Atriz extraordinária, não paira qualquer sombra de dúvida sobre seu talento, que merece ser sempre celebrado. A Academia não elege apenas escritores, a regra é ter escrito ao menos um livro, mas os integrantes devem ser notáveis no vasto campo da cultura e arredores. Fernanda certamente gabarita aí.

Também dará tenção midiática à ABL, talvez patrocínios, já que , segundo leio, o grupo sofreu quedas sequenciais de receita e enxugou o quadro de funcionários nos últimos anos. Os jornais dizem que a academia está mais “pop”.

Essa coisa dos notáveis veio do exemplo da academia francesa, inspiração para a versão brasileira. Machado de Assis foi contra, queria algo realmente focado na literatura. Acabou sendo voto vencido naquela que chamam de a sua casa.

Mas mesmo ser notável não basta sempre. Não bastou para Conceição, como não bastou para Lima Barreto, dois notabilíssimos. Martinho da Vila tentou, seguiu todos os protocolos e recomendações, mas não foi eleito. No final, disse em entrevista que o processo todo tinha sido extremamente chato.

Também não deu para Oswald de Andrade, que era tido como linguarudo demais, mas deu por exemplo para o jornalista da Globo Merval Pereira, comentarista político de língua voraz e autor de uns livros sobre o tema. Dizem que ele é influente nos convescotes, periga ser o novo presidente.

Merval foi um dos que ficaram acuados pela presença de palco, pela firmeza de propósito e pela atitude nonchalant de Conceição. Fez bico em defesa do teatrinho exigido, sentiu-se atingido. Contrariado, acabou dizendo uma verdade: “Se alguém quer fazer parte da academia, precisa aceitá-la como ela é”. Pois.

Boa questão isso levanta. Como ela é, a ABL? Bom, os líderes parecem não se importar em chamá-la de um “clube de amigos”. É uma academia privada sem fins lucrativos. Logo, pode muito bem selecionar quem melhor representar os interesses desse grupo, quem melhor se encaixar.

O que nos leva a pensar no status da coisa. Por que um grupo que assim se define, que escolhe seus novos membros segundo um complexo ritual de apoios, festinhas e beija-xícaras, é tido como esse super representante, como instituição maior das letras brasileiras?

Ah sim, Machado de Assis, Castro Alves, Jorge Amado, Guimarães Rosa, Euclides da Cunha, Manuel Bandeira, a lista é grande e muito bonita no sentido do conjunto de obras. Há um acervo precioso, bibliotecas, coisas cujo valor é indiscutível.

Mas, como sabemos, não estamos falando apenas de um arquivo, de um museu estático ou de uma confraria de anedotas históricas.

Houve, é claro, avanços. Tímidos, se formos muito generosos. Mulheres puderam ingressar a partir de 1977, e ainda hoje são poucas. Todas brancas. Recentemente, na seção “novas palavras”, onde são destacadas aquelas expressões que estão sendo mais usadas, ganhando espaço na língua, estava “antirracista”. Interessante.

O atual presidente Marco Lucchesi, no relatório de atividades de 2020, disse que “As instituições brasileiras precisam abrir portas e janelas, para que se tornem mais coloridas e diversas, mediante a presença de afrodescendentes e povos originários. Assumir a diferença significa ampliar a emancipação, combater o racismo e democratizar a República. Não queremos a entropia do Mesmo. Somos todos brasileiros. Somos filhos do plural”. Eu diria que há que derrubar as paredes e as fundações branco-coloniais do Mesmo, senhor presidente. Somos filhos da barbárie centenária e precisamos de novas bases comuns para outras estruturas, não de “abrir portas e janelas” para as visitas que agora decidimos convidar.

O Brasil tem uma produção literária brilhante. Que certamente merece uma outra academia mais animada, que queira botar fogo no debate – isso hoje em dia parece estar sobretudo na mão das feiras literárias mainstream, o que em si é uma discussão que vale ser colocada.

Uma academia, não sei, talvez como queria Machado de Assis, com foco maior na literatura como movimento vivo da passagem das pessoas no mundo, lugar de registro, de trauma, de susto, suas pesquisas, seus impasses, seus sonhos.

Uma Academia de Letras capaz de representar os movimentos da escrita dos mortais ao longo do tempo. Talvez menos francesa antiga, com mais e outras referências, um espaço de discussão com fervo. Um figurino mais fresco também não seria pedir muito.

Queria eu, a adulta de uma criança completamente alucinada por livros, uma academia que acolhesse aqueles que fizeram e fazem da literatura um lugar de encontro e surpresa. Não só nessa lógica viciada de patronos e lugares, mas de uma atividade contínua, intensa, PÚBLICA.

Onde Clarice não visse assombração nas cadeiras. Onde houvesse lugar para acomodar confortavelmente Carolina de Jesus. Onde Hilda Hilst tivesse vontade de ir fumar um cigarrinho e dar risada. Onde se fizesse festa para Conceição Evaristo e não se exigisse isso dela como pedágio.

Aliás, quero já desfazer um nó para dar outro. Não se trata de opor Fernanda e Conceição numa disputa, isso é apenas desonesto. Até porque elas não disputaram a atual vaga e porque há tantas e tantas outras ocupadas por homens brancos, bem mais discutíveis. As duas poderiam estar lá juntas, cada uma levando suas questões. A questão são os moldes e as regras da ABL, que incluem uma e excluem outra, que ao longo de mais de cem anos vão se dizendo e revelando padrões e preferências.

O nome da atriz reacende o debate. O que pode ser uma oportunidade de tirar da tal casa os ares de mausoléu ou de questionar mais duramente os termos de sua relevância hoje, no presente.

Há tanto pra ser descoberto.

As novas experiências, os quadrinhos, as ondas de novos e velhos poetas, os saraus periféricos, a produção vinda das margens onde os arranjos da linguagem oficial estão em mutação porque entraram em jogo novas escutas e novos olhares.

Enfim, dizem que na ABL não gostam de briguentos e agitadores. Mas lidam numa boa com senhores mimados e puxas-saco, entre outros perfis notáveis por sua obsolência. Assim que só posso desejar a Fernanda uma boa sorte, e ao Brasil, uma academia de letras que não se acovarde diante dos desafios de seu tempo.

Vivian Whiteman, jornalista e psicanalista, é editora especial da ELLE e escreve sobre moda, sociedade e comportamento.

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