Beth Cheirosinha mantém viva a tradição das erveiras

Para cada problema, ela tem uma solução na forma de erva – são saberes milenares que formaram a base para várias terapias contemporâneas.


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Ilustração Gustavo Balducci



“Aí, eu pego as ervas que contém os nomes carrapatinho, agarradinha, chega-te a mim, chora nos teus pés, pega e não te larga, faz querer quem não te quer, vai buscar quem tá longe e queira não queira, vai ter que te querer. Aí pega um galhinho de cada uma dessas, coloca em infusão numa colônia, num perfume. Não serve na água porque apodrece, tem que ser numa ser numa colônia que contém álcool…”s

Ouvir Beth Cheirosinha recitar nomes de plantas e explicar seus usos é como escutar poesia. Aos 70 anos, mãe de nove filhos e dona de uma sabedoria ancestral profunda, ela é uma das erveiras mais respeitadas de Belém (PA). Cheirosinha se autointitula doutora da medicina natural e patrimônio cultural – definições muito justas para quem acumula 54 anos de dedicação às plantas medicinais. É a terceira geração de uma família de erveiras: aprendeu tudo o que sabe com a avó, Mãe Velha, que viveu até os 115 anos, e a mãe, Dona Cheirosa, que morreu aos 90. As duas foram pioneiras na venda de ervas no Mercado Ver-o-Peso, na capital paraense, como conta Cheirosinha: “Elas vinham de Genipaúba, interior de Belém, com as plantinhas nesses paneiros de cipó”, relata. “Ali no Ver-o-Peso, elas arriavam no chão, não tinha negócio de cimento, o freguês chegava, perguntava os nomes das plantas e elas vendiam.” Com o passar do tempo, Mãe Velha e Dona Cheirosa trouxeram mais uma amiga para o mercado, a amiga levou o filho, que levou o neto e, hoje em dia, o bloco de ervas no mercado ferve: cerca de 80 barracas atraem gente de todo canto atrás de soluções para problemas que vão de verruga no dedo a males do amor.

Plantas medicinais são utilizadas pela humanidade desde as civilizações mais antigas. Egípcios, chineses, hindus e outros já utilizavam as plantas como medicina para alcançar a cura e para fins espirituais e estéticos, assim como os povos tradicionais do Brasil – indígenas, quilombolas, ribeirinhos – e pessoas adeptas das religiões de matrizes africanas, benzedeiras e rezadeiras.

Em função do processo de colonização, saberes ancestrais como os das erveiras de Belém foram negados, invisibilizados ou até mesmo descredibilizados pela sociedade. Reconhecer, respeitar e valorizar esses saberes, portanto, é promover uma reconexão com a nossa própria cultura. Para a farmacêutica Alline Cipriano, especializada em fitoterapia e manipulação magistral, erveiras e benzedeiras exercem um papel fundamental na transmissão de conhecimento para a preservação das plantas medicinais e terapias naturais. “Elas são uma enorme biblioteca viva onde estão catalogadas diversas espécies medicinais e litúrgicas há muito tempo usadas tanto pelos povos originários indígenas quanto pelos povos africanos. Devemos valorizar esses profissionais e honrar todo seu conhecimento”, diz Aline.

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Terceira geração de uma família de erveiras, Beth Cheirosinha dedica-se às plantas medicinais há 54 anos.Foto Arquivo Pessoal

Essa sabedoria passada de geração para geração serviu de base também para o desenvolvimento de várias terapias aplicadas atualmente, como a aromaterapia com óleos essenciais e a terapia floral. Essas abordagens fazem parte de um guarda-chuva mais amplo, a chamada terapia holística, que busca alinhar o corpo físico, mental, emocional e energético. “A terapia holística tem um papel fundamental de restabelecer os centros energéticos. Toda doença do corpo físico tem origem no corpo energético”, diz Luana Lessa, terapeuta holística especializada em terapia floral.

Para Jorene Ferro, terapeuta corporal e holística, “todos os corpos energéticos se beneficiam da aromaterapia”. E tudo começou lá atrás: “As erveiras usavam chás, faziam banhos, faziam defumação. Elas não tinham a forma química para lidar com os óleos essenciais, mas claro, toda formulação começou daí”, diz Jorene.

A terapeuta holística Laura Pitangui, gestora do espaço Ateliê Casa Vênus em parceria com o Clube das Pretas, no Rio de Janeiro, explica que a aromaterapia costuma ser utilizada em conjunto com outras formas de tratamento e pode ter várias finalidades: “Utilizamos a aromaterapia como uma ferramenta complementar para o trabalho corporal, com o intuito de trazer um bem estar geral para a cliente. Utilizamos para tratar questões emocionais como depressão, falta de libido, baixa autoestima das pacientes e para trazer um equilíbrio e uma reconexão consigo mesma. A aromaterapia trabalha o corpo de uma maneira natural e holística e pode auxiliar nos tratamentos de sintoma físicos, mentais, emocionais e do bem estar em geral”.

O universo das plantas medicinais é amplo e rico, assim como a sua utilização por terapeutas holísticos, erveiras, benzedeiras e por rituais de povos indígenas, quilombolas e outras culturas. No final das contas, o desejo pelo encontro de um lugar confortável dentro de nós passa pelo cuidado e acolhimento de nossas próprias demandas, sejam elas espirituais ou medicinais. E que maravilha é poder contar com pessoas como Beth Cheirosinha para encontrar esse lugar.

“Nós somos habitantes da floresta. Nosso estudo é outro. Aprendemos as coisas bebendo o pó de yãkoana com nossos xamãs mais antigos. Nos fazem virar espírito e levam nossa imagem muito longe (…) Apesar disso, os brancos acham que não sabemos nada, porque não temos traços para desenhar nossas palavras em linhas. Outra grande mentira! Nós só ficaríamos ignorantes mesmo se não tivéssemos mais xamãs.”
Davi Kopenawa, xamã Yanomami, no livro A Queda do Céu

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