Gordofobia na quarentena (mas antes dela também)
E, às vezes, um pouquinho aqui dentro.
Vou confessar que não é muito fácil escrever este texto, viu? Pensei bastante a respeito do que eu queria dizer (e é bastante coisa… Talvez por isso a dificuldade em começar), mas, finalmente, consegui tomar uma decisão. Vamos falar um pouco de mamãe. Minha mãe é o tipo de pessoa que sempre espera o melhor dos outros. Isso não quer dizer que ela seja ingênua ou que ela não saiba se defender. Pelo contrário, ela é uma das pessoas mais fortes que conheço. No entanto, mesmo quando vão contra ela, mesmo quando atacada por outros, minha mãe arranja um jeito de ter empatia. Ela pensa no passado das pessoas, em como elas foram criadas, em que ambiente viveram e a que circunstâncias violentas foram expostas para reproduzirem esse tipo de comportamento. Ela acredita que há uma razão para o mal expurgado pelos outros. Que o vilão não pode ser só vilão, que existe um ser humano machucado por trás da perversidade e que, talvez, ele só precise de um pouco de compaixão e um pouco de conversa. E ela, diferente de mim, conversa. Vai se esgueirando por entre os golpes e tenta alcançar o coração das pessoas. Nossa, como eu a admiro por isso…
Se eu tivesse a coragem da minha mãe, não teria começado o texto falando dela. Cortaria direto para o assunto que me trouxe aqui: gordofobia na quarentena. Ela conseguiria arranjar um jeito delicado de explicar para as pessoas o porquê desses memes “Barbie magra pré-quarentena, Barbie gorda pós-quarentena” serem extremamente gordofóbicos. Talvez ela nem usasse a palavra “gordofobia”, para não assustar ninguém. Ela falaria sobre a falta de sensibilidade para com os outros, falaria de prioridades dentro de uma pandemia global, falaria sobre a jornada dura que as pessoas gordas têm que atravessar para tentar encontrar algum autoamor… Mas, esse texto é meu e eu estou um pouco cansado. Acho até que nem é um cansaço, mas uma preguiça mesmo. Uma falta de vontade de tentar convencer alguém de alguma coisa. Se você acha engraçado demonizar comida ou se, durante essa catástrofe mundial pela qual estamos passando, sua maior preocupação é ganhar peso, honestamente, nós somos duas pessoas muito diferentes. E não vou ser eu quem vai construir uma ponte para você chegar até aqui.
Até porque eu sempre fui gordo. Acho que, nesses 26 anos na terra, devo ter vivido uns dois ou três meses um pouco menos gordo, mas nunca magro. Segundo alguns, eu sou gordo, mas “tenho a sorte” de ser alto “que daí dá uma distribuída” (rindo de nervoso). Quando estive menos gordo, minha cabeça estava tão adaptada ao ódio de mim mesmo que nem consegui curtir os frequentes “nossa, como você emagreceu!” (como se isso fosse elogio, mas ok). E, quem passou a vida toda sendo alvo de chacota, em algum momento, se não arregar, desistir ou até se matar, acostuma. Engrossa a pele, se possível faz terapia, e segue a vida. Então, não é surpresa nenhuma a piadinha da Barbie pós-quarentena. Já vi e continuo vendo coisas muito piores quando se trata de gordofobia. Por exemplo, tem as pessoas (em geral, magras, é claro) que negam que ela exista. Tem aquelas que não conseguem acreditar – ficam absolutamente embasbacadas (e, por vezes, raivosas) – que tem gente que é gorda e é feliz. E, sim, também tem aquelas que não têm nem vergonha de manifestar o seu ódio às pessoas gordas. Há quem se dê o trabalho de ir até as publicações de ativistas body positive só pra escrever comentários baixos do tipo “gordo arrombado”, “porca suja” etc.
O chato é que, às vezes, você passa pelo seu próprio feed no Instagram e tem gente que você admira reproduzindo gordofobia ou sendo consciente e ativamente gordofóbico.
Foram quase dez anos de terapia para chegar aonde eu estou hoje: as piadas, os memes, os ataques, a subestimação, o preconceito e o ódio não me assustam mais. Eu tenho plena consciência da existência de tudo isso e aprendi a me blindar minimamente desse tipo de baixaria. Uns dias mais, outros menos, evidentemente. O chato é que, às vezes, você passa pelo seu próprio feed no Instagram e tem gente que você admira (seja por razões profissionais ou por simples afetividade e carinho) reproduzindo gordofobia ou sendo consciente e ativamente gordofóbico. Com isso, pelo menos para mim, chega uma sensação (absolutamente inverídica, mas totalmente verossímil) de que eu estou sozinho com as minhas ideias. Parece que o mundo inteiro é gordofóbico e, em certa medida, a gente quer fazer parte do mundo e não só ficar gritando aos quatro ventos para que ele mude. E é aí que acorda o gordofóbico que mora dentro de mim.
Porque ele continua lá dentro, tá? Ele nunca desapareceu e nem sei se um dia eu vou conseguir arrancá-lo de mim por completo. De repente, depois de umas cinco ou seis pessoas “legais” sendo escrotas, vem uma vontade esquisita de emagrecer. É curioso, às vezes, ela nem chega no exato momento em que você vê a gordofobia acontecendo. Mas parece que essa porra dessa piadinha planta uma semente que fica só esperando uma oportunidade para germinar.
Dessa vez, eu estava assistindo Star Wars (risos). Não tinha visto nenhum dos filmes mais novos da franquia e decidi me atualizar. Peguei uma boa madrugada de insônia, tão frequente nas noites dessa quarentena, e fui embora. Em dado momento, o vilão Kylo Ren (interpretado pelo Adam Driver) tira o capacete revelando o seu cabelo escuro e seu olhar maléfico. Fiquei menos impressionado com seu personagem do que com seu figurino. Como ele está lindo… Inteiro de preto (quem me conhece, sabe que eu amo um look all-black), ombreiras marcadas, gola rulê e um maldito cinto largo e envernizado marcando a cintura. O filme acabou e eu nem sabia se estava torcendo para os Sith ou para os Jedi: eu já estava com uma dieta pronta na minha cabeça. “Quando a gente sair da quarentena, eu vou emagrecer para conseguir sustentar um look assim”, me peguei pensando. Só que não é como se eu não soubesse que pessoas gordas podem usar cintos largos marcando a silhueta. Eu sei que podem e quando vejo outras pessoas usando, acho lindo. Mas, ali, naquele momento, os fantasmas estavam falando mais alto. E vale lembrar que deus ajude a gay gorda que quer encontrar um cinto envernizado para comprar. Nem nas lojas de “tiozão” em que eu consigo arranjar algumas peças (e dar uma modernizada no styling) os cintos básicos estão servindo, imagina nas descoladas…
Já cansei de dizer não para as alegrias no meu caminho por acreditar que o meu corpo não era merecedor delas. Ele é, sim.
Tudo isso para dizer aos gordofóbicos de plantão que, sim, eu cresci, muita coisa mudou e vocês não me machucam com a mesma agressividade e brutalidade com que me machucavam antes, mas ainda machucam. Ainda ajudam com os memes engraçados e tuítes atrasados a despertar o fantasminha gordofóbico que existe dentro de mim. Parabéns, missão cumprida, eu não sou um gordo 100% feliz com o meu corpo… De vez em quando eu como com culpa, de vez em quando eu me visto para parecer mais magro, de vez em quando peço para mudar o ângulo da foto para “me favorecer” mais, de vez em quando até me escapa um “nossa, como você está magra!” em tom de elogio. Contudo, independentemente de tudo isso, eu ainda dou um jeito de me amar. E, como o meu corpo faz parte de mim, eu amo também o meu corpo. O que não quer dizer que estou 100% feliz com ele ou que ele só me traga experiências positivas. Mas o meu corpo me trouxe até aqui. Vale destacar o uso da palavra “amar”. Amor é muito diferente de paixão. Eu não estou apaixonado pelo meu corpo. Não olho para cada pedacinho dele encantado por sua beleza. Não suspiro para mim mesmo ao enfrentar o espelho. Mas amo o meu corpo porque são esses 116 quilos que me levam para balada, são com eles que eu durmo e que passo pelas experiências mais legais que a minha vida tem a me oferecer. Já cansei de dizer não para as alegrias no meu caminho por acreditar que o meu corpo não era merecedor delas. Ele é, sim, merecedor e eu estou determinado a não permitir que tirem isso de mim.
No mais, depois de tanto falar sobre e com os gordofóbicos, agradeço também todos os gordos que já passaram ou estão na minha vida, sejam eles amigos e amigas queridas, sejam eles pessoas que vi uma ou outra vez, sejam eles pessoas que eu só sigo no Instagram. Gente como Alexandra Gurgel, Bia Gremion, Caio Cal, Bernardo Fala e Ju Romano não têm a menor ideia do quanto transformaram a minha vida. Já estiveram muitas vezes nas minhas sessões de terapia sem nem saber. Mostram para mim, todos os dias, que ser gordo não precisa ser impedimento para nada. E, por me lembrarem constantemente dos caminhos bizarros que a gordofobia faz para atacar a gente, são duplamente atacados por toda sorte de baixaria. E continuam de pé. Não se amedrontam, não abaixam a cabeça. Um dia, quero ser assim. Por hora, estou satisfeito em olhar para essa foto e lembrar mais desse dia lindo – de céu violeta, mar esverdeado, lua já brilhante no fim da tarde depois do horizonte -, e dos amigos queridos que me acompanharam nessa viagem, do que da minha barriga. Na ocasião, exposta em toda sua glória.
Foto: Isabela Yu
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