O direito de esperar
A escritora Jarid Arraes escreve sobre o fim dos planos para o futuro, sobre raiva, medo e por que ela não é – nem quer ser – a isolada ideal.
Meu ano estava planejado. Eu tinha imagens quase palpáveis do que faria, dos convites que recebi, das ideias que criei para ampliar meu trabalho. Tudo tão estruturado, imaginado com afeto e bolinhas coloridas na agenda do celular. Até o dia em que percebi que já estava em isolamento e não tinha a menor ideia de quando sairia.
Eu realmente pensei, e penso, que mês que vem não vou ter dinheiro pra pagar contas e comprar comida. Eu realmente fiquei triste, e continuo triste, porque os livros planejados para bem perto ficaram previstos para bem longe. Longe para mim, que sempre desejei, e ainda desejo, tudo imediatamente.
Ser uma pessoa do agora tem duas faces. Todo dia eu jogo uma moeda para o alto e pode ser que o lado virado para cima seja o da ansiedade para que as coisas aconteçam. Aconteçam já. Vocês ouviram, coisas? Eu quero vocês agora.
Mas desde que entrei em isolamento, muitas delas receberam outros significados.
É claro que eu gostaria de ter meu próximo livro publicado ainda no primeiro semestre, e gostaria de ter meu livro que está fora de estoque novamente nas livrarias. Mas não vai rolar, não adianta jogar moedas para cima e procurar motivos para repetir que eu quero agora, eu quero é agora, só serve se for agora. A única coisa que adianta é não me sufocar com o impulso de adiantar a vida.
Mas, olha, há um bom tempo aprendi a viver no presente. Esse é o outro lado da moeda.
Como estou me relacionando com o presente, entendo que o futuro não está completamente sob meu controle. O futuro vai chegar, mesmo que eu tente apressar ou atrasar o seu passo. Quando ele chegar, ele será o presente.
Logo nas primeiras duas semanas do isolamento, uma angústia para produzir veio morar no meu corpo. Com tanta gente falando que estava aprendendo a fazer yoga, bordado, comida, exercício, tanta gente falando que estava gostando de acordar cedo, sentir o sol na cara, cuidar das plantas, manter a casa limpa, eu pensei: tenho que escrever um romance agora. E muitas pessoas da literatura repetiam: ah, imaginem quantos livros sobre a quarentena vão ser escritos, quantos poemas, e os romances que finalmente ganharão espaço na vida dos escritores? Eu estou com um romance na cabeça há meses, minha oportunidade é agora, eu pensei. E penso.
Mas não, não tem que ser agora.
Minha vida como escritora quase não tem espaço para respiro. Estou preocupada com minha família, tenho amigas que trabalham em hospitais, minha renda é muito, muito menor, se não inexistente – vai depender de quando o futuro virar presente – e eu ainda estou toda ocupada e toda preenchida pela raiva que sinto das pessoas.
Tanta gente que pode respeitar o isolamento e não respeita. Tanta gente que supostamente respeita o isolamento, mas recebe amigo em casa, porque está difícil ficar só. Tanta gente ouvindo o discurso de que precisamos trabalhar, porque se o Brasil não trabalhar, é aí que vamos morrer. Não de um vírus altamente contagioso que destrói seu sistema respiratório e não se importa com sua idade, viu, não são só os idosos que podem ser sacrificados. O discurso diz que vamos morrer por causa da improdutividade.
Essa lógica tem um significado muito claro, mas ele é tão claro, que para algumas pessoas pode atrapalhar a visão. A lógica é: quem não produz é descartável.
Então se você é um idoso aposentado, você já ia morrer mesmo, né? E você que está em idade de produtividade, se não fizer cursos profissionalizantes, edificantes, que se reverterão para trabalhar ainda melhor, você também se torna um peso morto. A rotina tem que ser mantida, como se você estivesse dentro da empresa com hora de chegar e sair. Vamos, se mexa, aumente sua capacidade de gerar lucro. Porque, se não for assim, o apocalipse será sua culpa.
Mas, olha, essa aceleração faminta por produzir não é um problema de uma pessoa só. É um problema de todos e infligido contra quem não pode parar. É por isso que tanta gente continua dentro de ônibus cheios ou carros ansiosos. Para a sociedade que vivemos, esse é nosso valor.
Por que não nos recusamos a liquidificar a vida na potência máxima?
Se a resposta for “porque eu não posso esperar, senão não pago as contas”, conseguimos enxergar o problema?
Eu rejeitei o impulso de entrar, imediatamente, na dança das novas habilidades. Eu me dei um tempo para frear tudo e pensar, peraí, por que eu faria isso? E grande parte dos motivos estava na busca por maquiar a ansiedade.
A ansiedade, assim como o isolamento por causa do coronavírus, não tem beleza natural. Não pode ter suas “características positivas” realçadas. Somos esmagadas, sufocadas, nos sentimos inúteis, pesadas, coisas que deram errado.
Então pego minha moedinha e tento deixar sempre virada me encorajando a viver no presente. Sempre que revisito esse pensamento, consigo me perdoar por não ser a isolada ideal. Sou compreensiva com minha raiva; é normal que ela exista, porque ela nasce da angústia e do medo. É natural ter medo. Faz parte não querer ou não conseguir adquirir novos talentos e cozinhar pratos saudáveis.
Cara, ainda bem que eu tenho pratos.
Eu olho pela janela do meu apartamento, vejo as pessoas andando e o comércio do bairro aberto, e a única coisa que eu queria era que todas essas pessoas quisessem e tivessem o direito de esperar.
Eu espero.
Mesmo com tanto medo, mesmo ansiosa, mesmo com raiva. Eu continuo esperando, eu sei que vou ter que esperar.
Esse texto não é pra dizer: aprenda a viver no presente. Viva como puder, cuide de sua mente, tente não virar pedacinhos. Esse é um texto sobre coisas que observo muito vividamente durante a espera.
E, olha, a maior convicção que tenho é que quando o assunto é espera, não deveríamos demorar para dizer, ei, por que nós temos que liquidificar nossa vida? Por que não temos direito de parar?
Quando o assunto é espera, não deveríamos esperar para enxergar nossa coletividade.
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