O que os olhos não veem as etiquetas não mostram

Profissionais essenciais à cadeia de produção de moda que vivem e atuam nos bastidores estão entre os mais afetados pela crise.


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“Já estávamos vivendo um pouco da crise da covid-19 desde janeiro por meio dos nossos fornecedores chineses”, conta Elza Bastos. Na época, ela trabalhava como estilista em uma grande marca nacional, a qual ela pede para seja mantida em sigilo por questões profissionais. “Naquele momento, tínhamos a sensação de que a epidemia não seria algo tão grande. A gente acredita que o mundo é moderno, que há tecnologias incríveis para segurar um vírus.” Não foi o que aconteceu.

Desde meados de março, muitas fábricas e empresas fecharam suas portas e adotaram métodos de trabalho remoto. Por cerca de um mês, Elza, então braço-direito de um nome conhecido da moda nacional, passou a exercer suas funções em casa. Foi quando percebeu que o presencial não é tão necessário como se imagina.


A rotina da modelista Elisangela Rosa mudou consideravelmente com a nova estrutura de trabalho. Desde o dia 17 de março em casa, ela teve seu salário reduzido em 25% e foi forçada a tirar 30 dias de férias antes de retomar suas atividade. No meio tempo, lançou uma apostila de gradação online, um canal no YouTube e um site, chamado Modelagem Blog. “Esse meio é tão difícil, é raro ver alguém que divide conhecimento de forma democrática, acessível a todos”, diz ela, que já foi professora de pós-graduação no Instituto Orbinato, em Santa Catarina, e é especialista em desenvolvimento de tamanhos.

Hoje, seu trabalho funciona assim: uma coordenadora de estilo envia as modelagens que precisam ser feitas; uma vez que os moldes estão prontos, eles são encaminhados para uma estilista realizar a prova numa modelo; depois, retornam para Elisangela que transfere todas as medidas e instruções para uma tabela e as envia para a produção em massa na China. “Para mim, é difícil trabalhar dessa maneira. Não consigo estabelecer uma comunicação tão boa com o resto da equipe. E ainda tenho filhos, eles não conseguem entender que estou em casa e trabalhando ao mesmo tempo”, explica a modelista.

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A costureira Gleice Alvez e a modelista Elisangela Rosa.Fotos: Acervo Pessoal

É uma queixa comum no setor. “Faz falta a proximidade com as estilistas e com as modelistas. O tipo de trabalho que nós fazemos, de criar as peças do zero, é mais difícil à distância”, diz a piloteira Debora Bucciarelli. Piloterias são costureiras especializadas na confecção da peça-piloto, aquele primeiro protótipo da cada item de roupa. Como muito da produção foi interrompida pela crise, várias delas estão paradas em casa, muitas vezes sem remuneração.

No dia 17 de abril, Elza Bastos foi demitida. “Estavam acontecendo cortes muito grandes e sucessivos na empresa. Geralmente ocorriam às segundas e às sextas e eu ficava muito tensa, pensando quando seria minha vez. Até que o dia chegou. É uma realidade muito dura. Eu recebi corretamente todas minhas verbas rescisórias, tive acesso a meu FGTS e estou começando a pensar em tocar meu próprio negócio. Infelizmente essa não é a realidade de muitas pessoas nessa indústria. Tem representantes de tecelagens e costureiras, por exemplo, sem nenhuma perspectiva de renda”, diz ela.

“Venho de uma família de costureiras, então sempre foquei em não deixar faltar nada para ninguém. É muito fácil ver todo o glamour da moda e esquecer o que está por trás” – Gleice Alves, costureira.

A realidade das grandes empresas do ramo não é a mesma dos pequenos empreendimentos de costureiras independentes. Enquanto as primeiras demitem funcionários em massa e reduzem salários, as confecções menores usam o momento de crise para tentar manter suas equipes unidas apesar da distância. É o caso de Gleice Alves, dona da confecção Flutue Ateliê e Confecção.

“Nós fabricamos peças do zero. A produção é inteira nossa. Tenho duas funcionárias que trabalham comigo, além de algumas oficinas fora do escritório”, fala ela, que costuma atender algumas pequenas marcas como a Neriage. “Estávamos produzindo a todo vapor quando tudo aconteceu”, lembra. O cancelamento do SPFW foi o momento de virada na sua opinião. “Até então, estávamos fabricando pilotos tanto para mostruário como para desfiles e alguns showroom.”

Dentro do seu negócio, a modelagem e a pilotagem continuam a ser feitas, ainda que remotamente. A modelista conta que higieniza todos os tecidos que chegam para ela, usando sempre luvas e máscaras. Os aviamentos são a parte mais difícil: como não podem ir até a loja escolher o que precisam, confiam na internet e acabam tendo que devolver muita coisa. “Estamos produzindo apenas com os tecidos que já foram entregues, mas tem muitos atrasados.”

Segundo Dari, o futuro é bastante incerto e preocupante. “Quase todos os contratos com as oficinas de costura foram interrompidos ou cancelados. Isso afeta diretamente a condição de trabalho dessas pessoas. Vulneráveis, elas são muito mais suscetíveis a aceitar condições degradantes e exploratórias”, diz.

A história já deixou registrado como, em momentos de crise, grandes corporações se aproveitam ainda mais dos mais necessitados, incapazes de barganhar melhores salários e exigir condições dignas de trabalho. “Não é muito diferente do que estamos vendo agora: muitas marcas cancelaram pedidos e pagamentos – até de mercadorias já entregues – deixando trabalhadores sem nenhuma perspectiva”, relata Fernanda Simon, diretora executiva do Fashion Revolution no Brasil. A instituição global trabalha, desde 2013, por melhorias nas condições, direitos e garantias de trabalhadores de moda. “As empresas não estão fazendo nada para ajudar quem mais precisa. Sabemos que a situação não é fácil, mas elas precisam assumir responsabilidade pela sua rede e cadeia de produção”, afirma ela.

O cenário já não era favorável antes da pandemia. Apesar de discursos pró-sustentabilidade e maior responsabilidade social, as práticas de mercado continuavam nebulosas, com pouquíssima transparência. “É um sistema e rede de produção muito complexos, com muitas nuances, etapas e agentes envolvidos”, explica Fernanda. A produção descentralizada permitiu grandes marcas recorrerem à mercados com fiscalizações mais frouxas (ou inexistentes), impostos baixos e mão-de-obra barata para confeccionar em massa produtos com custo mínimo. O lucro, contudo, nunca chegava a estes trabalhadores, cuja remuneração raramente atinge o valor de um salário mínimo.

Matéria publicada em março pelo jornal The New York Times, revela como grandes marcas de luxo continuam explorando mão-de-obra em países orientais, apesar de comunicar ostensivamente ações com viés sustentável e socialmente responsáveis.

“Um bom começo seria trocar o slogan ‘compre do pequeno’ por ‘compre do Brasil'” – Francisca Vieira, CEO da Natural Cotton Color.

“Precisamos ficar atentos aos oportunistas de plantão”, diz Francisca Vieira, CEO da marca de algodão colorido orgânico Natural Cotton Color. Desde 2005 sua label trabalha exclusivamente com o algodão orgânico colorido da Paraíba, um algodão cuja pluma já nasce com tons marrom e bege, sem uso de aditivos ou corantes. Junto à Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa), a empresária e criadora é uma das profissionais mais engajadas na preservação e desenvolvimento de uma moda realmente sustentável, feita com matéria-prima e mão-de-obra brasileira.

Para ela, é a hora de sermos espertos para não cairmos em discursos de marketing vazios e assim fortalecer estruturas opressoras. “Um bom começo seria trocar o slogan ‘compre do pequeno’ por ‘compre do Brasil'”, afirma. Francisca acredita ser necessário uma indústria nacional fortalecida para garantir empregos e atender as demandas internas e externas quando a pandemia passar. “Mas cadê as verbas públicas para ajudar o SENAI a montar pequenas células de capacitação de mão de obra? Cadê as empresas e os projetos para criação de estruturas de vida e trabalho dentro das comunidades? A gente só vê empresário desesperado querendo capitalizar em cima da desgraça alheia”, diz.

À frente da Natural Cotton Color, Francisca trabalha em contato e colaboração direta com algumas comunidades e assentamentos agrícolas da Paraíba. São pessoas completamente esquecidas. Agora mais ainda. No início de março, Francisca estava recém-saída de um período de 15 dias de quarentena (ela acabara de voltar de Milão, onde sua marca e mais seis outras nacionais irão desfilar em 2021), quando as medidas de distanciamento social foram implementadas. “Fiquei preocupada com os agricultores”, relata. “São pessoas muito queridas para mim, pessoas muito simples.” Apesar da condição cardíaca do seu marido, decidiu se arriscar. Pegaram o carro, encheram dois tonéis com álcool em gel e juntaram mais um tanto de máscaras para distribuir nas comunidades. “Muitos não sabiam de nada que estava acontecendo, não entendiam a gravidade da situação. Fui difícil explicar porque não podia abraçá-los”, recorda.

Desde então, Francisca segue em contato direto com seus agricultores e demais colaboradores. “As rendeiras entenderam mais facilmente, acho que mulheres são mais preocupadas com sua sobrevivência e sobrevivência da sua família”, conta. As costureiras também, porém com uma baixa. Uma de suas piloteiras faleceu em menos de 48h por complicações causadas pelo novo coronavírus.

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