A travessia do trabalho digno na moda

Projeto "Trabalho Escravo Nunca Mais #somoslivres" arou o solo para colher autoestima e emancipação de imigrantes da indústria do vestuário, em São Paulo.


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O trabalho no setor da moda paulistana tem rosto e mãos de imigrantes. Há alguns anos, diversas pessoas advindas de países vizinhos da América do Sul chegam na cidade com a perspectiva de uma vida melhor. A realidade, muitas vezes, é analoga à escravidão. Esse cenário motivou o Ministério Público do Trabalho, a Organização Internacional do Trabalho e a UNICAMP a criarem o projeto “Trabalho Escravo Nunca Mais #somoslivres”, que abriu outros horizontes para pessoas imigrantes que já sofreram essas violações.


“Mesmo 130 anos depois da abolição e da Lei Áurea, a mentalidade escravocrata ainda existe e assumiu novas feições”, diz Gustavo Accioly, procurador do trabalho na capital paulista e um dos idealizadores do projeto. Isso ainda é recorrente na indústria da moda por conta das inúmeras terceirizações e subcontratações do setor, que tem 70% dos trabalhadores na modalidade informal, analisa ele. Com a ação, pretende-se “resgatar a autoestima e promover a inclusão social por meio do trabalho decente”, para gerar não apenas acesso à democratização de riquezas, mas “fazer com que as pessoas possam expandir seus direitos e sua personalidade de forma digna”, finaliza.

Modelo posa com casaco produzido por Jheysson Flores Nina

Casaco produzido por Jheysson Flores Nina durante as aulas do projetoFoto: Juliana Farinha/ELLE Brasil

O projeto foi construído a muitas mãos. Inicialmente, foram desenhadas camisetas pelo designer Eugênio Santos. Depois, no mês de fevereiro, foram ministradas aulas de costura pela equipe da marca Reinaldo Lourenço, em sua fábrica. No próximo dia 08, o projeto se encerra com um desfile das peças confeccionadas pelos participantes e styling assinado por Yan Accioly. A ELLE fará sua transmissão ao vivo e exclusiva na segunda-feira, às 19h, por meio do Instagram.

“Saber que a peça que fizemos estará num desfile já é um prêmio.” – Maria Rosa Nina

Ao longo do processo, houve também aulas de história da moda com Jeff Benício, mas o foco eram as técnicas de costura. Quem as lecionou foi Elmira da Silva, que trabalhou 12 anos no atelier de Reinaldo Lourenço. “É um aprendizado e superação para todo mundo: empresa do Reinaldo, Ministério Público e para mim também”, diz ela, que nunca havia feito algo do tipo e se sentiu empoderada ao repassar todo seu conhecimento. “Vi muita força de vontade, capacidade e não querer desistir de primeira; pelo contrário, todas eram muito curiosas e interessadas. Não teve nenhuma que disse que não conseguiria fazer.”

Para o estilista Reinaldo Lourenço o ensinamento foi, realmente, mútuo: “é um aprendizado poder ter proporcionado isso para eles, é muito gratificante”. Nas aulas, as modelagens foram disponibilizadas pela grife e os tecidos, escolhidos pela sua equipe. “Tive a ideia de usar chita, acho uma coisa muito brasileira. Como são todos de fora, pensei em trazer uma coisa do Brasil”, explica.

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Vestido produzido por Maria Rosa Nina durante as aulas do projetoFoto: Juliana Farinha/ELLE Brasil

O que é liberdade?

“Liberdade é não ter medo”, disse Nina Simone no documentário What happened, Miss Simone?. A mesma frase foi confidenciada à reportagem de ELLE por Maria Rosa Nina, participante do projeto. Imigrante boliviana, ela chegou na maior cidade da América Latina com seus dois filhos ainda crianças, em 2010. As promessas eram de melhores condições de trabalho, mas o vivenciado foi justamente o avesso disso. “Cheguei a trabalhar em sistemas análogos à escravidão. Meus filhos ficaram doentes, com febre, e eu não podia levantar nem para dar um copo d’água. Foi ruim e era uma necessidade, porque eu precisava trabalhar o dobro. Eu era pai e mãe”, relata sobre seu primeiro ano no país.

Nina casou-se há 8 anos com Julio Ergueta, também boliviano, mas sua maior história de amor talvez seja com seus filhos, Jheysson Flores Nina, Jhossen Flores Nina e Jhayle Estrada Nina. Os dois primeiros são os que desembarcaram com ela há uma década, e o último é fruto do casamento atual. Ver os primogênitos impedidos de estudar foi a motivação para procurar formas de regularizar sua situação e abrir sua própria oficina. “Queria recuperar a liberdade dos meus filhos”, conta – e abre um sorriso ao ver que conseguiu.

No Brasil, a imigrante diz que aprendeu a se valorizar “como mãe, mulher, lutadora e vencedora”. Hoje, trabalha com seu esposo em uma oficina dentro da casa que dividem, na zona leste de São Paulo. A costura tomou outra forma em sua vida, muito mais ligada à liberdade – o que para ela é coisa séria e tem a ver com “a vontade de fazer o que quiser, sem medo, sem pedir permissão”.

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Nina ao lado de seu filho JheyssonFoto: Juliana Farinha/ELLE Brasil

Segundo Nina, as aulas da ação possibilitaram o conhecimento de técnicas e acabamentos avançados, que auxiliam na profissionalização de seu negócio. “Cheguei em casa e falei: ‘lembra aquela costura que gostamos de fazer? Tem nome!'”, compartilha, orgulhosa. Em sua trajetória de vida, ela caminha para frente sem deixar ninguém para trás. “Se estou subindo um degrau, prefiro segurar muitos junto comigo. Todo mundo tem um propósito, o meu é esse: compartilhar o que puder.”

Seus filhos trilharam passos semelhantes. Jheysson (participante do projeto), hoje com 23 anos, viveu a realidade do trabalho análogo ao escravo com apenas 10. “Trabalhava das sete horas da manhã até às dez da noite e almoçava por 15 minutos. A gente deixou os brinquedos para só ver roupas”, relembra. Porém, com a força de sua mãe, as condições mudaram. “Vejo ela como um espelho para tentar ser igual, mesmo ela não falando, sinto como ela é, um pilar.”

Telas de Paulo Chavonga

Telas de Paulo Chavonga, que retratou o projeto por meio das pinturasFoto: Juliana Farinha/ELLE Brasil

Hoje, Jheysson mora ao lado de Nina e tem a própria oficina com sua esposa, mas pretende seguir outros caminhos na área do teatro ou da robótica. Por isso, quando costura diz pensar na “liberdade de futuro”. Em sua visão, cursos como esse, oferecidos pelo poder público e organizações, ajudam a cobrar um valor mais justo pelas peças, além de empoderar os imigrantes. “Já vi um caso de um brasileiro que cuspiu numa boliviana, no Brás. O curso ajuda nisso: ver que você tem os seus direitos e não precisa ser ofendido.”

Quanto ao desfile, mãe e filho estão animados. “É uma emoção de verdade. É um orgulho ver uma pessoa usar a roupa que você fez e criou”, diz Jheysson. “Saber que a peça que fizemos estará num desfile já é um prêmio”, complementa Nina.

“Elas também são artistas”

Um dos diferenciais do projeto é a documentação por meio das obras de Paulo Chavonga. O artista plástico angolano começou a pintar e desenhar com sete anos de idade e nunca mais parou. Com o apoio da sua mãe, conseguiu dar luz às suas telas para participar de uma exposição aos 17 anos, porém, não vendeu nenhuma na época. Felizmente, o que parecia um fracasso foi uma alavanca: Paulo tornou-se conhecido na sua cidade natal, Benguela, por ser um dos artistas mais jovens da cena. Isso lhe garantiu outros convites para exposições e galerias. Em 2018, mudou-se para o Brasil para estudar arte. Atualmente, é também muralista, arte-educador e produtor cultural.

Paulo posa em seu atelier, com suas obras a materiais ao fundo

Paulo com as obras que produziu para o projeto, ao fundoFoto: Juliana Farinha/ELLE Brasil

Convidado para retratar o projeto por meio de suas pinturas, Paulo acredita que sua identificação vai muito além do fato de ser imigrante no país. Em sua visão, as costureiras e costureiros “também são artistas, [mesmo que] outrora não trabalhassem como tal – pois estavam privados de sua liberdade. E para fazer arte você precisa ser livre”, diz. “A gente teve várias identificações. Por exemplo, quando elas ficavam olhando para peça, de longe… são linguagens diferentes com hábitos parecidos.”

“Foi o que me ajudou, porque eu me focava ali e aos poucos deixei os problemas pra trás. A costura é uma terapia.” – Sara Gonzalez

Em meio às crises sanitária, econômica e social, Paulo acredita que a arte é o caminho mais fácil para humanizar as pessoas. “Numa época como essa, só nos sobra a arte.” Como ele pinta retratos e cotidianos, não foi difícil se integrar com os costureiros e costureiras. Seu processo criativo consistiu em acompanhar, dialogar e compreender as histórias de cada um. “Com o convívio você sente as cicatrizes invisíveis. Conseguia ver um brilho nos olhos delas e tentei ao máximo captar e transmitir esse brilho nas telas coloridas, como um ato de esperança e um desejo de diálogo”. Ao todo, o artista pintou dez obras.

Costura que salva

Sara Gonzalez (participante do projeto) chegou ao Brasil com seus dois filhos e a esperança de achar uma vida melhor do que a que vivia na Venezuela. A primeira parada foi em Manaus, onde trabalhou como cabeleireira, mas sofreu muita humilhação. Resolveu migrar para São Paulo, onde trabalhou como diarista, chegando a limpar mais de 10 casas e apartamentos por dia. Foram muitos episódios desgastantes e de exploração, até ela decidir deixar isso para trás e buscar outra fonte de renda. Se deparou, então, com a costura. Aprendeu o básico pela internet e, com uma parte do que recebia do Bolsa Família, comprou duas máquinas de costura caseiras.

A venezuelana também conhece Nina. O encontro ocorreu por meio de um curso da organização Aliança Empreendedora, em 2020. Como a boliviana não deixa ninguém para trás, logo convidou Sara para o projeto Trabalho Escravo Nunca Mais. No início, bateu o nervosismo, mas depois tudo fluiu e a jovem costureira mostra o bolso embutido que aprendeu a fazer no curso, enquanto abre um sorriso por debaixo da máscara. Para o desfile, ela fez uma saia branca de pregas, da qual muito se orgulha. “Demorei quatro dias para finalizar a peça. Não imaginava que conseguiria e o resultado me deixou muito orgulhosa”, conta.

Sara na laje de sua casa posa na laje de sua casa

Sara na laje de sua casa, em Guarulhos (SP)Foto: Juliana Farinha/ELLE Brasil

Além dos aprendizados técnicos, Sara relata que o curso “vai ajudar a valorizar o trabalho do costureiro, [já que] são muitas pessoas para fazer só uma peça de roupa. Tem que cortar, fazer modelagem, costura, detalhes… Eu dizia que era fácil ser costureira e agora me arrependo das minhas palavras”, comenta. O atual ofício chegou em sua vida de maneira despretensiosa, mas ajudou a remendar seu coração na trajetória de superar a depressão. “[A costura] é o maior escape da minha vida até agora. Quando costuro me concentro e não penso mais em nada.

A trajetória de Sara encontra a de Maria Magdalena (participante do projeto) para além da questão da imigração. Em 2004, a última pisou pela primeira vez no país que hoje é sua casa, o Brasil. Vindo da Bolívia com sua filha mais velha ao encontro do, então, marido, seu primeiro trabalho foi marcado por violações: “Era das cinco horas da manhã até uma hora da manhã do dia seguinte; não me adaptei com a comida e tinha de dividir meu prato com minha filha.”

Aos poucos, a família conseguiu comprar algumas máquinas de costura e iniciar o próprio negócio. Depois, separou-se do seu marido, que hoje mora na Bolívia com a filha do meio. Foi quando a depressão bateu em sua porta. A costura foi a saída de emergência. Ela começou a frequentar os cursos do Centro de Apoio e Pastoral do Imigrante (CAMI) e focou no trabalho que tinha na época, em um ateliê. “Foi o que me ajudou, porque eu me focava ali e aos poucos deixei os problemas para trás. A costura é uma terapia.”

Maria Magdalena posa para foto com sua oficina ao fundo

Maria Magdalena na sua oficina, em Carapicuíba (SP)Foto: Juliana Farinha/ELLE Brasil

Para ela, a costura é também a principal fonte de renda. “É como sustento meus filhos, pago aluguel e todas as contas. Fora isso, faço porque gosto mesmo.” O trabalho em casa facilita a gestão e permite maior proximidade dos filhos – situação muito diferente daquela de anos atrás. “Tenho liberdade para ficar com eles, para sair, descansar, escolher o que quero fazer. Nas outras oficinas, eles [os chefes] que diziam o que queriam que você fizesse.”

Para o desfile, Magdalena confeccionou cinco peças. Ela já tem experiência com vestidos de festa e o projeto ajudou ainda mais na sua autoconfiança. “Sei que sou capaz”, afirma. A boliviana vê em ações como essa importantes passos para a difusão do conhecimento e diz que abriu a mente para ver que os imigrantes têm direitos: “direito de não sermos excluídos e direito de sermos tratados bem”, finaliza.

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