A moda evangélica além do culto

Mulheres cristãs subvertem os estereótipos da roupa de igreja e mostram como a experiência religiosa está diretamente ligada aos comportamentos do vestir e das escolhas de consumo de moda.


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Ilustração: Gustavo Balducci



Quando Thays Lessa ganhou uma blusa preta estampada com a fada Sininho, a usou como se não houvesse amanhã. À época, ela era adolescente, gostava de ouvir Avril Lavigne e queria se vestir como a cantora. Mas, por muito tempo, usar roupas pretas não foi algo bem visto no meio religioso que frequentava. 

Hoje a fortalezense, que cresceu num lar evangélico, tem um guarda-roupa repleto de tons sóbrios e terrosos, incluindo o tal preto proibido, com o qual vai à sua igreja, em São Paulo. 

Thays faz parte de uma geração que têm transformado o que se conhece como moda evangélica. “É comum cair em estereótipos, associar (o evangelicalismo) como um estilo mais romântico, composto de vestidos midi e babados. Algo que minha mãe vestia e gostaria que eu vestisse também. A questão é que não me identificava com aquilo”, continua ela, que é criadora de conteúdo e autora do livro Perfeitamente inadequado. “Isso impactou meu relacionamento com Deus, pois tenho uma visão do meu corpo não necessariamente ligada à autoestima, mas à maneira como Deus me vê.”

Para ela, é um processo de autodescoberta intimamente ligado à experiência de fé cristã. Na tentativa de se encaixar em padrões pré-definidos, Thays conta que chegou a ter questões com distorção de imagem e distúrbios alimentares. “Lidei muito com a síndrome de querer agradar as pessoas. Mas quanto mais caminhei com Deus, isso foi sendo transformado”, diz a criadora, sobre o processo de autoaceitação, que acabou ecoando no seu visual.

O que vem à sua cabeça quando você pensa em moda evangélica?

Uma pesquisa da FVG, de 2020, revelou que as mulheres evangélicas baseiam suas escolhas de compra em fatores que perpassam os costumes religiosos, seja separar uma roupa especial para o culto, seja frequentar lojas que compartilham a mesma fé. Mas apesar de ser um sinalizador, isso não é uma regra, como ressalta a enfermeira emergencista e influenciadora digital Lia Raquel. “Deixo bem claro em minhas redes sociais que roupa existe em todo lugar, somos nós que devemos fazer as escolhas corretas”, diz.

Por meio de seus canais, Lia costuma receber muitas mensagens de seguidoras que se dizem incentivadas por ela a não terem receio de serem elas mesmas. A maioria relata que não usa algumas roupas não por não achar bonito, mas por medo do que os outros vão pensar. “Sempre as incentivo a resgatar sua identidade e se importar apenas com o que Deus diz sobre elas, viverem livres da necessidade de aprovação pelas pessoas”, diz a influenciadora.

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Sua forma de se vestir é diretamente influenciada pelo cristianismo. “Antes de comprar uma peça, procuro me questionar se estarei glorificando a (Deus) com aquela roupa, e que mensagem passarei para as pessoas ao meu redor. A imagem que manifestamos nas vestes é reflexo das convicções que carregamos por dentro”, pontua Lia.

Thays Lessa também gera impacto com o que posta nas mídias sociais. Os vídeos que divulga no Instagram e TikTok rendem dezenas de comentários de outras mulheres evangélicas inspiradas pela criadora, muitas delas com experiências similares. Os conteúdos de mais sucesso são aqueles com explicações sobre como o look do culto serve também para ir ao shopping, por exemplo.

De alguma forma, isso ajuda a romper alguns estereótipos que permanecem sobre a moda evangélica. “Já teve uma vez que me pediram para mostrar looks com saias, mas não tenho esse costume. Não quero ter que usar certas coisas para agradar o nicho (tradicional) da moda evangélica”, continua Thays.

Mas antes, é importante frisar: os evangélicos não são um grupo homogêneo  

Thays e Lia não fazem parte de uma denominação que impõe restrições ao uso de alguns elementos, como brincos, cabelo comprido ou calça para as mulheres. Ambas acreditam que essa escolha é relativa à vivência espiritual cristã de cada pessoa com a santíssima trindade, principalmente no que tange a relação com o espírito santo. “Cada pessoa é livre para escolher (com) qual denominação se identifica”, argumenta Lia.

Isso sinaliza como existem muitas formas de professar uma religião, seja qual for. No cristianismo, é impossível considerar todos os evangélicos um grupo homogêneo. A diversidade dialoga com as escolhas do vestir. “A moda, embora tenha reflexo coletivo, ainda é uma causa individual. É muito subjetivo, pois é a forma como ela (pessoa evangélica) experimenta a religião”, diz Rita Alves, urbanista e mestre em Comunicação Social pela Puc-Rio. Ou seja, pensar em moda evangélica é pensar sobre a combinação da religião com o comportamento, e não necessariamente sobre dicotomias de estilo, formas e cores. 

Por isso, Lia acredita que o termo “moda evangélica” exclui muitas mulheres e pode ainda criar um nicho mal compreendido. “Ao longo dos anos, o termo foi relacionado a mulheres que usam apenas saia ou vestidos”, exemplifica. “Mas tenho percebido que, aos poucos, isso tem sido desconstruído, através da ampliação do uso das redes sociais, da inserção de muitas mulheres que são referências na moda e exemplos como cristã, e não necessariamente usam apenas um estilo de roupa.” 

O evangelicalismo hoje

A flexibilização e o rompimento de alguns estereótipos do vestuário nas igrejas acompanha a modernização e o crescimento do evangelicalismo no Brasil. E isso faz parte do fluxo da internet e do acesso e uso das mídias sociais no país. Líderes e instituições evangélicas, historicamente, têm uma simbiose com a mídia, seja ela impressa, digital ou televisionada. 

Tal realidade se reflete nas estatísticas. O Datafolha, de 2020, mostra que são 31% os brasileiros autodeclarados evangélicos, sendo a maioria deles mulheres e pessoas negras. Mas, até 2032, o IBGE calcula que essa porcentagem ultrapasse o número de católicos – hoje maioria no país. 

A moda não fica fora disso. Se os comportamentos dos fiéis e suas lideranças mudam, muda também a forma como eles se vestem. 

Em sua tese de mestrado, Rita Alves estudou a moral e o juízo no vestir feminino evangélico. O ponto chave, diz ela, é a hermenêutica bíblica. Ou seja: como a interpretação da bíblia interfere diretamente na forma como os cristãos entendem a moda, a estética e o comportamento. 

E isso não se aplica, apenas, às mulheres. Thays comenta que seu pai viveu um “plot twist” no vestuário. Hoje, ele continua frequentando a mesma igreja, mas não precisa mais ir de terno e gravata como na época em que sua filha era adolescente. 

“Acompanhei uma mudança significativa no vestuário dos homens cristãos“, continua Rita. “O terno e gravata foi quase abolido das denominações evangélicas, por não conversar com os avanços contemporâneos. A maioria dos pastores pregam de calça jeans, camisa e mocassim. É também uma forma de atrair fiéis, de mostrar que aquela igreja é mais humana e próxima.” 

A pesquisadora cita como exemplo André Valadão. Se há dez anos, o cantor pregava vestido de terno e gravata, hoje seu visual mudou completamente. Thays observa o mesmo processo em casa, com seu marido. “A roupa com que ele vai para igreja, é a mesma de ir ao shopping, a casa de amigos, para um jantar”, diz a criadora de conteúdo. 

As mudanças estéticas, no entanto, não se dão de forma linear. “Nas denominações tradicionais (como Assembleia de Deus ou Congregação Cristã no Brasil) elas ocorrem lentamente”, explica Rita. Ainda assim, segundo ela, existem dois elementos comuns em todas as denominações: a modéstia e a discrição. “A roupa não deve chamar atenção sexual explícita, a moda evangélica não é erótica.”

É que, apesar de marcar uma experiência subjetiva, a moda tem impactos coletivos, inclusive no que tange questões de gênero e sexualidade. Na avaliação de Rita, é dessa forma que também podemos perceber a influência geral dos templos na sociedade, inclusive na vida das mulheres. “A igreja evangélica é um ente coletivo forte (para elas), mas sobre seus corpos no mundo, são limitadas”.

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