Por que a relação de grandes marcas com a periferia ainda é difícil?
Conversamos com pesquisadores e profissionais de moda e comunicação para entender a ligação de grifes com movimentos periféricos.
“Meu amor pela Lacoste foi desde criança, só que como eu não tinha muita condição, eu não podia (comprar). Sempre foi um sonho desde moleque e, agora, poder usar e portar tudo com meu dinheiro e trabalho é gratificante. […] A maior grana que gastei com a Lacoste, de uma vez só, foi 27 mil”, contou o trapper Kayblack no vídeo Coleção de Lacoste do Kayblack – Um Milhão de Jacarés!, publicado no canal Kondzilla, em março deste ano. O paulista é dono do hit Jacaré Que Dorme, que faz referência à marca francesa.
Uma das etiquetas mais mencionadas em letras de funk, rap e trap, a Lacoste se viu no centro de uma polêmica na primeira semana de agosto. Para divulgar o lançamento do perfil brasileiro da marca no Instagram, foram convidados o cantor Jão, o ator João Guilherme, a empresária Helena Bordon e a modelo Pretta Mesmo. Nas redes sociais, a ausência de artistas que exaltam a grife foi sentida, e a internet cobrou: ”Cadê o Kayblack, o Kyan, os cara do funk que deixa a Lala rica?”, questionou um usuário no post do vídeo da Lacoste. Em resposta, a grife chamou novos artistas para divulgar a campanha, como MC Dricka, MC Jottapê e Kyan*.
Diversos debates foram gerados na internet. Alguns disseram que campanhas como essa são óbvias, já que as marcas nunca pensam de verdade na periferia. Outros pontuaram que, independentemente das grifes se importarem ou não, seguirão vestindo e comprando. E há aqueles que acreditam no boicote total.
Por e-mail, a Lacoste Brasil disse à reportagem de ELLE que ”tem em sua missão, visão e valores para celebração das diferenças” e que ”sempre contemplou todos os públicos de relacionamento da marca, independentemente de credo, cor, orientação sexual, classe social ou gênero”. ”A marca reconhece a importância dos artistas do rap, trap e funk” para sua trajetória e ”contempla este público em ações globais e nacionais. No Brasil, nomes como MC Dricka, Jottapê e L7nnon foram produzidos pela marca nos últimos anos”, completa.
Apesar da polêmica, o caso não é inédito nem isolado. Um exemplo emblemático dessa relação aconteceu com a Burberry na virada dos anos 1990 para os 2000. O famoso xadrez da etiqueta britânica começou a ser amplamente usado por jovens trabalhadores da classe operária, muitos deles associados a torcidas de futebol. Os chavs, como ficaram conhecidos. Para dissociar sua imagem de tal grupo, a grife reduziu drasticamente a oferta de peças com a tal padronagem, interrompeu a produção de alguns itens, como camisas polos e bonés, e elevou os preços.
Mais recentemente, a história é um pouco diferente, mas não 100% resolvida. Há pouco mais de dez anos, algumas grifes têm aparecido com cada vez mais frequência nos contextos periféricos do eixo Rio-SP, sejam nas peças originais ou pirateadas, e muito impulsionadas pelo funk e rap. E isso não é exclusivo do Brasil. Internacionalmente, as três marcas de luxo mais referenciadas – Fendi, Balenciaga e Gucci – foram citadas 664 vezes em músicas de rap. Em 2010, esse número era de apenas 31.
De olho nessa clientela, a Versace fez um tênis em parceria com o estadunidense 2 Chainz, a Fendi realizou um show com Lil Uzi Vert e 21 Savage, em Nova York, e Chanel fez uma parceria com o rapper Pharrell no ano de 2019. As ações, contudo, se limitam ao consumo.
Mas por que tudo isso?
Para a escritora e antropóloga fluminense Carol Delgado, o episódio da Lacoste ilustra a maneira que a moda, enquanto produtora de imagens, opera no Brasil: como um mecanismo que forma ou deforma subjetividades. E isso vale tanto para o streetwear quanto para o luxo.
”Como a moda se entende como uma fábrica de reprodução, não de criação, existe o desejo de controlar quem tem acesso ao produto”, diz ela. ”E aí, paramos no pilar do racismo, que vem por meio dessa não aceitação estética da cara das pessoas, do rosto, do comportamento e de suas subjetividades.”
A falta de compreensão sobre as pluralidades e a realidade brasileira, continua Carol, é o que deixa as grifes perdidas. Existe um descolamento: ”Na periferia e nas margens é onde a cultura se atualiza, a velocidade é mais acelerada do que qualquer sistema econômico, porque ali as pessoas estão criando suas próprias economias e modos de existir”, explica.
Ricardo Silvestre, fundador e CEO da Black Influence, também vê racismo quando as marcas, de qualquer segmento, delimitam o foco de sua estratégia para regiões específicas. ”Isso já pressupõe com quem ela deseja se relacionar e estar próxima”, analisa. Sua empresa atua no campo da publicidade e conecta marcas com influenciadores, artistas e criadores de conteúdo, sobretudo negros, com foco em diversidade.
A diretora criativa da MileLab Milena Nascimento completa as críticas ao dizer que as etiquetas querem manter a segregação, a desigualdade social e o racismo estrutural. ”Quanto mais tentamos chegar perto disso, mais esse mercado tenta se afastar de nós. Eles não querem ter vínculo com quem é preto e pobre. Para eles, a gente não é gente”, diz ela, moradora do Grajaú, zona sul de São Paulo.
”A moda continua se apropriando de discursos e afastando isso de quem realmente cria, só que as margens vão cansando e criando seus próprios códigos.” – Carol Delgado
Exercer domínio absoluto sobre quem usa, canta ou cita sua marca, é impossível. As ruas falam, e umas das coisas que essas marcas podem fazer é escutar e dialogar. O que acontece é que ”algumas acreditam que se associar com movimentos contraculturais pode gerar um dano”, analisa Cassio Prates, consultor criativo e pesquisador de tendências, ”quando, na verdade, isso só acrescentaria, pois mostra o quanto você também mudou e é contemporâneo”, continua ele.
Em sua visão, grifes que buscam o afastamento têm ”medo de perder seu DNA, mas é um tiro no pé”, já que os consumidores da periferia são ”lovers da marca” e impulsionam seus produtos. ”É se achar no direito de excluir um tipo de público, como se ele não fosse merecedor daquele lugar ou daquela marca. É o erro mais comum”, acrescenta. Tal posicionamento acompanha a ideia de que, por se associarem a corpos periféricos ou negros, perderão valor.
Modelos Gabriellê. Breno Luan e Nayra Lays vestem peças da MileLab, marca de Milena Nascimento.Foto: @vinimarqu
Outra explicação para esse distanciamento das marcas é a própria composição interna. Pessoas não-brancas, periféricas ou integrantes de qualquer outra minoria social são, ainda, a exceção nas equipes. ”Existe esse distanciamento entre o departamento de marketing e a rua que não seja só a deles”, diz Cassio. ”As pessoas ali, produzindo e compondo aqueles times, têm seu próprio background.”
Contudo, é possível agir diferente? Para Ricardo, um primeiro passo para a mudança é buscar entender a realidade dos contextos e corpos periféricos. ”Não há como se apropriar de um tema que você não domina e menos ainda falar de algo que você não vive. Por isso, é extremamente importante ouvir o que a periferia tem a dizer e, além disso, trazer para essa conversa pessoas e empresas que já atuam e são referência na pauta”, explica.
A origem do desejo
Por que consumir uma grife que não te quer por perto? Segundo Carol, o desejo pode ser explicado de diversas maneiras. Uma delas é a da possibilidade: eu tenho dinheiro, eu posso, eu compro. E isso vale para qualquer bem e serviço. Outra tem a ver com afetividade, principalmente por meio da criação de códigos visuais de pertencimento, que, por sua vez, estimulam o desejo. Não é só comprar por comprar. Existe uma implicação cultural e subjetiva. ”As pessoas se importam com o produto e com o que representam”, fala.
Nas palavras da antropóloga, ”os estopins de consumo vêm de lugares que a marca nem tem habilidade de rastreamento. É muito diferente de fazer campanha com influenciador no Instagram, por exemplo. Essa criação de desejo não passou ou foi planejada necessariamente pela marca”.
Para Rafael, ”o consumo de algumas marcas denota certo poder e sucesso nas periferias. Elas são vistas em filmes, videoclipes e programas de televisão, sempre associadas a pessoas bem-sucedidas. Isso cria um imaginário coletivo que coloca essas grifes em um lugar de muito prestígio. Daí a ideia de que ao utilizá-las todos os seus atributos são associados a quem consome”.
O consumo, aliás, está sempre ligado ao exercício de mobilidade e pertencimento social. A lógica “compro, logo existo” se estende a todos as classes sociais. Porém, quando falamos de corpos que vivem à margem, ”a sociedade enxerga o direito que essas pessoas têm de consumir como um afronta”, continua Carol. ”É como olhamos para a cidadania: a gente acha que as pessoas se tornam mais cidadãs quando consomem mais. Então, quando você nega o direito ao consumo, você nega o direito de existência humana”, completa.
”Quanto mais tentamos chegar perto disso, mais esse mercado tenta se afastar de nós. Eles não querem ter vínculo com quem é preto e pobre. Para eles, a gente não é gente.” – Milena Nascimento
Ostentação é outra palavra que surge com frequência quando levantado o debate sobre desejo, consumo e fetiche de marca. Muitas vezes, o termo é usado pejorativamente, mas, para a antropóloga, existe algo além: ”A classe média chama esse movimento de consumo de ostentação, mas quantas práticas de compra não estão inseridas nessa ideia? Desde uma comida no iFood até uma roupa nova”, questiona, ao dizer que todos nós ‘ostentamos’ de uma maneira ou de outra.
Para Milena, a criação de desejo se apresenta como um movimento de libertação. ”Mostra que posso consumir algo mais caro e não preciso me limitar a estar dentro do arquétipo do que é ser uma pessoa da periferia, que é ter só limitações financeiras”, explica ela. Contudo, ela pontua uma reflexão: ”Não que as pessoas não possam vestir e consumir esses produtos, muito pelo contrário. Mas até que ponto vale ostentar uma marca que nega sua existência e espaços? Até que ponto vale vestir essas roupas se elas não querem falar de você e estão dispostas a contribuir para seus sonhos? Como colocar elas num pedestal sendo que objetivam se desassociar do que acontece ali?”, questiona.
O desejo da diretora criativa é que as comunidades entendam seu potencial, para muito além do comprar ou não comprar. A questão, segundo Milena, é como fortalecer identidades periféricas para ”não precisar recorrer a signos externos, como marcas e produtos grifados, para se sentir pertencente a algo. Você tem seu povo e sua comunidade. A partir do momento que começarmos a ver a periferia consumir da periferia, nosso ecossistema se transformará em uma potência irreversível”, finaliza.
Esta matéria foi atualizada em 25 de agosto de 2021.
*Após a publicação desta matéria, a Lacoste entrou em contato com a reportagem de ELLE para negar a informação de que houve contato com o artista Kyan sobre proposta para participar da campanha. A produção de Kyan afirma que houve o convite. A apuração da veracidade dos fatos foi incompleta pois ambas as partes não apresentaram provas sobre suas afirmações.
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