Como a Amaro pretende mudar o padrão insustentável da moda

Marca lança relatório que abre ao mercado passo a passo para uma produção responsável e para o rastreamento da cadeia.


YBhsqMV3 origin 19



Não faz tanto tempo que sustentabilidade deixou de ser um palavrão. Se, no início da década passada, falar sobre crise climática, preservação das florestas e consumo consciente parecia tratar de problemas que não diziam respeito à moda, a virada destes anos 20 fez cair como bombas nos conselhos executivos das companhias as pautas de uma nova geração de consumidores que, já consciente de que pagará o preço pelos erros dos pais, apontou o dedo para quem não assumia erros.

E, sabe-se, a moda carrega vários nas costas: desde o método de produção linear, que gera um descarte potencializado pela velocidade de produção, ao insistente desrespeito às condições humanas dispensadas aos trabalhadores. A Amaro não pretende oferecer soluções para todas essas falhas no futuro breve, mas dá um passo importante para tanto ao divulgar um relatório aberto ao mercado, em que explica os métodos e o resultado da reestruturação de sua cadeia produtiva, que não só zerou a conta de emissões de gases do efeito estufa, mas a tornou negativa.

Além disso, a partir de agora, parte dos produtos na plataforma passam a contar com descrições sobre sua produção, rastreada pela marca, numa espécie de bula, como a dos medicamentos. Segundo o cofundador e CEO da empresa, Dominique Oliver (na foto acima), “esse é um padrão que, na Europa [ele é suíço], já é discutido seriamente pelas empresas de moda”.

Desde o início deste ano, a matéria-prima, a manufatura, o armazenamento dos produtos, a operação das lojas físicas, a distribuição e a entrega das vendas fazem parte de um processo de reestruturação da marca, feita ao longo de dois anos em parceria com consultorias especializadas.

As mudanças fizeram com que a empresa chegasse à conta de 15.000 toneladas de CO2 geradas anualmente. Grande vilão do aquecimento global, o dióxido de carbono, então, foi compensado com a compra de créditos de carbono por meio das plataformas Moss e Biofilica, duas das mais repeitadas no mercado de tokenização desse gás. Em resumo, as empresas compensam suas emissões pagando por créditos que são revertidos para os projetos geridos pelas plataformas, a um custo que, hoje, está em cerca de 5 dólares por tonelada de CO2.

Em vez de pagar pelas 15.000, a empresa pagou por 30.000, gerando a conta negativa de carbono que, por meio da Moss, patrocinará parte do projeto Fortaleza Ituxi Redd, de preservação das árvores de Lábrea, no Amazonas, em meio a uma das regiões de maior desmate do bioma. Os créditos comprados com a Biofilica, por sua vez, ajudam no projeto de manejo de aterros sanitários que, Oliver lembra, “é um dos problemas inerentes ao final do ciclo da roupa”.

Não se trata apenas de bom mocismo. O relatório tenta desmistificar a ideia em voga no mercado de que operar um negócio não agressivo ao meio ambiente exige recursos sobre-humanos das empresas e recursos fora do orçamento.

O que ele fez, inicialmente, foi destinar 25% do tempo de uma equipe da própria empresa para o projeto. Depois, criou um comitê de oito pessoas e pagou pelas consultorias. Saíram ligando para todos os fornecedores, rastrearam todos os processos, tanto os internos como os externos, o deslocamento das equipes e até a água usada para o manejo das matérias-primas. “É um processo lento, sim, mas é mais uma questão de vontade”, diz o empresário.

A empresa passou a contratar uma startup especializada em entregar produtos em bicicletas, reduziu o uso de água em 100 mil litros para a produção dos jeans – adotando tecnologia de lavagem a laser – e deixou de usar plástico virgem. As pequenas mudanças contribuíram para o impacto positivo nessa conta de carbono que é o primeiro passo da ideia de Oliver em ofertar demanda sustentável.

f6NvwqKI image 4 scaled

Peças em jeans da coleção ‘genderless’ lançada pela Amaro no mês de maio. Foto: Divulgação

NEM MAIS, NEM MENOS. SÓ O JUSTO

A Amaro entendeu que não adianta querer inventar a roda se ela não pode rodar. E, no caso da moda, isso significa vender. Oliver decidiu que os custos com essa negativação de carbono não seriam repassados diretamente ao consumidor, mas descontados na margem de lucro. Não que ele queria o prêmio de ativista do ano, mas porque “temos de começar a gerar demanda”.

É que se o empresário repassasse ao cliente o percentual de 15% a 20% de incremento nos preços provocado pela onda sustentável, ele reforçaria a ideia de que ser ambientalmente responsável é caro.

“Não temos um volume suficiente de matéria-prima sustentável no mercado, porque a demanda não é suficientemente alta para justificá-la. É melhor sacrificar, por ora, a margem da empresa e começar a zerar essa demanda, criando um ciclo virtuoso, dando mais informações ao cliente”, explica.

Também há o fato de que a plataforma não vende apenas Amaro. Ao mesmo tempo que aumentar o preço dos produtos proprietários poderia assustar os clientes, diluí-lo em toda a oferta das outras 300 marcas que a plataforma vende “daria uma impressão errada”.

“Vamos sentir como as clientes recebem as mudanças, porque sabemos que enquanto as mais jovens são mais interessadas em adquirir produtos sustentáveis, não têm o poder aquisitivo das mais velhas, uma parcela na qual esse interesse é um pouco menor”, afirma.

0eWTX4ek image 5

Modelos de vibradores em ilustração da Amaro, que passou a vender em março itens de bem estar sexual.Foto: Reprodução

Para a base de clientes da Amaro, ser sustentável é um desejo, mas, de acordo com as pesquisas feitas na plataforma, a ideia bate de frente com um certo comodismo dos novos tempos. “Fizemos grupos de pesquisa e mais que a maioria afirma querer viver uma vida mais sustentável, mas não sabe como fazer isso no dia a dia sem muito esforço.”

Por isso, foi criada uma aba só com produtos de origem sustentável. E aí reside um das melhores sacadas do projeto. Haverá subdivisões como as de algodão orgânico e livre de químicos, para que os clientes sejam iniciados na discussão de forma prática, dando “poder de decisão na palma dessa consumidora, o que é mais poderoso do que um relatório que, às vezes, só um PHD entende”. Para Oliver, “essas certificações e provas são importantes, mas o consumo e a mudança de comportamento se altera quando você está ali, na beira de comprar enquanto assiste à Netflix”.

SEXY, SIM, POR QUE NÃO?

Uma das barreiras do processo de tornar a sustentabilidade um ativo comercial é a imagem desvinculada do ideal de moda construída ao longo do tempo. Oliver sabe, porém, que é possível retirar do inconsciente das pessoas a imagem “old school” do ativismo, que, diz, “há 30 anos significava morar numa casa pequena ou nunca trocar de roupa”. Ser sustentável, e os estadunidenses cunharam a expressão, não era sexy.

“Foi muito pouco atrativa a ideia de ter hábitos sustentáveis. A própria indústria colaborou para isso. Mas, as mudanças nos processos de manufatura e os avanços na reciclagem de fibras, por exemplo, criaram um entendimento maior sobre o tema”, explica.

Ele cita a indústria da beleza, que durante muito tempo usou químicos desnecessários, porque não havia pesquisas sobre matérias-primas naturais. Na moda, já haveria alternativas sexy, que não sacrificariam o lifestyle.

A chave para o novo pensamento teria sido provocada por três fatores que, nos últimos quatro anos, mudaram para sempre a moda.

“Além de a geração Z ter chegado como grupo mais importante do consumo, vimos uma óbvia mudança nos efeitos do aquecimento global, que está claro nos eventos extremos pelos quais o mundo atravessa. O terceiro, mais especificamente nos Estados Unidos e no Brasil, foi a onda negacionista em nível político sobre o assunto, que radicalizou o discurso tanto da geração millenial quanto dessa mais nova, obrigando as empresas a terem mais voz.”

Mas essa voz, no caso da Amaro, vem acompanhada de uma maciez pouco característica do discurso incisivo e polarizador do país. Nem Oliver nem seus sócios desejam ganhar no grito, porque, o empresário acredita, ele afugenta o empresariado.

“Há muitas empresas tradicionais no Brasil que têm uma cultura de compra que, se não houver cuidado, o julgamento sobre suas práticas mata, logo no primeiro dia de conversa, qualquer motivação de mudança. O ecossistema que queremos apontar é o processo de aprender sobre o rastreamento da cadeia produtiva compartilhado os nossos aprendizados, não julgando os outros e dizendo ‘eu sou melhor’, ‘você é pior'”, afirma.

Ele reconhece que “há coisas que não são legais na Amaro, que precisam ser ajustadas, como o uso de tecidos à base de poliéster e outras matérias-primas que, talvez, são resultado de uma falta de massa crítica” da empresa. Mas entende que, para mudar as coisas, “todos temos que deixar de ter medo de mostrar as coisas ruins, porque só assim podemos corrigi-las”.

Para ler conteúdos exclusivos e multimídia, assine a ELLE View, nossa revista digital mensal para assinantes