Morre o jornalista André Leon Talley

Primeiro afro-americano com poder e influência no mundo da moda, o editor foi uma figura-chave no mercado por quatro décadas. Relembre a sua trajetória.


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Morreu ontem (18.01), aos 73 anos, o jornalista e editor de moda André Leon Talley, vítima de um ataque cardíaco. Com mais de 2 metros de altura, usando joias, longas capas e casacos de pele, André Leon Talley foi o personagem do seu próprio conto de fadas. Durante quatro décadas, ele esteve no epicentro da moda, o mesmo universo que idealizou quando era jovem e morava no sul segregacionista dos Estados Unidos. Primeiro afro-americano com poder e influência no mundo da moda, o editor trabalhou para Interview, WWD, W e Vogue, teve Diana Vreeland como mentora e foi amigo pessoal de Karl Lagerfeld.

Essa trajetória única é narrada no documentário O evangelho segundo André, dirigido por Kate Novack e lançado em 2018 (no Brasil, ficou em cartaz no ano passado pela plataforma de streaming Filme Filme). O documentário conta com depoimentos de Marc Jacobs, Tom Ford, Valentino, entre outros nomes, e explora algumas histórias que também estão no livro de memórias de Talley, The chiffon trenches (as trincheiras do chiffon), de 2020. “Minha história é um conto de fadas de excessos. E em todo conto de fadas, há o mal e a escuridão, mas você os supera com a luz”, disse ele, em entrevista ao jornal The Guardian, em 2020. “Quero que todas as pessoas que cruzarem comigo – o estranho na rua, o membro da igreja ao meu lado no banco – sintam o amor. Eu não estive a par do amor em minha vida, mas quero que eles sintam que receberam algum amor ao se envolver comigo.”

A seguir, seis passagens da trajetória de Talley lembradas pelo documentário, da infância no Sul dos Estados Unidos à chegada em Paris:


The Gospel According To Andre – Official Trailer

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Infância segregada: Talley teve uma infância pobre em Durham (Carolina do Norte), onde foi criado pela avó. Na época, sua vida se resumia à escola e à igreja. Domingo era o dia em que os fiéis de Durham trocavam os uniformes de trabalho pelas suas melhores roupas. Com a avó de Talley, que trabalhava durante a semana limpando casas, não era diferente. Ele ficava encantando com o desfile de chapéus e roupas que via entre os frequentadores da igreja. Como lembra no filme a amiga e professora de teologia, Eboni Marshall Turman, a igreja era o único lugar onde a vida e a identidade dos afro-americanos eram valorizadas, especialmente naquela parte do país, onde as leis segregacionistas vigoraram até 1960. Talley encontrou um refúgio nas revistas de moda, descobertas em uma de suas idas à biblioteca pública de Durham. Cruzar a cidade à pé em busca de uma banca de revista, passou a fazer parte de sua rotina. Ele deixou a Carolina do Norte após ganhar uma bolsa para estudar francês na Brown University, em Providence (Rhode Island). Talley se interessou pelo idioma assistindo aos programas de TV de Julia Child, a autora de livros de culinária que apresentou ao público estadunidense alguns pratos clássicos da cozinha francesa.

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André Leon Talley, na época de estudante na Brown UniversityFoto: Divulgação/Magnolia Pictures

Mentora: Talley foi um pupilo de Diana Vreeland. O encontro entre os dois aconteceu logo que ele chegou a Nova York, nos anos 70. Com uma carta de recomendação em mãos, foi parar no Costume Institute, do Metropolitan Museum of Art, onde Vreeland atuou como consultora. Ele conta que a editora o convidou para ser seu assistente logo no primeiro encontro e ela nunca mais saiu de sua vida. Era Talley quem a atualizava das notícias quando Vreeland, já doente, não conseguia mais sair de casa. Seus amigos da época lembram que ele herdou da editora os gestos teatrais e as falas dramáticas que se tornaram sua marca. Por intermédio de Vreeland, Talley conseguiu um trabalho de recepcionista na Interview. A partir dali, se aproximou de estrelas que gravitavam em torno da revista criada por Andy Warhol, passou a trabalhar como repórter e editor de moda, ganhou amigos estilistas e seguiu uma trajetória ascendente, consolidando sua posição como o primeiro afro-americano com poder e influência no mundo da moda.

Paris: fluente no francês, Talley chefiou o escritório parisiense do WWD (Women’s Wear Daily), em meados dos anos 70. O editor desembarcou na cidade com 13 malas de bagagem e uma dose de receio. Achava que não seria aceito facilmente pelos franceses. Talley presenciou um importante capítulo da história da moda, acompanhando as criações de Yves Saint Laurent de um local privilegiado. “Acho que foi a primeira que vez que viram um homem negro em Paris nos desfiles de moda, numa posição de importância e influência”, diz ele no documentário. Mas, em sua biografia, Talley afirma que só recentemente refletiu sobre seu lugar como homem negro na moda. Steve Stoute, executivo de marketing influente no universo do hip hop, lembra que o editor “ajudou a quebrar vários paradigmas” e espera que ele receba crédito por isso.

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O editor de moda com Paloma Picasso e o dramaturgo Rafael Lopez-Sanchez, em 1979Foto: Divulgação/Magnolia Pictures

Preconceito: Talley conta que, um dia, ao atravessar o campus da Universidade de Duke, em Durham, foi surpreendido por um grupo de rapazes brancos, que atiravam pedras em sua direção. Mas preferiu guardar para si os abusos que sofreu, sem adotar uma atitude de confronto. No documentário, ele revela que era chamado de “queen Kong” por uma relações-públicas da Yves Saint Laurent. Já um colega no WWD insinuou que ele conseguia ter proximidade com os estilistas porque ia para cama com todos eles.

Capas e caftãs: o editor acredita que para ser um aristocrata não é preciso nascer em uma família nobre. As longas capas e caftãs e os maxi casacos de pele que se tornaram sua marca emprestam ares de aristocracia, algo que remete a heróis e heroínas saídos de um romance de Leon Tolstói, defende Talley. Ele argumenta que até o andar e o comportamento mudam quando se veste uma roupa tão formal. Sua primeira capa foi comprada num brechó de Nova York por 5 dólares. Antes, ele tentou usar um longo casaco azul-marinho para acompanhar a mãe na igreja. Mas ela se recusou a entrar ao lado do filho vestido com uma roupa que, para ela, parecia figurino do Fantasma da Ópera. Talley conta que foi nesse momento que percebeu que não era obrigado a gostar da mãe, ele já tinha o amor incondicional da avó.

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Talley dançando com Diana Ross, no Studio 54, em 1979Foto: Divulgação/Magnolia Pictures

Karl Lagerfeld: o alemão foi um dos estilistas mais próximos de Talley. Foi ele quem o guiou pelo mundo da arte e da literatura. A amizade entre os dois era uma relação quase fraternal. Eles se conheceram em 1975, quando o Talley foi ao Hotel Plaza, em Nova York, entrevistar o estilista. Lagerfeld convidou o editor para sua suíte e lá abriu um baú Goyard, de onde tirou várias camisas de seda. Talley conta que deixou o hotel com um novo guarda-roupa. Quando o editor se mudou para Paris, Lagerfeld o ajudou a organizar a vida na capital francesa. No período em que conduziu as entrevistas no tapete vermelho do Met Gala, o estilista vestiu o amigo inúmeras vezes. E, no ano em que o editor perdeu sua avó, Lagerfeld deu ao amigo um ovo Fabergé de diamantes como presente de Natal. Talley diz que sempre se lembrará dele como um dos amigos mais queridos.

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