As etiquetas estão com os dias contados?

Com propostas para substituí-las por QR Codes e com consumidores cada vez menos animados em exibi-las, qual é o valor daquelas pedacinhos de tecidos costurados em nossas roupas?


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A prática é comum: compramos uma roupa e rapidamente retiramos inúmeras etiquetas antes de usá-la. Uma tag traz o preço, outra, o tamanho, há também aquelas apenas com o branding da marca – uma cor, uma frase, um logo. E não podemos esquecer das outras costuradas internamente. Essas, sim, com informações importantes sobre a peça, mas que muitas vezes nem lemos antes de cortá-las fora.

Está se sentido culpado? Fique sabendo que as etiquetas internas não são um desafeto apenas do consumidor: empresas e países já estão se mobilizando para substituí-las por QR Codes.

Em junho deste ano, a American Apparel & Footwear Association (organização que representa mais de mil marcas, entre elas Adidas e Calvin Klein, por exemplo) enviou uma carta ao congresso estadunidense pedindo por uma legislação que torne possível a eliminação das etiquetas físicas e a aplicação de URLs ou QR Codes, que poderão vir estampados na própria roupa.

“Essa troca melhoraria a acessibilidade, daria aos consumidores as informações regulatórias necessárias e também outras informações sobre o produto, além de ajudar a indústria a atingir sua meta de sustentabilidade”, defende a associação, em trecho da carta. Para ela, a medida reduziria o desperdício de tecido e ampliaria o entendimento do cliente, que, muitas vezes, fica perdido no meio de símbolos confusos e letras minúsculas.

A União Europeia já caminha nesse sentido. Como parte de sua agenda sustentável, o bloco pretende implementar o chamado Digital Product Passport em produtos têxteis até o fim de 2024. Quando escaneados, os “passaportes digitais” mostrarão o impacto ambiental da peça, oferecendo detalhes sobre a cadeia produtiva. As informações obrigatórias, no entanto, ainda não foram definidas.

Mas digitalizada ou não, por que temos uma etiqueta? “É um direito básico do consumidor”, explica a advogada Isabella Pari, especializada no ramo e presidente do comitê de estudos em Direito da Moda da OAB de Santo André. “E no Brasil, a omissão do conteúdo obrigatório na etiqueta é considerada crime, passível de pena”, continua. O regulamento brasileiro, aliás, foi atualizado recentemente.

Em março de 2021 entrou em vigor no país uma nova medida regulatória de etiquetagem que, de acordo com a advogada, facilita a comunicação para o consumidor: “Além de o tamanho da peça ser obrigatório, ele deve estar em abreviação correspondente ao português. Não pode estar ‘S’ de Small (pequeno, em inglês), precisa estar ‘P’. Os tecidos também não podem vir escritos em nome comercial, o Nylon, que é uma marca registrada, deve estar como poliamida. Os símbolos de cuidados de preservação também devem vir com a legenda do seu significado e sempre na seguinte ordem: lavagem, alvejamento, secagem, passadoria e limpeza profissional.”

Além dessas informações, a etiqueta também deve imprimir o nome ou razão social da empresa, assim como CNPJ e o país de origem da produção. “A comunicação deve ser clara. Não adianta passar uma informação que o consumidor não entende”, defende Isabella. Nesse sentido, ela destaca que, apesar de não termos um projeto de lei no Brasil para incorporar QR Codes sustentáveis, como acontece na Europa, há projetos regionais para digitalizar as etiquetas e para que tenham descrição em braille. “Afinal acessibilidade não é só clareza, é acesso a todos os tipos de consumidores.”

Do começo…

A regulamentação de etiquetas é algo relativamente novo, algo da segunda metade do século 20. As etiquetas como símbolo de moda, contudo, surgiram quase um século antes. “Quem teve a ideia de colocar pela primeira vez a etiqueta em uma roupa foi Charles Frederick Worth, entre 1857 e 1858”, revela João Braga, especialista e professor de História da Moda. Na época, já existiam roupas produzidas em série. “Worth faz isso para dar caráter de artista ao trabalho dele, como se a roupa fosse uma obra assinada”, complementa.

A partir daí, as etiquetas vão aparecendo com regularidade e, nos anos 1920, Jean Patou é um dos primeiros – senão o primeiro – a colocar do lado de fora a sua assinatura: seu logo emblemático com círculos enfeitando as letras J e P. Mais de 40 anos depois, explode o boom da logomania.

“Grife é garra em francês. Quando o animal arranha seu braço ou sua perna, ele deixa a assinatura dele em você. Na moda, o conceito é justamente esse, da etiqueta pular para fora da roupa e ficar visível”, explica João. Logos e nomes ficam explícitos, algumas vezes destacados dos pés à cabeça em um único look. “Nesse sentido, podemos dizer que os logos são uma nova versão das etiquetas”, reflete o professor.

Negação, validação e ressignificação

Mas para toda corrente, há uma conta-corrente. “Existe um grupo que você participa ou uma fase da vida em que o interessante é você tirar a etiqueta”, comenta Marcio Banfi, stylist e professor da Universidade Santa Marcelina. “Quando eu era jovem, tinha uma coisa meio punk e gótica. Eu tirava as etiquetas para não ser ‘paga pau’ de uma determinada marca ou não demonstrar o quanto tinha pago por aquela roupa. O importante era usar preto, o preto como mensagem e só. Existia essa coisa de não precisar ostentar quem me vende, porque não sou um garoto propaganda dessa marca. Inclusive, estou pagando para usar a marca”, analisa.

Embora seja incontestável sua importância no luxo, a etiqueta como símbolo de estilo e prestígio não é uma exclusividade desse mercado. No ano passado, a C&A fez uma coleção com a Sasha Meneghel em que moletons preppy apresentavam externamente uma etiqueta com o logo da rede de roupas. Marcas menores, como BAW e Bolovo, também utilizam etiquetas e estampas para reafirmar seu nome.

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Sasha com look de sua colaboração com a C&A.Foto: Divulgação

“As marcas, hoje, não têm um apelo apenas de status financeiro, mas de identificação pelo que elas representam”, pondera o stylist. Exibir uma grife pode demonstrar publicamente as qualidades compartilhadas entre ela e o indivíduo que a usa. Às vezes, é uma preocupação com meio ambiente, ou uma identificação com nicho social específico.

Outro aspecto das etiquetas é confirmar a providência do produto. “Hoje existe falsificação de tudo. Não é só mais de Louis Vuitton. Existe falsificação da Baw, por exemplo”, destaca Marcio. “A etiqueta serve para comprovar que eu tenho um produto autêntico. Seja de grife, seja da Baw, seja de uma coleção limitada, como a da Sasha para a C&A”.

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Por outro lado, a própria falsificação pode ser uma identificação. “Existe um rolê bem específico, principalmente na periferia, em que o propósito é usar algo que é nitidamente falso”, continua o stylist e professor. Aqui, o conceito não é imitar uma peça de luxo como ela é, mas recriar a partir da identidade da marca. “Não são polos com o bordado de jacaré da Lacoste, mas camisetas com ilustrações de jacarés imensos, que nem são produzidos pela marca original”, comenta sobre a enfatização do falso como approach de moda e subversão.

Enquanto a originalidade perde o apelo em determinados grupos, o destaque da logo, ainda que em peças originais, também perde seu frescor em outras turmas. Se nas décadas passadas a logomania era a “nova etiqueta”, hoje, talvez o estilo marcante de um designer fale por si só. Não é necessário ver o nome da Balenciaga para saber que os óculos prateados imensos são deles. Ou que botas tratoradas e enfeitadas com bolsos são da Prada.

Etiquetas para que?

Se as etiquetas informativas estão sendo substituídas por QR Codes e os logos trocados por um design inquestionável, estariam as etiquetas próximas de um fim? Os especialistas não acreditam nisso. “O logo pode não estar em destaque, mas aparece no botão de uma jaqueta, na fivela de um sapato, de um cinto ou no pingente do zíper de uma bolsa”, aponta João Braga. Apesar do estilo marcante, os óculos da Balenciaga e os sapatos da Prada citados acima trazem uma referência tipográfica de suas marcas.

A própria falta de etiquetas e logos também funciona como uma jogada de reafirmação de marca: “Martin Margiela fez isso com a sua identidade zero. O importante era a roupa, não a etiqueta, que era apenas uma fita branca com quatro pontinhos brancos. Mas essa atitude gerou furor na mídia”, relembra Marcio. “A etiqueta diz muito sobre a identidade visual. Não à toa numa faculdade de moda ou no começo da carreira de um estilista, cobra-se muito o desenvolvimento disso, porque ajuda justamente a desenvolver a identidade da grife”.

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Etiqueta de roupa de Martin Margiela.Foto: Reprodução

A contextualização trazida pelas etiquetas é outro ponto a favor de sua sobrevivência. “Em alguns cenários só o design não vale”, comenta o stylist e professor, que também é colecionador de roupas. Por meio das etiquetas, ele consegue “rastrear” de onde é a peça: “Estudo, bato as costuras, as cores (usadas em determinada coleção), o material de confecção, mas sem a etiqueta com o nome, ela vale um centésimo do que valeria”. E não é exagero: em um bazar, ele já chegou a vender um vestido Miu Miu sem etiqueta por 30 reais. “Não importa que estivesse escrito Made in Italy ou que a etiqueta (informativas) estivesse no padrão de todas as outras da Miu Miu “, explica.

Curiosamente, reparar nas etiquetas é uma das principais dicas que rolam no Tik Tok para aprender como comprar bem em brechó. As etiquetas esclarecem se os tecidos são duráveis e de qualidade, mas também qual é o background de uma peça. Neste vídeo, é ensinado como você pode comprar roupas de luxo por uma pechincha, ainda que você nunca tenha ouvido falar na marca, simplesmente ao pesquisar o nome estampado na etiqueta. “Encontrei uma camisa listrada com a etiqueta da St. John’s Bay, pesquisei no google e vi que hoje a marca se chama somente St. John’s, sem o Bay, e ela está à venda na Farfetch com blusas de mais de 5 mil reais”, conta a proprietária do perfil Falco Brechó, celebrando o achado.

Com demandas cada vez mais intensas por uma economia circular, a etiqueta enquanto informação poderá ser completamente digitalizada, mas como símbolo de autenticidade, identificação e pertencimento, deverá permanecer entre as criações – sejam elas físicas ou não.

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