As novas linguagens do crochê

Nasce um novo ciclo da técnica, que já teve enorme alcance popular, como manifestação estética dentro da cultura funk nas periferias.


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Foto: Rodrigo Cícero da Silva



Não faz muito tempo que o crochê deixou de ser visto como coisa de avó. Amplamente difundido nas aulas de artes manuais nas escolas brasileiras nas décadas de 40 e 50, a técnica acompanhou uma geração de mulheres que aprenderam a atividade na infância e, hoje, compõem a população idosa do país. No entanto, para a surpresa da geração seguinte, que rechaçou o crochê, assim como todas as atividades domésticas – e de domesticação – são seus filhos, os jovens da geração Y e Z, os responsáveis por ressignificar a técnica e transformá-la em ferramenta de ativismo, expressão e autonomia estética.

Esse é o caso de um movimento cada vez mais forte nas periferias de São Paulo. Palco do estilo ostentação, a moda dos bailes funks, marcada pelo uso de roupas de marcas como Lacoste, Oakley e Tommy Hilfiger, agora divide espaço com acessórios feitos à mão. Os porta isqueiros ou bonés de crochê, as bombetas, viraram febre na quebrada e páginas dedicadas ao tema no Facebook já reúnem mais de 100 mil pessoas.

No Instagram, é possível ver uma série de perfis voltados às peças artesanais e, no Youtube, multiplicam-se os canais que compartilham gráficos e ensinam o passo a passo das bombetas. Uma das pessoas que têm se beneficiado com isso é Larissa Gonçalves Ramos, 24, moradora da Vila Medeiros, na Zona Norte de São Paulo. Em 2020, com o início da pandemia e sem oportunidade de trabalho, passou a produzir e vender itens de crochê.

 

 

A jovem aprendeu o ofício com a avó e juntou-se à matriarca da família para produzir os conjuntos das blogueirinhas: top e shorts de crochê, famosos por serem usados por celebridades como Anitta. No entanto, Larissa logo passou a fazer também as bombetas. “A minha relação com a moda é muito forte, mudo de estilo frequentemente, mas hoje me inspiro no funk, nos bailes. Lá, 80% dos caras estão com boné de crochê na cabeça”, explica ela que passou a viver da venda dos acessórios. “Atualmente, os bonés são minha maior fonte de renda, me permitem garantir o básico. Como moro com meus avós, que são grupo de risco para Covid-19, este é um bom trabalho, porque envio as peças pelos correios e não preciso ter contato com ninguém.”

O valor cobrado por Larissa para produção dos bonés varia entre R$ 100 e R$ 170, valores um pouco abaixo dos praticados por Rubens Rodrigo da Silva, 28, de São Bernardo do Campo. Ele demora em média dois dias para fazer um boné, paga aluguel e sustenta a filha com o retorno do que produz. Ao contrário de Larissa, que afirma que seu público é somente masculino, Rubens diz que suas bombetas são procuradas por homens e mulheres. Quando questionado se sofre preconceito por fazer crochê sendo homem, ele afirma: “não estou nem aí se alguém falar alguma coisa, eu crocheto aqui, enquanto minha esposa trabalha no shopping”.

Um rolê masculino

Invertendo a lógica corrente, na periferia, quando se trata da produção dos bonés, quem domina são os homens. Larissa é uma das poucas meninas no negócio. “99% das pessoas que fazem os bonés de crochê voltados para o funk são homens, tanto é que tem meninos que vem comprar comigo já me chamando de parceiro, irmão, eles nem sabem que sou uma mulher. Sou uma das únicas minas no rolê, o que pra mim é uma honra, já que mostra que não é só homem que sabe fazer”, orgulha-se a jovem.

 

 

Para Gustavo Seraphim, pesquisador das artes manuais têxteis e questões de gênero e mestrando em tecnologia e sociedade pela UTFPR, o movimento dos bonés de crochê na periferia tem dois aspectos interessantes. O primeiro, é a quebra do estereótipo do crochê como um fazer feminino. “Diferente da classe média, onde uma figura como Rodrigo Hilbert é conhecido como ‘homão da porra’ por, entre outras coisas, fazer crochê, na periferia, crochetar é um ofício visto como outro qualquer.” Já o segundo, é a inversão simbólica que os bonés apresentam ao carregarem a reprodução artesanal de marcas e grifes que os jovens gostam de ostentar. “O mais interessante dessa proposta é que esses jovens acabam hackeando a cultura da ostentação por meio de produtos feitos à mão, invertendo a própria mecânica do luxo”, comenta.

Em entrevista para a gravadora Kondzilla, Mc Kaverinha, um dos artistas que lançou a tendência nos bailes funk, afirma que muita gente nas comunidades não tem condições de comprar um boné de marca e o artesanal torna-se uma alternativa de inclusão: “Se a gente tá ali com um bonézinho da Lacoste falso, os cara já zoa, aí a gente já prefere mandar fazer, porque tem um custo mais barato e dura mais também”, diz Kaverinha Além disso, para ele, que tem uma coleção de bombetas, o crochê possibilita a cultura funk inserir em seu vestuário símbolos pertencentes apenas à identidade local, como a figura dos Irmãos Metralha e do Coringa, símbolos de poder e ostentação. “A gente gosta de vilão e não tem boné de marca assim”, explica.

Os ciclos do crochê

De origem francesa, o crochê, como todas as artes manuais têxteis europeias, foi difundida no país por irmandades religiosas. De execução relativamente simples, ela se popularizou por todo o território brasileiro devido ao seu baixo custo de produção e praticidade. De acordo com Mariana Guimarães, doutoranda em artes visuais na UFRJ e pesquisadora do fio há mais de 20 anos, “o crochê é muito popular no país porque é algo que você pode fazer dentro [de casa] para vender fora, uma tecnologia que não precisa de muitas ferramentas e cuja linha é barata e mais adaptável ao clima das nossas regiões do que a lã, normalmente usada para o tricô”.

 

 

Mariana destaca ainda o papel de emancipação financeira do crochê na vida de muitas pessoas. “Por exemplo, os bicos de pano de prato, com bainhas de crochê, são feitos de forma rápida, com baixo custo e agregam valor e capricho a um item presente em todas as casas brasileiras, que são muito vendidos em feiras”. Por permitir conciliar atividades de cuidado e reclusão com geração de renda, a pesquisadora lembra que “o crochê era muito utilizado como ferramenta para construção de um corpo dócil e feminino, modo de ser muito divulgado moralmente nas revistas de moda e suplementos dominicais dos anos 1950”, afirma.

Boné de cadeia

O boné de crochê que virou tendência hoje não deixa de estabelecer relações com o crochê do passado. Criado pelas mãos de presidiários no final dos anos 1990 – período de expansão das atividades de reeducação por meio do ensino artesanal nos presídios – as bombetas eram feitas na reclusão e enviadas pelos detentos para serem vendidas por parentes fora das cadeias.

Esquecidos no auge do funk ostentação, embora presentes no dia a dia dos presidiários, os bonés extrapolaram estes ambientes, como faz questão de frisar Rodrigo Cícero da Silva, 29, que assim como o irmão, aprendeu a fazer as bombetas pela internet. “Nem eu nem meu irmão estivemos na prisão. Hoje, ele é tatuador, mas foi quem me ensinou. No início, era um hobby, mas perdi meu emprego e comecei a lançar meus trabalhos na internet. Como a massa funkeira gosta muito e os Mcs estão usando, rapidamente começaram a aparecer clientes querendo adquirir meus trabalhos”, conta.

 

 

Para Mariana Guimarães, apesar do crochê estar ganhando diferentes representações sociais – a depender do ambiente em que se encontra – seu retorno faz parte de um movimento cultural cíclico. “Meu palpite é que vivemos, hoje, algo muito similar ao que aconteceu na década de 1960, com o movimento hippie, quando imperava um modelo de pensamento de retorno à natureza. Totalmente diferente da década de 1950, que apontava para o desenvolvimento de novas tecnologias. Algo que já tinha acontecido antes na época do romantismo, com o carpe diem. Atualmente, há um interesse crescente pela terra, pelo fazer com as mãos, culinária, valores que não imperaram nas décadas passadas.”

Sobre o passado recente do crochê, Mariana frisa que, se nas décadas de 60 e 70, a atividade foi símbolo revolucionário, como a tanga usada por Fernando Gabeira, em 1979, nas décadas seguintes a técnica chegou a ser considerada artesanato cafona. “O que chama atenção, é que, agora, o crochê está se reestruturando novamente, voltando a ocupar as passarelas e os corpos nas ruas – o que possibilita a expansão nas expressões populares -, mas também passando a ocupar os museus, galerias e manifestações de ruas.” Para ela, esta troca entre saberes e áreas é o que permite o fazer manual têxtil, aos poucos, deixar o status de trabalho doméstico, pouco criativo e sub-remunerado, para se tornar arte.

Nas palavras de Rubens, foi isso o que aconteceu com as bombetas: “Os bonés de crochê são a nossa forma de expressão. Se, antes, eles eram discriminados, agora, quem usa são os Mcs, virou ostentação”. Rodrigo completa: “Muito da ostentação vem da valorização de peças resistentes, geral gosta de pagar caro em algo que seja de qualidade. Os bonés de crochê não ficam para trás, são confeccionados manualmente e dependendo do cuidado do dono, duram para sempre”, conclui.

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