Brasil Eco Fashion Week: os destaques da 6ª edição

Sob o tema “CoCriar o Futuro”, criativos mostraram suas propostas sustentáveis e pesquisas de regeneração em um cenário desafiador.


Modelos indigenas e negros vestidos com roupas com grafismos indigenas na passarela



A 6ª Brasil Eco Fashion Week (BEFW), primeira semana de moda da América Latina dedicada à moda sustentável, aconteceu de 1 a 6 de dezembro no Senac Lapa Faustolo, em São Paulo, com 20 desfiles, 18 painéis e 30 workshops focados em nutrir o ecossistema da indústria. Com o tema “CoCriar o Futuro”, os criativos mostraram suas propostas e pesquisas de regeneração em um cenário desafiador para o planeta – possivelmente um eufemismo da presente situação.

De janeiro a setembro deste ano, foram derrubados 9.069 km² da Amazônia Legal (Imazon), o maior índice nos últimos 15 anos. Em julho, dados do Laboratório de Aplicações de Satélites Ambientais da UFRJ mostraram que o Pantanal sul-mato-grossense teve uma média de 134 mil hectares queimados, com um crescimento de 26% em relação ao ano anterior. 

Construir uma semana de moda sustentável em 2022, especialmente no Brasil, pressupõe uma tríplice de olhar, debate e intervenção política sobre questões como identidade, raça, o direito à terra de povos originários e a regeneração de biomas. Em uma perspectiva econômica, o mercado nacional precisa se adequar a uma indústria global que deve chegar a bilhões de dólares em 2030, segundo o relatório Global Ethical Fashion Market da The Business Research Company. 

E tudo isso não faltou na 6ª edição do Brasil Eco Fashion Week. Abaixo, confira alguns destaques do que rolou.

Grafismos

“Por muitos anos fomos tutelados por terceiros. Agora chegou a nossa vez de mostrarmos a nossa capacidade”, declara We’e’na Tikuna sobre sua nova coleção, “Worecü”. O nome faz menção ao ritual mais importante do povo Tikuna, a Festa da Moça Nova, que marca a transição para a vida adulta a partir da primeira menstruação. O Worecü acontece, explica We’e’na, com pinturas sagradas que serviram de referencial estético para o desfile.

Os looks foram criados em linho, algodão orgânico e tururi, um tecido da região amazônica extraído da entrecasca de árvores seculares, como a Naitchi. Os grafismos nas faces, que também marcam peças com silhueta alongada – vestidos, camisas e maxi saias -, foram feitos manualmente por We’e’ena com urucum, jenipapo e barro. “Como eu moro na cidade, não posso ter o meu corpo pintado em todas as ocasiões. Sofri preconceito com as minhas pinturas e roupas nativas. Vencendo o preconceito, nasceu minha grife”, revela.

Txai Suruí, mulher indígena, desfila com conjuntode saia e blusa cinza com grafismos segurando cesto de palha

A ativista Txai Suruí na passarela de We’e’na Tikuna. Foto: Marcelo Soubhia/Agência Fotosite

O casting, composto por modelos indígenas e negros, contou com a participação da  ativista Txai Suruí, que encerrou a passarela com um conjunto cinza de blusa e saia, com detalhes pretos e vermelhos. A ativista, que pertence ao povo Suruí em Rondônia, foi a única brasileira que discursou na Conferência da Cúpula do Clima (COP26) no ano passado, na Escócia.

Sabedoria atual

Muito se fala de tecnologias originárias e ancestrais, mas por que novos saberes não podem surgir hoje? É dessa questão que partiu Sioduhi, fundador e diretor criativo da Sioduhi Studio. A marca utilizou a mandioca, base da alimentação de povos indígenas há milênios, para tingir as peças. Em parceria com o sócio Adeilson Lopes e com apoio do Programa Inova Amazônia, do Sebrae Nacional, Sioduhi criou o Maniocolor, corante à base da casca de mandioca.

mulher veste conjunto de camisa e calça utilitarios em tom bege com boné

Sioduhi Studio: peças utilitárias com tingimento à base de mandioca. Foto: Marcelo Soubhia/Agência Fotosite

“No momento em que a parte considerada resíduo é reintroduzida no ecossistema da moda, eu vejo como uma forma de mostrar a potência que nós, indígenas, temos para desenvolver inovações tecnológicas”, declara o diretor criativo. Foram desfilados looks esportivos sem demarcação de gênero, que transmitem a proposta de futurismo indígena de Sioduhi. Ponchos com capuzes, chapéus e vestidos e coletes com bolsos reforçam o olhar voltado ao utilitarismo e proteção.

Modelo veste blusa assimetrica amarela com colar de bolas

Ludimila Heringer: tecidos impermeabilizados com látex. Foto: Marcelo Soubhia/Agência Fotosite

Já a estilista Ludimila Heringer foi outra criativa que bolou uma tecnologia, mas nesse caso de impermeabilização de tecidos, como seda e linho, com látex. A técnica, aplicada em tecidos com tingimento natural e estamparia botânica, confere leveza e maleabilidade – na contramão da impressão “borrachuda” que o látex pode passar. Uma blusa assimétrica amarela feita com ecoprint de cúrcuma ganhou o tratamento, assim como uma túnica laranja, com amarração na região do quadril, com estampa criada a partir do pau-brasil. 

Ampla e protegida

A ideia de um corpo que precisa de espaço de proteção e movimentação aparece há um tempo nas passarelas e foi reforçada no último Brasil Eco Fashion Week. Quem resiste a duras penas a uma ainda vigente pandemia e crises políticas e ambientais deseja repouso, na mesma medida em que precisa se adaptar e, frequentemente, atacar. Esse é o caso do desfile de Christian Sato, batizado de “Acid Rain”, que olhou para a transformação de corpos pela tecnologia, com inspiração nas armaduras de guerreiros samurais.

A onipresença de telas e a conexão indissociável às redes apareceram pela alegoria ao ciborgue, composto por partes orgânicas e cibernéticas. A silhueta recorre a formas que lembram uniformes de astronautas, armaduras ou colmeias. Destaque para as golas que, de tão grandes, quase viram capacetes e escondem e protegem o rosto.

Modelo veste conjunto de bermuda e blusa azul-marinho com gola que vai até o nariz

Christian Sato: maxigolas e maximização do aproveitamento têxtil. Foto: Marcelo Soubhia/Agência Fotosite

O corpo também aparece pontualmente demarcado e exposto, com croppeds que deixam a pele à mostra, mas sem abrir mão da silhueta que se assemelha a uma armadura. Christian explica que a coleção foi desenvolvida com a técnica têxtil japonesa Boro, que sobrepõe fragmentos de tecidos em uma espécie de retalho. “Todos os fragmentos retangulares de tecido aproveitam a largura do tecido, assim, não é gerado resíduo têxtil”, pontua.

O estilista Fabrício Bracco, fundador da Rico Bracco, naturalmente explora silhuetas afastadas do corpo e, na coleção “ÈREMO”, o contorno de balão foi escolhido para evidenciar a “fragilidade do corpo que é envolto por uma redoma, como um relicário”, explica. Entre a pele e o tecido há espaço. Essa massa invisível de ar é essencial à vida, afirma Fabrício, que complementa com uma analogia à fé: ela envolve um corpo mas não é vista.

Mas o que silhuetas amplas, que evocam a ideia de proteção sagrada de um corpo, têm a ver com esperança? O estilista conta que estava animado com os prognósticos das eleições presidenciais, com destaque para as políticas ambientais, ao desenvolver a coleção. Em meio ao caos político, a fé foi reforçada e direcionada à uma questão pessoal: seu pai sofreu um traumatismo craniano e ficou em estado de coma. Após meses de rotinas exaustivas, ele faleceu em novembro.

“Ele foi meu companheiro de vida e invariavelmente acreditava que em algum momento a marca poderia render frutos. De uma forma simbólica, espero honrar a memória dele através desta coleção que fala sobre luto e fé, onde cada uma das peças foi cortada por ele”, revela. 

modelo veste casaco marrom oversized sobre regata bege com calça preta

Rico Bracco: alfaitaria que protege. Foto: Marcelo Soubhia/Agência Fotosite

A alfaiataria ampla, com blazers com ombros pontudos, cria uma redoma ao redor do corpo, coberto por uma camada inferior de blusas de algodão, por um top similar a uma armadura ou, simplesmente, pela pele. Já a técnica do frivolité, que consiste resumidamente em fazer renda com nós, aparece como uma homenagem às raízes italianas do estilista.

Ainda volumosa

Já para a Trama Afetiva a amplitude do delineado é trabalhada para atender a quaisquer corpos. Após três anos de  pesquisa sobre a ressignificação do náilon de guarda-chuvas de aterros sanitários, a plataforma de cocriação se apresentou pela primeira vez na passarela. “Aceitamos o desafio do desfile exatamente para ocupar um espaço de apresentação de ideias que tem sido usado de modo muito ‘greenwashing’ (fora do BEFW) quando se fala de design circular, regenerativo e ético”, declara o diretor criativo Jackson Araujo.

Em parceria com o projeto de economia circular Revoada, a Trama comissiona uma cooperativa de catadores na Unidade de Triagem de Lixo Seco do Campo da Tuca, em Porto Alegre. Sob direção criativa de Araujo, com Thais Losso, Jorge Feitosa e Itiana Pasetti como estilistas – essa última também como diretora criativa da Revoada –, o grupo se debruçou sobre a diversidade do náilon, que pode parecer desde cetim e seda até tafetá.

Modelo veste vestido de croche com listras multicores

Trama Afetiva: crochê com fitas feitas de guarda-chuvas descartados. Foto: Marcelo Soubhia/Agência Fotosite

Peças de crochê, inclusive, como um vestido listrado com mangas oversized, foram feitas com fitas desse material, graças a uma tecnologia criada por Thais Losso e aperfeiçoada por Jorge Feitosa. Em média, cada guarda-chuva foi transformado em 42 metros de fita, dando forma a tops franjados, tangas, saias godês e maxipullovers. Nas cabeças, guarda-chuvas enfeitaram as cabeças, grafitados pelo diretor de arte e artista Ricardo Tatoo, da marca TV Kills. 

Modelo desfila com vestido azul marinho longo e segura bolsa brancaNuz:

Nuz: vestidos soltos e bolsa versátil. Foto: Marcelo Soubhia/Agência Fotosite

Ainda com foco na silhueta ampla, a Nuz, de Duda Cambeses, bolou vestidos parcialmente soltos do corpo, com cordões em tons demarcados que dão um ar sexy e atlético às peças, ou totalmente livres, que parecem desde camisolas até um casulo. A marca utilizou algodão orgânico e tecidos provenientes de reflorestamento e lançou seu primeiro acessório, em parceria com a marca Adue: uma bolsa “múltipla” que pode virar uma mochila até uma clutch.

Jeans e ancestralidade

Desfilando pela primeira vez no BEFW, a Woolmay Mayden levou à passarela um desfile totalmente feito em denim. A coleção “Incarner” (encarnar, em francês) do diretor criativo e CEO Jean Woolmay Denson Pierre, haitiano que mora no Brasil, é o “ato I” de um projeto de duas fases. Enquanto os 12 looks de jeans azul com muita pele à mostra foram apresentados no BEFW, a outra metade, “Réincarner” (reencarnar), foi desfilada dias depois na Casa de Criadores.

Modelo masculino veste calça jeans larguinha e top feito de bolsinhas

Woolmay Mayden: alfaiataria em denim reciclado. Foto: Marcelo Soubhia/Agência Fotosite

Woolmay usou tecidos reciclados para construir jaquetas, saias, calças e bermudas com cortes sofisticados de alfaiataria. Cintos amarrados sobre a pele nua, tops feitos com bolsas – que cobriam mamilos, independentemente de gênero – e o uso pontual de lingerie criaram uma atmosfera fetichista e, ao mesmo tempo, esportiva e urbana, com peças mais voltadas às ruas do que ao quarto.

“A pauta da marca sempre será jovens, negros, LGBTQIA+ e a diversidade corporal. A moda é um ato político, já está nas peças, não tem como fugir disso”, afirma Jean Woolmay. Perguntado sobre a onda de otimismo que tomou uma considerável parte dos criativos no último SPFW, ele destaca: “Eu acho que os próximos anos vão ser melhores. Sem Lula e Dilma, não teria um haitiano que estreia este ano na Casa de Criadores e no BEFW.”

Por sua vez, a VB Atelier trouxe na coleção Duo uma celebração de tecidos africanos, com estampas, formas geométricas e cores diversas, em harmonia com tons terrosos. Na apresentação se destacam as camisas estampadas combinadas a shorts. “A VB Atelier foi criada para trazer protagonismo para pessoas negras, visando descentralizar o olhar colonizador e trazer novas narrativas na maneira de vestir”, afirma a diretora criativa Andrea Villas Boas.

Modelo veste calça pescador laranja com camisa aberta com estampada

VB Atelier: tecidos africanos longe do olhar colonizador. Foto: Marcelo Soubhia/Agência Fotosite

A marca trabalhou com o reaproveitamento de resíduos de corte, além de coco, madeira e búzios nos acabamentos e acessórios. A modelagem, assim como em uma gama de desfiles da semana, foi ampla e sem demarcação de gênero. As peças são atemporais e com silhuetas mais clássicas, um objetivo da VB.

Sob o tema “O futuro é ancestral”, a DEMODÊ fez um desfile voltado ao crochê e renda, em tons terrosos, off-white e branco, com o algodão orgânico da Paraíba que já nasce colorido e é cultivado em agricultura familiar. A apresentação consistiu em bodies, calcinhas e cuecas de renda e crochê, combinados a shorts, coletes, calças e vestidos.

Modelos brancas e negras na passarela vestem tops e calcinhas em tons de algodão cru. À frente, uma modelo está cadeira de rodas

DEMODÊ: algodão orgânico e casting diverso. Foto: Marcelo Soubhia/Agência Fotosite

A produção da marca é local, com ateliê em São Luís do Maranhão, e feita 100% por mãos de mulheres. “As tecnologias ancestrais são sábias e nos recordam das nossas raízes. Existe muito valor nisso e, quando nos conectamos com o que é natural e simples, nós ficamos em paz”, explica a ecodesigner e idealizadora da DEMODÊ, Maria Zeferina. 

Maju Araujo, modelo com Síndrome de Down, desfila duas peças em tom off-white

Maju Araújo desfila para DEMODÊ. Foto: Marcelo Soubhia/Agência Fotosite

No casting, destaque para a modelo, influenciadora e ativista pró-inclusão de pessoas com Síndrome de Down, Maju Araújo, para a ex-atleta de de tênis em cadeira de rodas da seleção brasileira, Samanta Bullock, e para coordenadora da Casa Chama, ONG fundada por pessoas transvestigêneres, Indra Haretrava.

Fluidez e chão de fábrica

A Sau Swim, de Fortaleza, olhou para o mito de Narciso, que se afoga no rio em busca de sua própria imagem refletida. Batizada de “Narcisa”, a coleção desenvolvida por Marina Bitu e Yasmim Nobre contempla vestidos trabalhados de forma simétrica, em referência ao reflexo das imagens, e sutiãs cortina com macramê e miçangas.

modelo desfila com top tomara que caia e saia com fendo com textura ondulada

Sau Swin: técnica cria textura ondulada no tecido. Foto: Marcelo Soubhia/Agência Fotosite

As peças são fluidas com contrapontos estruturados de alfaiataria. Destaque para os tecidos rústicos, como o algodão feito em tear manual por profissionais que fazem redes no interior do Ceará. Já o tafetá de poliamida, normalmente rígido, foi cortado manualmente e passou por um tratamento de dublagem, que lhe conferiu uma superfície saltada, que remete aos desenhos das dunas do mesmo estado. Um conjunto perolado de cropped com saia foi feito, por exemplo, com essa técnica.

Por fim, longe das águas, a collab Rani + COMAS traz para a passarela uma simulação do ambiente de uma fábrica têxtil – uma alfinetada no mercado pautado pela produção em escala. Com a ideia de que nesse espaço pode nascer a possibilidade de fazer diferente, Luanna Cicolo (Rani) e Agustina Comas (da marca homônima) criaram a prototipagem em escala de um novo tecido: o ORICLA elástico.

modelo plus size desfila com top e calça justa em tecido azul brilhante

Rani + COMAS: collab apresentou um novo tecido elástico e versátil. Foto: Marcelo Soubhia/Agência Fotosite

Com diferentes padronagens, ele é composto a partir de cortes que sobram e seriam descartados. A apresentação é dividida em três momentos, sempre com ar esportivo e predominância de leggings. No primeiro há coletes, tops e shorts pretos e cinzas. No segundo, o destaque fica na padronagem de triângulos que evidencia o potencial gráfico do ORICLA. Já na terceira parte, a marca propõe uma transição da academia à festa, com tops com efeito brilhante. 

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