Como a digitalização está moldando o mercado de moda

O isolamento social acelerou o passo de revoluções previstas para os próximos anos com o aumento do uso de tecnologias 3D e modificações na criação de imagens.


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Talvez você tenha visto as imagens do desfile 3D da congolesa Hanifa Mvuemba que rodaram o mundo no começo da quarentena. No vídeo, as roupas-fantasma caminhavam em um fundo preto, sem sinal de uma modelo que as vestissem – essa foi a maneira encontrada pela estilista para apresentar sua coleção sem colocar ninguém em risco.

A pandemia do novo coronavírus mudou tudo. E se ainda não está claro qual será o futuro dos hábitos de consumo pós covid-19, nos bastidores o caminho já parece sem volta. As mais recentes semanas de moda com apresentações transmitidas pela internet são um bom indício: a digitalização dificilmente permitirá uma retomada do padrão antigo. E até na maneira como se cria e faz moda.

Essas tecnologias não acabaram de aparecer, mas seu uso aplicado no mercado deu passos largos em apenas alguns meses de isolamento social. Foi preciso repensar muitas coisas: a importância da experiência idealizada especialmente para o digital, como criar produtos com menos desperdício (de dinheiro, de recursos e de espaço) e a valorização de um trabalho mais ético.


Profissões já existentes tiveram de se adaptar, senão poderiam se tornar irrelevantes. Outras começaram a ter seu trabalho mais valorizado agora que os holofotes estão todos no digital. Filmar um desfile não é novidade – a gente sabe bem que o streaming das semanas de moda popularizou a passarela –, mas há uma grande diferença entre apenas registrar o vai e vem das modelos e criar um versão virtual daquilo, capaz de prender a atenção do espectador por mais de alguns segundos. Conceber um vídeo pensado especialmente para a internet faz toda a diferença e quem sacou essa diferença entregou experiências realmente inovadoras.

Animação em 3D feita pelo Studio Acci.Vídeo: Studio Acci

Outro ponto importante são as tecnologias 3D que chegaram revolucionando um mercado com práticas já estabelecidas há anos. “Diziam que esses processos iam se popularizar em dez anos, mas em um ano tudo mudou”, conta Letícia Acciarito, dona do Studio Acci ao lado do amigo Henrique Assis. Os sócios decidiram abrir o estúdio no começo de 2019, focados no mercado brasileiro e na evolução do assunto na indústria de moda local. Acciarito mora atualmente na Itália e trabalha em uma empresa dedicada a criar experiências em realidade aumentada para marcas de luxo, mas acredita que a distância física não faça diferença quando se trata desse tipo de projeto.

O foco do Studio Acci é o desenvolvimento de peças em 3D com um software especializado. “Criar a modelagem em 3D faz com que se desperdice muito menos tecido e dinheiro, já que as alterações são feitas no computador e não precisamos pilotar várias peças até chegar no resultado final”, diz ela. A designer explica que há duas formas de trabalhar com essa tecnologia: ou ela recebe a peça pronta e a cria ou a aperfeiçoa no computador ou ela recebe os croquis e ‘pilota’ o item 100% digitalmente.

Apesar de Letícia ter feito faculdade de moda, se especializando nessas tecnologias, essa não é a realidade do mercado. A maior parte dos especialistas em 3D acaba enveredando para o caminho dos games e da realidade aumentada, o que faz com que profissionais com conhecimentos de modelagem tenham destaque na área.

Nada do que foi será…

As reformulação do calendário de lançamentos e apresentações fez com que o ritmo de produção das marcas mudasse. Se antes era praticamente imprescindível desfilar em uma semana de moda, hoje há quem aposte em coleções cápsulas e apresentações virtuais independentes ao seu tempo. É o caso da Another Place. No dia 5 deste mês, a grife mostrou sua nova coleção em formato completamente digital. “No começo da quarentena, estava com muita dificuldade de criar. Decidi pesquisar outras coisas para fazer e encontrei um curso para fazer roupas em 3D”, lembra Rafael Nascimento, diretor de criação e fundador da marca. “Na verdade, existem programas em que essa criação é muito parecida com a manual. Você corta a peça, passa a costura e o overlock, borda o botão. Comecei a brincar com isso e começaram a sair algumas roupas.”

O mesmo aconteceu com o maquiador Helder Rodrigues, que teve que mudar seu processo criativo por completo devido ao distanciamento social. Quando fotos presenciais ainda não eram permitidas, ele chegou a mandar kits de maquiagem para a casa das modelos, ensinando-as a se maquiar via Facetime e até pintou com lápis de cor algumas fotos, emulando uma make de flores para um editorial da revista online Leve Mag.

Hoje, com as regras de quarentena afrouxadas e a leve retomada de trabalhos, Rodrigues precisa seguir diversos protocolos de segurança para garantir a saúde das modelos e dos demais profissionais envolvidos. Todos os materiais são descartáveis, as paletas são de inox e as maquiagens têm de ser porcionadas e higienizadas para cada modelo. “Mesmo com essas restrições, têm sido muito interessante, porque tenho mais tempo para fazer com mais capricho. Cuido de cada look pontualmente, teve casos em que troquei a cor da make dos olhos a cada look. Isso era impossível de fazer no backstage”, comenta.

Enquanto novos meios são testados mundo afora, a única certeza que fica é de que fomos longe demais para voltar atrás no uso dessas tecnologias. Quando os eventos presenciais voltarem à normalidade, vai sair na frente quem conseguir unir o real ao virtual, proporcionando experiências que funcionem tanto para quem está presente quanto para quem assiste de casa.

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