Desfiles digitais em versão brasileira

Marcas locais começam a adotar novos formatos de apresentação, de transmissão comentadas por celebridades a criações completamente virtuais.


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Na noite de quarta-feira (29.07), a Água De Coco transmitiu um desfile via YouTube, seguido de live com celebridades, modelos e clientes comentando suas relações com a grife e seus looks favoritos. A apresentação marcou o lançamento da coleção Indo, pronta desde março, porém suspensa até agora devido à pandemia do novo coronavírus. “Normalmente, não fazemos grandes eventos para as entradas do primeiro semestre, mas este momento nos fez olhar mais para dentro e valorizar nosso trabalho e dos profissionais envolvidos”, diz Renato Thomaz, diretor de marketing e exportações da grife. “É importante apoiar o trabalhador de moda e fazer o negócio girar. Realizar essa experiência foi a maneira que encontramos para fomentar nosso mercado.”

A filmagem aconteceu no hotel Carmel Taíba Exclusive Resort, em São Gonçalo do Amarante, a 75 km de Fortaleza. Diferente de quando a marca realizava grandes eventos presenciais, a equipe de produção contou com cerca de 20 pessoas (antes, esse número chegava a 200). Das 40 modelos que compunham o casting dos desfiles tradicionais, agora apenas duas cruzaram a passarela: Mari Calazans e Carol Trentini.


Por outro lado, a coleção não sofreu grandes perdas. “Finalizamos tudo bem antes da pandemia, então não foi preciso mudar nada”, afirma Thomaz. “Já as próximas coleções [que serão lançadas no fim deste ano e no início de 2021] tiveram de ser revistas quase que por completo.” Coincidentemente, nesta temporada a marca optou por deixar em segundo plano suas famosas estampas tropicais e destacar peças com design mais simples e cores sóbrias, como o preto e o bege. “Por acaso, é algo que se relaciona ao momento que estamos vivendo, aos desejos por itens mais básicos e atemporais.”

Depois do desfile online da À La Garçonne, em março, a Água de Coco foi a primeira grande marca nacional a se aventurar digitalmente. Durante o mês de julho, acompanhamos as experiências de algumas grifes internacionais nesse sentido, com resultados bastante variados. Agora, a medida em que tais modelos começam a ser implementados localmente, fica mais fácil analisar sua eficácia, relevância, vantagens e desvantagens.

Em entrevista a ELLE, Renato Thomaz comenta sobre a importância de encontrar o melhor formato para se comunicar com a consumidora. No caso da Água de Coco, os mega desfiles sempre tiveram bastante retorno de vendas. Por que, então, mexer em time que está – ou estava – ganhando?

Há quem diga que a apresentação da label foi nada mais do que um desfile filmado e comentado na internet. Há também os 1,5 mil espectadores que acompanharam a transmissão e acharam aquilo incrível. Fato é que, mesmo pouco inovador, o modelo fez sentido e repercutiu entre quem deveria: o público-alvo da marca.

Se a experiência internacional nos ensinou alguma coisa, é que grandes grifes são mais resistentes à adoção de novidades – e de qualquer tipo. Apesar de terem mais recursos para investir em novas tecnologias e proporcionar experiências inéditas, boa parte delas ainda se vê refém de um público bastante avesso à experimentações e tudo mais que fuja do que já é conhecido (aka padrão).

Talvez, uma apresentação 100% digital e interativa, com modelos e roupas criados em realidade virtual, não tivesse a mesma repercussão e engajamento do que a conversa pós-desfile entre Claudia Leitte, Preta Gil, Renata Kuerten, Silvia Braz, Isabele Temóteo e Mariana Mota para Água de Coco.

Do mesmo jeito, um desfile filmado, talvez, não faça sentido para quem consome a D’Aura. A marca do estilista Lucas Menezes se consolidou no mercado com roupas que dialogam diretamente com o estilo dos jovens das grandes cidades. Seu grande sucesso, está em peças que oferecem soluções práticas – amarrações, cortes assimétricos, pregas e construções inteligentes – para um guarda-roupas básico, mas nem tanto.

Look da collab entre D’Aura e Cartel 011.Vídeo: Divulgação

A partir da meia noite desta sexta-feira (31/07), peças feitas em parceria entre a D’Aura e o Cartel 011 estarão à venda no site da multimarcas. Para marcar o lançamento, o Studio Acci, especializado em design de moda digital, criou uma campanha com as roupas modeladas em 3D. Além disso, cada peça vem acompanhada de um QR code. Quando escaneado, é possível conhecer um pouco mais sobre o que há por trás daquele produto.

A collab é o segundo drop da coleção Urban Essentials, composta por versões simplificadas das criações da D’Aura. “Dessa vez, expandimos a gama de produtos para além das camisetas e moletons. Tem a primeira calça da linha e também nossa primeira bolsa”, conta o estilista. Outra novidade, são as estampas, algo pouco trabalhado na marca e uma característica forte da CZO, etiqueta própria do Cartel 011.

A ideia da modelagem 3D surgiu quando Menezes e Cristian Resende, fundador e sócio da multimarcas paulistana, começaram a discutir a comunicação da coleção. “Nossa principal preocupação era não expor nem arriscar a saúde de ninguém. Na época, o Cris já estava em contato com Studio Acci e decidimos que essa seria a melhor solução.”

MODA EM TRÊS DIMENSÕES E MIL POSSIBILIDADES

Este segundo drop foi feito manualmente pelo próprio Lucas. Porém, devido às medidas de distanciamento social, não possível realizar nenhuma prova de roupa. A solução veio por meios digitais. “Quando começamos a ver as primeiras versões das peças em 3D, pude entender melhor e corrigir detalhes de proporção e caimento”, explica o estilista.

“Design 3D existe e é aperfeiçoado há décadas. Mais do que uma novidade, o que acontece, agora, é um reconhecimento das possibilidades da ferramenta e dos profissionais que a dominam”, escreveu o repórter Gabriel Monteiro em matéria deste site. Desde que a Covid-19 interrompeu o contato físico e social, a prática vem ganhando cada vez mais notoriedade. “Interrompidas as interações, as marcas que davam ou não bola para este tipo de tecnologia se viram forçadas a pensarem o quanto do fluxo de suas operações pode ser feito digitalmente. E isto tem implicações não só na imagem, mas também na produção, divulgação, exposição e venda daqui por diante”, continua Monteiro.

Ainda são poucas as grifes brasileiras dispostas a desbravar o novo segmento. “Muita gente acha que é um processo excludente, que vai extinguir profissões. Não é, é uma ferramenta para tornar o trabalho mais prático”, opina Menezes. “Marcas pequenas e independentes precisam calcular todos os seus passos. Agora mais ainda. Precisamos evitar todo tipo de risco e desperdício. Enquanto grandes empresas podem ter mais fôlego para aguentar essa crise, nós temos a vantagem de sermos mais adaptáveis e abertos a inovações, como o design 3D.”

Na produção e confecção de moda, as vantagens são da criação digital são a otimização e agilidade do trabalho e a redução de descartes. Como todos os testes podem ser feitos no computador, evita-se desperdício de tecido e outros materiais usados em provas de roupa. Já no campo criativo e das apresentações as vantagens são… Bem, a quase completa ausência de limites.

Diretor criativo e fundador da Another Place, Rafael Nascimento estava com um completo bloqueio criativo no início da quarentena. “Fui buscar algum curso para tentar retomar a inspiração e acabei encontrando um de encontrou um outro de design de moda 3D. Descobri que existiam programas bem simples para criar de maneira digital, como o CLO | 3D, e comecei a pesquisar e estudar o assunto”.

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Macacão digital feito por Another Place e Leandro Benites.Foto: Divulgação

Durante o aprendizado, Nascimento convidou o amigo e também estilista Leandro Benites para criar uma macacão que, hoje, só existe virtualmente. Na próxima quarta-feira, 05.08, contudo o estilista irá um pouco além. Nessa data, a Another Place realizará seu primeiro desfile 100% digital. Toda coleção, bem como o cenários e os modelos foram modelados digitalmente. O processo contou com a colaboração de alguns amigos: a trilha (que será disponibilizada no Spotify) é uma música composta por Barbara Ohana; as estampas são do designer Gabriel Azevedo; cenário e iluminação são do artista 3D Rodrigo Carvalho; e o styling fica por conta de Michael Vendola.

Nos próximos meses, veremos como nossas próprias semanas de moda – São Paulo Fashion Week e Casa de Criadores – se adaptarão à nova realidade. Fórmula certa já ficou claro que não existe. Existe, sim, adequação, sensibilidade e um tanto de bom-senso. Moda (diz que) é o sobre o novo e isso é sempre bom ter em mente. Ainda mais depois de tanto discurso sobre possíveis mudanças sistêmicas. Possibilidades e novos caminhos já se provaram existentes. Resta saber quem está disposto a assumi-los.

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