Como se nada…

Em uma temporada marcada pelo esforço criativo de apresentações digitais, algumas grifes insistem em desfiles presenciais com o devido protocolo de segurança, mas duvidosa necessidade.


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Todos estavam atentos à maneira como a moda reagiria criativamente no que diz respeito aos desfiles. A solução, devido ao distanciamento, foi a divulgação digital. Boa parte optou por produções de fotos e vídeos, das criações mais simples às mais elaboradas. Algumas marcas, porém, insistiram no formato físico, às vezes, até com convidados. Apesar do respeito aos protocolos de segurança, a imagem é de coleções pouco afetadas ou fugindo completamente da realidade pandêmica. O sentimento é o de que fica para trás aquela vontade de mudar tudo, intensamente discursada no início da quarentena.

No começo de julho, a Balmain abriu o calendário virtual de alta-costura com uma performance híbrida. Dentro de uma embarcação, Olivier Rousteing, diretor de criação da grife, colocou modelos, 50 dançarinos e a cantora Yseult cruzando o Sena. A pequena extravagância foi justificada como uma comemoração aos 75 anos da casa, que, apesar de presencial, tinha o objetivo de impulsionar o Tik Tok da marca. A conexão caiu e só curtiram aqueles que se aglomeraram em pequenos grupinhos nas margens do rio para acompanhar a performance ao vivo.


Mas quem reuniu oficialmente uma plateia, pela primeira vez após o lockdown, foi a italiana Etro. Com 80 pessoas presentes na área externa do hotel Four Seasons de Milão, a marca fez o primeiro desfile com convidados em uma das cidades mais afetadas pela pandemia no mundo, em 15 de julho. A dupla de estilistas Veronica e Kean Etro comemorou com os convidados o fato de “estarem vivos”, afirmando à imprensa presente que queriam “trazer novamente vida e energia à cidade, quebrando com o círculo de solidão e não sucumbindo a tristeza”.

As roupas, bastante comerciais, foram a alternativa, de acordo com os designers, para atender um cliente que, agora, não quer nada difícil. Apesar do jeitinho boêmio e até de uma ligação interessante com a tapeçaria, as peças não ajudaram no argumento. Ficou a dúvida se era realmente necessário um evento físico para mostrar um conjunto de jeans ou um vestido de estampa paisley.


A apresentação ao ar livre da Dolce & Gabbana aconteceu no campus da Humanitas University, também em Milão. Esta é a parte educacional de uma fundação médica que tem a marca italiana como parceira, em um projeto que viabiliza bolsas estudantis desde o ano passado. A escolha do local, no entanto, não teve reflexo algum na coleção. Ela pareceu mais uma maneira de justificar os 260 convidados reunidos para mostrar roupas masculinas inspiradas na costa mediterrânea.

Os looks foram de uma alfaiataria largona à roupa de neoprene, com surfista passeando de prancha na mão e modelo musculoso de canga amarrada na cintura. Numa leitura mais simbólica, fica a curiosa origem da palavra “sarado”, que é justamente a oposição ao sujeito doente. A imagem parece irônica, uma vez que nenhuma referência ao novo coronavírus ou ao duro tempo do combate à doença apareceram nas características das roupas ou no jeito de apresentá-las.

Um representante da organização universitária encerrou o evento com menções a países devastados pela Covid-19 como Índia e Brasil. Para ele, ciência e beleza não devem ter fronteiras. Tudo isso, enquanto Domênico tirava a máscara de proteção e a colocava no bolso e Stefano arrastava a sua para o queixo, como mostra o vídeo divulgado no canal de Youtube da grife.


Claro, há de se levar em consideração que enxergamos estas coleções a partir de uma perspectiva específica, de um país bastante machucado pela pandemia – muito, inclusive, em função de políticas nacionais ineficazes ou contrárias ao combate do novo coronavírus. As feridas no Brasil estão abertas, enquanto outras regiões do mundo partem para experiências mais exitosas. De toda maneira, o planeta soma hoje mais de 600 mil mortos. Destes, mais de 30 mil franceses e 35 mil italianos.

A aparente atitude de ignorar o que muitos chamam de “trauma coletivo” fez com que a crítica estrangeira também questionasse a retomada da moda tão às pressas: por que não abdicar, pelo menos agora, de uma performance presencial? O jornal Le Monde, por exemplo, ressaltou que, enquanto marcas se dispuseram a experimentar a comunicação online, um nome que desponta como um dos principais designers da nova geração francesa não o fez: o estilista Simon Porte Jacquemus. Ele, que por sinal usa muitíssimo bem as redes sociais, preferiu o desfile presencial, levando aproximadamente 100 convidados para Us, região de pouco mais de mil habitantes, a uma hora de Paris.

Em conversa com a imprensa, o designer pareceu prontamente preparado para este tipo de questionamento. “Como autônomo, não tinha outra escolha para a sobrevivência do negócio, o desfile de moda está no centro da estratégia de uma marca como a minha e isso tem um impacto direto nas vendas”, justificou. Jacquemus afirmou ainda que optou por uma coleção fácil, tanto na execução, quanto nas características, para ser mais comercial.


O público se dividiu em relação à escolha. Alguns, avaliaram como pragmática a apresentação física e se deslumbraram com a locação – um corredor que serpenteava uma plantação de trigo –, e com a presença de modelos mais diversas. Boa parte, no entanto, demonstrou incômodo nas redes sociais. Uma foto da equipe da marca, aglomerada e formada principalmente por profissionais brancos, contrasta com a imagem da passarela e alimentou textos problematizando a situação. O consultor e escritor André Carvalhal escreveu em seu perfil do Instagram: “assim, a moda começa a voltar ao seu velho normal”.

No caso de Jacquemus, a escolha pela apresentação física tem um peso maior. Sensibilidade, curiosamente, é um dos pilares de sua marca, uma pauta cara a essência de suas produções. E justamente a sensibilidade que, segundo o dicionário, é uma capacidade de reação, sentimento de compaixão, propriedade de receber e perceber informações sobre as mudanças do externo, capacidade de sentir e de se solidarizar.

O valor da sensibilidade está na possibilidade de ser afetado pelo que acontece ao seu redor. A imagem da coleção não segue esse caminho. A L’Amour, como foi chamada, mostra uma linearidade em relação a tudo que Jacquemus fez nas últimas temporadas, como se nada houvesse acontecido. A coleção tem detalhes de talheres bordados, uma bolsa onde se prende um prato, outra que carrega morangos frescos, além de alguns corações recortados. Tudo lembra uma caminhada gostosa a um pic-nic. E a imagem faz sentido para Jacquemus e sua trupe. É meio disappointed but not surprised: o seu cliente preza pelo cultivo de si, se protege no meio do mato, porque pode. Está tudo bem, está tudo certo. Ela faz o distanciamento social dela — ainda que seja também um distanciamento da realidade.

É curioso que esta fuga campestre apareça também na nova coleção cruise da Dior, apresentada na última quarta-feira (22/07), na Piazza del Duomo, em Lecce, região de Puglia, na Itália. A escolha do lugar tem a ver com as raízes de Maria Grazia Chiuri, diretora criativa da marca, que é filha de um local. E é bonita a maneira como ela celebra o folclore dali: a tradição das luzinhas que decoram os edifícios, pontuando a arquitetura da praça e sublinhando bordados dentro da coleção; o uso de tecidos regionais, de técnicas tradicionais, como o tombolo; além da presença de uma companhia de dança local, La Notte de La Taranta, coreografando referência às crenças da região, como o tarantismo.


Maria Grazia tem boas justificativas. Ela lembra que o artesanato é sobretudo encabeçado por mulheres, num trabalho doméstico várias vezes encarado como menor. Mas é interessante, mais uma vez, ver este tipo de fuga campestre, com garotas em espartilhos de couro e lenços cobrindo suas cabeças. A alternativa escapista, bucólica e historicamente de elite, encontrada na literatura e na pintura, é a referência para grifes que fogem de uma realidade pandêmica, e que é especialmente mais dura nos centros urbanos. São as regiões mais apinhadas de gente, das grandes metrópoles, e dos contextos mais vulneráveis, as mais afetadas.

A beleza dessas criações não devem encobrir o contexto. As coleções cruise são criticadas por inflarem o calendário de moda e são comercialmente importantes para grandes grifes, como a Dior, por ficarem por mais tempo à venda. E aí tudo parece um grande balde de água fria em quem imaginou que a moda daria um reset em si mesma.

A vontade de mudança, de repensar apresentações, calendário e consumo parece um desejo que se arrefece. A London Fashion Week, por exemplo, está marcada para acontecer em setembro, incluindo apresentações físicas, como a já anunciada pela Burberry. A Fendi também já avisou que desfilará em Milão, daqui dois meses. As semanas de moda de Milão e Paris já comunicaram que acontecerão normalmente.

Não há consensos sobre o futuro, sobre quais são as melhores práticas a se adotar, para além daquelas sugeridas pelas instituições sanitárias. Ficará a cargo de cada marca pesar o que é importante para si. Mas a pergunta deve continuar por um bom tempo: ainda que permitido, precisa?

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