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Desfiles digitais de alta-costura e das semanas de moda masculina apontam novo caminho para uma comunicação mais abrangente e acessível.


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Na semana passada, o desfiles masculinos de Paris e Milão deram continuidade à tour digital das fashion weeks iniciada pelas apresentações de alta-costura (que só terminaram hoje, 21/07, com a Valentino). Teve transmissão ao vivo com 12h de duração, imersão no universo criativo de uma das mentes mais brilhantes da moda atualmente, colaboração com artistas plásticos e cineastas estrelados, roupas 3D, caixa de surpresas e até quem decidiu que a internet não é o melhor lugar para apresentar uma coleção.

Foi uma temporada com mais perguntas do que respostas. Quem vai comprar aquelas roupas? Onde elas serão usadas? Qual é a relevância delas? Haverá mudanças de fato ou aqueles discursos do começo da quarentena foram só ações marketeira disfarçadas de empatia?

A pandemia do novo coronavírus deixou tudo ainda mais relativo e complexo. É possível, por exemplo, interpretar os cinco vídeos criados pela Prada em parceria com os fotógrafos e videomakers Willy Vanderperre, Juergen Teller, Joanna Piotrowska, Martine Syms e Terence Nance como uma grande campanha em movimento. Ou como uma releitura do que há de mais essencial na marca: o minimalismo prático, o flerte com referências boudoir e com roupas esportivas. Dá também para entendê-los como uma tentativa de representar estados mentais bem comuns aos tempos pandêmicos: a urgência pelo conforto, o tédio, a ansiedade e até o desejo pelo retorno ao trabalho.

Vale lembrar que essa é a última coleção com assinatura solo de Miuccia Prada. A partir da próxima temporada, ela passa a dividir a direção criativa com o estilista belga Raf Simons.

Na Valentino, o inverno 2020 de alta-costura foi apresentado em um vídeo assinado pelo diretor e fotógrafo britânico Nick Knight. Nele, pode-se apreciar a beleza das projeções digitais de flores, fogo, água, terra e vento sobre vestidos brancos suntuosos, no melhor estilo ópera-couture pelo qual o diretor Pierpaolo Piccioli ficou conhecido. Por outro lado, surgem questionamentos sobre a necessidade de usar metros e mais metros de tecidos para criar looks de silhueta extremamente alongada em um momento de escassez e revalorização de excessos.

Em comunicado à imprensa, a maison explica: a intenção é ressaltar ainda mais o enorme talento artesanal empregado em cada peça de couture. Moda não existe sem o toque humano. Em tempos de crise, enaltecer e fortalecer trabalhos tão preciosos tem a ver com humanidade. Vem daí também a escolha por uma coleção toda em branco. A cor é símbolo dos tecidos-base nos quais costureiras, bordadeiras, rendeiras e mais toda uma gama de profissionais dão origem ao que vemos na passarela ou, no caso, nas telas dos nossos telefone e computadores.

Mais do que nunca, as possíveis interpretações sobre uma coleção ou desfile dependem da vivência e realidade de cada um. Assistir do Brasil, onde a pandemia segue descontrolada, tem mil e umas implicações. Foi com um mix de revolta e inveja que este repórter observou não só os modelos, mas também os convidados distanciados com cerca de 1,5m uns dos outros, nas poucas apresentações presenciais dos últimos dias. É como se o escapismo e o sonho da moda se tornassem ainda mais distantes e irreais.

Simon Porte Jacquemus levou 100 convidados para um campo de trigo a uma hora de Paris, onde realizou o desfile de verão 2021 de sua marca homônima. Domenico Dolce e Stefano Gabbana, reuniram 260 pessoas no campus da Universidade Humanitas, a 30 minutos do centro de Milão, para a apresentar a mais recente coleção masculina da Dolce & Gabbana. E a Etro também desfilou peças masculinas no jardim do hotel Four Seasons, naquela mesma cidade, com um plateia de 80 indivíduos mascarados e com suas temperaturas checadas.

A justificativa comum às três marcas é da impossibilidade de replicar na internet a experiência física de um desfile. E concordamos em parte, já até falamos sobre isso. Acontece que o mundo não é mais o mesmo. Novos contágios por covid-19 seguem baixos e algo controlados em partes da Europa, pelo menos por hora. Ainda assim é inevitável questionar se esse tipo de evento faz sentido neste momento. E aquela conversa de repensar o sistema de moda, de ser mais responsável? Qual é a real mensagem dessas apresentações: vida que segue? Business as usual?

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Caixa da Loewe enviada a jornalistas e clientes da marca.Foto: Divulgação

Toque e pessoalidade são qualidades inerentes à moda. Porém, de modo algum elas se resumem à passarela, trilha sonora e alguns modelos. Em sua marca própria, a JW Anderson, e na Loewe, grife espanhola na qual é diretor criativo, Jonathan Anderson enviou caixas cheias de retalhos de tecidos, pequenos bordados, papéis de carta, dobraduras, ilustrações e outros elementos para jornalistas e clientes. Ambas coleções apresentam roupas com formas e volumes arredondados e cortes circulares. A impressão é de um abraço ou envolvimento protetor e confortável. Tingimentos manuais, como o shibori, tressês de couro e tricôs mil ainda expõem o lado artesanal dos processos de costura e confecção. É a tactilidade em suas várias formas.

Shapes volumosos, aliás, são tendência para o verão 2021 masculino. Na Dior Homme, eles aparecem num mix de alfaiataria, streetwear e elementos de alta-costura transportados para o prêt-à-porter. Muitas vezes decorados com laços e bordados, tais elementos falam sobre a desconstrução da masculinidade. Ou, em outras palavras, de uma imagem de homem diferente daquele ideal viril, forte e desprovido fragilidade ou qualquer emoção.

Kim Jones, diretor de criação da Dior Homme, é só um dos estilistas dedicado a essa nova representação masculina. Nesta temporada, ele trabalhou ao lado do artista ganês Amoako Boafo (como contrapartida para a collab, Boafo pediu ajuda para criar uma fundação para jovens artistas em Acra). Em suas pinturas de cores vibrantes, não é raro homens serem retratados de maneira carregada de sentimentos e emoções. A masculinidade frágil tem impactos ainda mais profundos e trágicos nas comunidades negras. Repensar como essas pessoas são pintadas e apresentadas ao mundo é urgente.

Em um vídeo editado pelo diretor britânico Chris Cunningham, Boafo abre seu ateliê e nos conduz por uma viagem criativa sobre processos técnicos da pintura e questões sociais e culturais presentes em sua vida. É um material imersivo dificilmente possível durante um desfile. Na correria de uma semana de moda habitual, poucos se dariam ao trabalho de se aprofundar posteriormente em qualquer material a parte disponibilizado.

É interessante pensar como os formatos digitais aos quais muitas marcas foram obrigadas a se adequar apontam novos caminhos. E não apenas em relação à apresentação em si, mas também ao tipo de conteúdo. Durante as 12h de transmissão realizada pela Gucci, foram os minutos em que o diretor de criação Alessandro Michele explicou todo o processo criativo por trás da coleção os mais interessantes.

Vídeo Cortesia Gucci

Diferente da espera de uma desfile presencial, onde podemos observar o ambiente e os demais convidados, assistir pessoas organizando roupas em uma arara ou modelos a espera da sua vez de serem fotógrafos têm uma similaridade assustadora com a rotina tediosa de uma vida em quarentena. Ninguém quer ser lembrado de quanto o tempo custa a passar ultimamente.

Mais vale ouvir Michele explicar como essa coleção encerra a trilogia iniciada em fevereiro, com o desfile de inverno 2020. Aquela coleção falava sobre rituais, mais especificamente como nossa vida é marcada por eles e como os subvertemos conforme crescemos – ou sobrevivemos. A segunda parte foi a campanha, clicada em maio, e o final agora chega com o resort 2021. A imagem é aquela conhecida, com o mix de estilo e referências tão essencial ao trabalho do estilista à frente da Gucci. Continuam presentes as padronagens e cores dos anos 1970, as modelagens e referências renascentistas e elementos lúdicos, quase infantis, como as estampas de personagens da Disney.

Durante a transmissão, quem vestia as roupas eram os estilistas e designers que as criaram. É como se Michele estivesse voltando todos os olhares para dentro. De um lado, o olhar para dentro do próprio ateliê, enaltecendo e reconhecendo o valor do trabalho de cada pessoas envolvida. Do outro, para nosso interior emocional. Em um momento em somos privados de contato exterior, a introspecção se torna compulsória. E isso muda como enxergamos e sentimos tudo.

Mais do que testar novos formatos, as apresentações digitais mostram como a moda pode ser relevante em tempos distópicos. Os 50 minutos de vídeo assinado por Nick Knight para a Maison Margiela Artisanal poderiam ser facilmente puro deslumbre fashionista. Porém, uma edição precisa que combina as imagens de cores saturadas, características de Knight, com explicações e digressões de John Galliano sobre todo seu processo criativo – da pesquisa de referências às provas de roupa, beleza e briefing para o filme assinado por Nick Knight – fazem desse material verdadeiro deleite fashion.


S.W.A.L.K. | Maison Margiela Artisanal Co-Ed Collection Autumn-Winter 2020

www.youtube.com

Observar como imagens de estátuas de mulheres do século 19; os blitz kids (os clubbers de Londres nos anos 1980); os ternos zoot; a coleção Fallen Angels, que o próprio Galliano apresentou em 1986, e um poema de Jean Cocteau resultam em looks que reproduzem (em tecidos e técnicas primorosas de corte e costura) a sensualidade de um vestido molhado sobre o corpo é registro vivo do que faz a alta-costura especial.

Desfiles, de um modo geral, sempre foram digitais. Há pelo menos 10 anos apresentações de moda são transmitidas ao vivo pela internet ou disponibilizados na íntegra minutos após o evento. O que muda agora é a informação. Ou melhor, o acesso a ela. Até então, interessados em moda dependiam das visões e interpretações de mediadores para conhecer a inspiração de uma coleção, as referências nela contida e até detalhes sobre cada peça.

A partir do momento que os formatos digitais passam a comunicar diretamente muitos desses pontos, abre-se todo um novo caminho para que clientes ou simples apaixonados por moda possam criar suas próprias narrativas e interpretações. É basicamente uma nova transição da imagem para a informação.

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