Como projetos e negócios que pautam sustentabilidade sobreviveram em 2020

Mediante a crise sanitária que desenha uma crise econômica, iniciativas sociais e ambientais tiveram que encontrar formas de superar os desafios e amparar suas comunidades.


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Ainda que o conceito de sustentabilidade seja bastante difuso, a iniciativa privada percebeu que sua abordagem é vital para os negócios. Ao mesmo tempo, as crises climática e humanitária se agravam. Com isso, na última década, vimos um crescente número de empresas e organizações governamentais e independentes se dedicando às práticas com impacto reduzido no ambiente e com maior responsabilidade social. Contudo, a pandemia da Covid-19, com seus desdobramentos socioeconômicos, colocou tudo isso em risco. Muitos projetos com essa perspectiva tiveram de mudar o rumo previsto e encontrar outras formas de seguirem ativos.

Com uma retração econômica que atingiu em cheio o setor têxtil e o vestuário, a indústria foi uma das 40 mais afetadas no Brasil, conforme o Diário Oficial da União (DOU). O desemprego chegou a níveis alarmantes: são até 400 mil postos de trabalho que podem ser perdidos, no segundo trimestre de 2020 (ONU). Na moda, as vendas globais em 2021 podem ficar até 15% abaixo dos níveis de 2019, como aponta o relatório “The State of Fashion 2021”, da McKinsey & Company em parceria com o The Business of Fashion. Manter uma agenda sustentável em meio a tantas baixas é um desafio enorme.


Neste contexto, Aron Belinky, sócio-diretor da ABC Associados, consultoria especializada em sustentabilidade empresarial, visualiza dois cenários. Primeiro, o de empresas que diminuíram o investimento em seus projetos de sustentabilidade, e, segundo, aquelas que viram o cenário como uma oportunidade para expansão.

“Empresas que viam os temas só por marketing, certamente diminuíram o investimento e ficaram menos prioritárias nesses projetos. Por outro lado, houveram aquelas que se organizaram no sentido da solidariedade e da emergência; vimos muitas que não são tradicionalmente investidoras em interesse público, mas acabaram se mobilizando para colaborar”, explica Belinky.

A sustentabilidade dos e nos negócios de moda

A Grendene é uma das empresas que somou esforços para realizar doações de itens de produção individual e amparar suas comunidades. Grande varejista de calçados, ela contempla as marcas Melissa, Rider, Zaxy, Grendha, Grendene Kids, Cartago, Pega Forte e Ipanema. Carlos André Carvalho, gerente de desenvolvimento sustentável, relata que mesmo com uma pausa de três meses na produção, os projetos relativos à sustentabilidade não deixaram de ser prioridade e nenhum funcionário foi demitido ou teve redução salarial. “De certa forma começou a se olhar para dentro e procurar oportunidades”, diz. Para ele, isso aconteceu pelo setor de sustentabilidade ser consolidado na empresa desde 2011 e garantir uma perenidade em momentos de crise.

Na Lojas Renner, varejista de vestuário, ações de proteção aos colaboradores e fornecedores também foram tomadas logo no início da pandemia. “Obviamente tivemos algumas revisões de fluxo de caixa, mas como as estratégias de sustentabilidade já estão integradas, não alteramos isso, pois já é algo que faz parte dos nossos processos”, conta Eduardo Ferlauto, gerente sênior de sustentabilidade. A marca tem, desde 2008, o Instituto Lojas Renner, que durante a pandemia somou esforços para amparar seus fornecedores com consultorias e linhas de crédito. Aproximadamente 1,5 milhão de verba foi realocada para ajudar 220 pequenos negócios a passarem pela crise.

“Sem essas organizações as pessoas que dependem da moda na base da cadeia sofreriam muito mais.” – Dariele Santos

Por outro lado, houveram as grandes varejistas que mostraram sua irresponsabilidade social durante a pandemia. É o caso de marcas como H&M, Zara e Primark, que cancelaram pedidos prontos ou em andamento de seus fornecedores em países como Índia e Bangladesh. Surgiram petições online e movimentos de pressão para essas marcas honrarem seus contratos, mas muitas ainda negligenciam a questão e revelam como suas políticas são colocadas à prova em momentos como este.

Entre as marcas que já nasceram com atenção ao socioambiental, os projetos relativos a isso não foram pausados – são a alma do negócio. “Por aqui, já nascemos com esse DNA; nós esperamos que num futuro breve nem exista mais essa divisão do que é moda sustentável e do que não é”, diz Bárbara Mattivy, fundadora e Co-CEO da etiqueta de sapatos Insecta Shoes. Com uma adaptação rápida ao mercado, elas vão fechar o ano com um aumento de quase 50% em comparação a 2019. “Nascemos com o e-commerce e já éramos uma marca digital, então, mesmo com o fechamento das lojas físicas, conseguimos crescer através da loja online”, explica a empresária.

A realidade é semelhante a da VERT Shoes. Nela, nenhum projeto foi pausado e toda a cadeia produtiva conseguiu ser contemplada com os respectivos pedidos e pagamentos, de acordo com Natália Araújo, responsável pelo setor comercial da grife. “Batemos recorde de produção de algodão orgânico e borracha nativa da Amazônia. O que mudou foi a forma com que desenvolvemos os projetos. Aprendemos que, algumas vezes, conseguimos resolver desafios online de maneira muito mais rápida e eficiente”, conta.

Em meio a pandemia, projetos sociais foram ainda mais necessários

A crise desencadeada pelo novo coronavírus pode deixar 71 milhões de pessoas na linha da extrema pobreza em 2020, conforme relatório recente da ONU. Com esse agravamento das desigualdades sociais, projetos que pautam a sustentabilidade sob esse viés seguem essenciais. “Sem essas organizações as pessoas que dependem da moda na base da cadeia sofreriam muito mais”, afirma Dariele Santos. Empreendedora social e presidente do Instituto Alinha, ela resume 2020 como um ano desafiador para quem trabalha com sustentabilidade. “A gente percebe que o fluxo do investimento muda muito quando as empresas são afetadas e a sustentabilidade deixa de ser prioridade”, diz.

A Alinha sentiu o impacto da crise logo nos primeiros meses de pandemia e teve o menor fluxo de projetos e balanço financeiro desde 2017. Apesar disso, Santos destaca como a força do coletivo foi fundamental para criar uma cooperação sem precedentes; marcas parceiras e campanhas de financiamento coletivo ajudaram a sustentar o negócio e a prestar auxílio às trabalhadoras e oficinas de costura. Ao todo, foram mais de 180 famílias amparadas com cestas básicas por seis meses.

Outro exemplo de ação que surgiu em detrimento da pandemia é a “Máscara Mais Renda”. Com o mapeamento de costureiras em situação de vulnerabilidade social que perderam sua renda mensal neste período, o projeto visa oferecer a elas novas oportunidades de geração financeira por meio da confecção de máscaras. Realizado pela Rede Asta, negócio social que desenvolve artesãs e costureiras em empreendedoras por meio do trabalho com upcycling, a ação já soma mais de 2 mil mulheres participantes em 240 municípios do Brasil. “A pandemia nos mostrou outros caminhos; nunca olhamos como uma crise institucional, mas como uma possibilidade de ampliar nosso impacto”, conta Alice Freitas, diretora de sonhos na instituição. A base de cadastradas na Rede Asta aumentou de 5 mil para 11 mil nos últimos meses de 2020.


Costureis posam com m\u00e1scaras feitas para projeto social.

Costureiras do projeto Máscara Mais Renda, da Rede Asta.Foto: Cortesia | Rede Asta

Para Beto Bina, cofundador da FARFARM e Head of Sourcing da VERT Shoes, incluir o aspecto social no escopo da sustentabilidade é primordial. “A pergunta é como você promove o desenvolvimento social através desse trabalho”, destaca. Ele viu uma possibilidade de criar impacto positivo na cadeia têxtil com a co-fundação da FARFARM, uma empresa de consultoria especializada em cadeias de fornecimento, desde a plantação de algodão orgânico utilizando agricultura regenerativa até a pesquisa de novos materiais. Na pandemia, os projetos em andamento continuaram e evoluem na velocidade da própria natureza. O impacto foi na redução de novos projetos e na documentação e registro do trabalho nas comunidades.

Sustentabilidade antirracista

Trazer a agenda do antirracismo para projetos que envolvem a sustentabilidade é prática fundamental. Isso porque as pessoas negras são 54% da população brasileira, mas representam 75% dentre os mais pobre, e entre os mais ricos apenas 17% (IBGE, 2018). O racismo estrutural sustenta as dinâmicas sociais e com a pandemia essas desigualdades foram acentuadas.

Algumas marcas têm despertado para a causa, mas de maneira lenta, comenta Luana Genot, Diretora-Executiva do Instituto Identidades do Brasil (ID_BR), que trabalha na aceleração da promoção da igualdade racial no mercado de trabalho. No ínicio da crise sanitária, “muitas empresas começaram uma retração, dizendo que não iam investir na pauta antirracista ou qualquer coisa relacionada a diversidade e inclusãoo, por acreditar que essas são pautas anexas aos negócios, e não centrais”, diz a diretora.

Genot destaca que uma mudança ocorreu com a morte de George Floyd, homem negro assassinado nos Estados Unidos, em maio. A partir de então, muitas buscaram entender seu papel na dinâmica racial e como se engajar para além do quadradinho preto. “Percebemos que um homem negro precisou morrer para elas perceberem que isso não é pauta anexa, mas central”, relata. Com isso, o ID_BR fecha o ano de 2020 com 17 novas empresas participantes do selo “Sim à Igualdade Racial” e aumentando sua equipe de 9 para 20 pessoas. “Em março ou abril, tínhamos percepções severas de redução do instituto, mas terminamos o ano praticamente duplicando de tamanho e passando boa parte das atividades pro mundo online”, conta. “Não deixa de ser um balanço positivo.”

A adaptação para o âmbito online, que ocorreu com as atividades do ID_BR, também se estende a outros projetos. O Negrxs Diálogos na Moda nas Ruas de São Paulo, que busca dar visibilidade às pessoas de pele preta por meio de giras de conversa, ciclos de diálogos e cursos, é um exemplo. Idealizado pela consultora de estilo Paloma GS Botelho e apoiado pelo Programa de Ação Cultural (ProAC), foi todo alocado para plataformas digitais. “Pensamos em como trazer a experiência de uma produção preta, com excelência, do universo físico para virtual. Não foi uma perda, a gente entendeu como um ganho de poder acessar mais pessoas”, comenta Botelho.

2021: esperança em meio a incertezas

Muitos desenham um cenário de retomada para 2021. A Associação Brasileira das Indústrias Têxteis (ABIT) estima que manufaturas têxteis e de vestuário crescerão, respectivamente, 8,3% e 23% na comparação com 2020. Porém, pesquisas globais apontam que é improvável que os níveis de atividade pré-crise voltem antes do terceiro trimestre de 2022 (McKinsey & Company) e muitas dúvidas ainda pairam sobre o próximo ano.

Carvalho coloca que a Grendene pretende continuar em sua jornada de sustentabilidade, abarcando outras marcas com mais profundidade. Já Ferlauto destaca que as ações da Renner estão voltadas para o cumprimento de seus compromissos públicos. “Temos o comprometimento de zerar nossas emissões [de carbono] até 2050, e neste ano conseguimos estruturar boa parte das ações para isso”, diz o gerente.

“Era irracional como mantínhamos várias atividades e isso vai continuar se transformando.” – Aron Belinky

Quanto aos negócios sociais, a Rede Asta está criando, para 2021, uma plataforma online que conecta pessoas que produzem com pessoas que desejam comprar, fomentando uma rede de apoiadores para desenvolver economias locais. Projetos em âmbito digital ganharam força, como também os da Alinha. “Criamos uma metodologia 100% online de assessoria e isso vai possibilitar em 2021 atendermos e assessorarmos oficinas em qualquer lugar do país”, compartilha Santos. Na agenda racial, Genot acredita que 2020 “foi o ano de despertar para pauta antirracista, agora não podemos deixar o mundo adormecer de novo”. Uma das metas do ID_BR é expandir o diálogo com a América Latina e outras partes do globo.

No “State Of Fashion 2021”, relatório que avalia projeções para a moda no próximo ano, a sustentabilidade é citada como uma área de crescimento por 1 em cada 10 executivos do setor, destacando a mudança de mentalidade nessa direção que começou ao longo dos últimos anos. “A sustentabilidade tem que ser de fato transversal”, reforça Carlos. “Não é só essa área específica dentro de uma companhia que vai ser diferente; se o assunto não for transversal, dentro de uma empresa, não vemos evoluções.”

Por fim, Belinky vê que as mudanças impostas pela pandemia possibilitaram uma nova visão dos negócios; ele cita que neste ano o número de empresas utilizando o Índice de Sustentabilidade Empresarial (ISE), da Bolsa de Valores Brasileira, bateu índices recordes, por exemplo. “Era irracional como mantínhamos várias atividades e isso vai continuar se transformando”, diz. Bina também acredita que foi um estopim para muitos entenderem como somos vulneráveis e inter-conectados, mas reforça: “a gente vem em uma crescente, mas é importante sair da bolha e entender que isso não é uma realidade para todo mundo. O futuro já está aqui, ele só não está bem distribuído.”

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