Conheça três projetos de upcycling que dão vida nova a sneakers
De corsets a trabalhos de reconstrução total, jovens designers do Brasil e do mundo estão deixando suas digitais na moda sustentável ao transformar o mais básico dos calçados em criações extraordinárias.
Miu Miu, Gucci, Louis Vuitton, Burberry. Estas são algumas das marcas que, nos últimos anos, aderiram ao upcycling, prática que consiste no reaproveitamento de materiais, como tecidos e aviamentos, para a criação de novos produtos. No entanto, basta uma rápida explorada pelo feed do Instagram para perceber que, entre o burburinho em torno dessa maneira de se fazer moda, há um item em particular no qual jovens designers estão focados em recriar ultimamente: o tênis. Nas mãos de criativos como os brasileiros Felipe Matayoshi e Eduardo Oliveira e a alemã All Amin, a peça vale ouro. De corsets a trabalhos de reconstrução total, estes artistas estão deixando suas digitais na moda sustentável ao transformar o mais básico dos calçados em criações extraordinárias.
Muito mais do que ouro, sneakers valem algo que não se compra para o paulista Eduardo Oliveira, 24: é um recomeço. Antes de descobrir o talento para a reconstrução de calçados, o jovem não hesita em revelar o trabalho para o mundo do tráfico. “Depois de vivenciar tanta coisa ruim, chegou um momento em que decidi: ‘não quero mais isso pra mim”’, relembra.
Há pouco mais de um ano, Eduardo começou a reformar tênis da Mizuno, marca que deu origem ao codinome Mizuneira, e batizou sua empresa homônima de upcycling. Na casa em que divide com a esposa, Débora Oliveira, ele dá vida nova aos calçados surrados de clientes além de oferecer aulas para alunos da periferia que querem trilhar o mesmo caminho. No entanto, diferentemente desses jovens, Eduardo não teve a mesma sorte: aprendeu sozinho todo o processo de corte, costura e colagem de tênis.
“Fui na raça, estragando meus pares pessoais até dar certo”, conta ele, que já consertou mais de mil Mizunos. “Existem cursos de sapataria, mas é um aprendizado que, na maioria das vezes, são técnicas usadas para outros tipos de calçados. Tem sapateiro que não teve oportunidade de se especializar e, na hora do trabalho, faz o que dá para fazer sem saber a forma correta. Esse meio ainda sofre com muita falta de informação.”
Engana-se quem pensa que para conseguir um espaço na agenda do Mizuneira é moleza. A cada três meses, a oficina é aberta para receber novas encomendas e, por volta das 8h, já tem gente fazendo fila. O ritmo é intenso. Enquanto conversávamos, um cliente chegava para buscar seu Mizuno novinho em folha. Os serviços podem variar: ajustes no calcanhar custam 70 reais, reparos na sola, 180 reais, e restauração completa aproximadamente 300 reais. Atualmente, além de ser o único especialista em reforma de tênis da Mizuno, Eduardo virou sensação entre os jovens da periferia e já conta com um culto de mais de 90 mil seguidores nas redes sociais.
É graças aos sneakers que Felipe Matayoshi, 30, fundador da marca de roupas Pace, também encontrou um propósito. Antes de lançar a etiqueta em 2017, o designer era dono de uma grife de calçados, a Bang Footwear. Em 2021, Felipe retornou às raízes ao idealizar o projeto Sole Hunter, que busca oferecer identidade única a modelos clássicos de sneakers, como o Adidas Stan Smith e o Converse Chuck Taylor, por meio de processos de upcycling e customização de solados.
Ao visitar o site da Sole Hunter, é possível escolher entre 24 silhuetas históricas de tênis de marcas como Nike, Reebok e New Balance. Em seguida, seis opções de sola são colocadas à disposição para deixar a criatividade fluir, enquanto uma variedade de acessórios de couro, para o cabedal e cadarços, dão o toque final no processo de customização. Os materiais usados nas construções são sobras provenientes de produções passadas da Pace e os acessórios são reutilizados da indústria calçadista e fabricados por artesãos no interior de São Paulo.
“Atualmente, vejo um movimento muito interessante no mercado de sneakers, onde boa parte dos consumidores não querem os tênis mais requisitados e limitados”, analisa Felipe. “Além de um hobby, a Sole Hunter foi uma maneira de atender a essa demanda e tornar silhuetas clássicas mais exclusivas com identidades únicas.”
Segundo Felipe, o insight da Sole Hunter veio após perceber a grande quantidade de matérias-primas remanescentes tanto de sua própria marca, quanto da indústria nacional. Diferente da Pace, o designer quer deixar o projeto mais descontraído, com crescimento orgânico. A decisão já começou a dar frutos: mês passado, a Sole Hunter se uniu a Vans para lançar uma colaboração exclusiva, que inclui a reinterpretação dos modelos clássicos SK8-HI e Authentic. Em ambas as silhuetas, foi utilizada a sola shark, desenvolvida pela própria Pace, que logo estará presente nas coleções da marca e no site da Sole Hunter como opção de customização. “Foi um sonho realizado poder trabalhar com uma marca do calibre da Vans, ainda mais em um projeto pessoal que ainda está bem no início”, diz o designer.
A alemã All Amin, 26 anos, que atende pelo apelido Haram With Sugar no Instagram, é outra designer sem limites para criatividade quando o assunto é upcycling de sneakers. Após abandonar a escola de design de moda, em 2019, All passou a fazer experimentos com tênis. Começou criando saltos a partir de Nikes detonados até encontrar o que hoje é sua assinatura principal: bodywear.
“Quando era mais jovem, desconhecia o fast fashion e o grande impacto que a indústria da moda tem a nível ambiental e humanitário. Isso me fez consumir mais do que o necessário”, relembra a estilista. “Hoje, diria que naquela época estava viciada em ter o último par de tênis a todo custo. Ao me educar e mergulhar nesses temas, tive uma grande mudança na minha mentalidade e comecei a repensar minha forma de consumo. Tinha muitos tênis durante esse tempo, então comecei a trabalhar com todos os recursos que já tinha em mãos.”
Assim como Eduardo e Felipe, o amadurecimento pessoal de All foi traduzido em forma de empreendedorismo. Em 2020, a designer apresentou seus designs para o mundo ao fundar a HARAM, marca especializada em upcycling de sneakers. Com repertório diversificado, suas criações vão de corsets e bustiês que lembram armaduras, saias e acessórios para cabeça. Tudo construído a partir de um denominador comum: tênis recebidos de doações de seguidores ou garimpados em lojas locais de segunda mão em Berlim.
“Lançar a marca foi simbólico como forma de deixar meu antigo eu acrítico para trás e começar a agir na discussão política sobre sustentabilidade”, afirma. “Haram é uma palavra árabe que significa ‘proibido’, de acordo com a crença islâmica. Foi importante para mim escolhê-lo, porque esse termo desencadeou o pior do meu passado, quando muitas vezes ele foi usado para me colocar pra baixo e não permitir que me expressasse. Hoje, HARAM para mim significa autodeterminação e empoderamento, especialmente para aqueles que não conseguem encontrar aceitação em suas próprias comunidades. Eu desenho minhas criações para todos que estão abertos a roupas ousadas e não têm problemas em sair da caixa.”
Quando questionada se os consumidores finalmente estão prestando atenção na conversa sobre sustentabilidade na moda, All dispara: “Definitivamente, a maioria ainda não. Acho que a sustentabilidade e o upcycling ainda são consideradas práticas de nicho. Há uma falta de compreensão sistêmica sobre o sucesso e a importância de expandir um negócio de upcycling na indústria da moda. No entanto, a diferença realmente acontece quando as grandes marcas começam a adotar essas práticas. Quando vi que diferentes pessoas passaram a conhecer o upcycling depois de ver meus designs, percebi também o potencial da prática numa discussão maior sobre sustentabilidade, especialmente entre gerações mais jovens”.
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