O que está envolvido na duplicação de modelos por IA pela H&M

Horas de estúdio e custos altos? Com modelos digitais, baseadas em modelos reais, não mais. A novidade, apresentada em campanha da H&M, levanta polêmica em relação a impactos trabalhistas e sociais.


A modelo Mathilda Gvarliani recriada com inteligência artificial para campanha da H&M
Campanha da H&M feita com inteligência artificial. Foto: Divulgação



No fim de março, a H&M lançou uma campanha com a modelo Mathilda Gvarliani de regata branca e calça jeans. Até aí, mais do mesmo. Exceto pelo fato de que aquela imagem nunca foi fotografada. Ela foi gerada por inteligência artificial. O único ensaio fotográfico que aconteceu de verdade foi aquele em que Mathilda teve seu corpo minuciosamente documentado, quase como em um processo de escaneamento. As fotos, então, foram enviadas para a empresa de tecnologia Uncut, responsável por criar a réplica virtual da profissional. É quase como um avatar, só que bem mais realista.

O uso de IA na criação de imagens de moda não é uma novidade. Outras marcas, como Boss e Levi’s, já tiveram experiências mais ou menos bem-sucedidas. Até o momento, o recurso tem se limitado aos conteúdos encontrados em e-commerces ou lookbooks comerciais. No Brasil, as ações nesse sentido ainda são poucas e raramente comunicadas. Boa parte das empresas nacionais de vestuário e calçados relega a inteligência artificial a funções logísticas ou estratégicas.

A C&A, por exemplo, explora a tecnologia no controle de estoque e para prever tendências. Já a Magalu pontua que a Lu, sua influenciadora digital, é feita com tal tecnologia, porém é uma criação própria da varejista e sem relação com modelos reais. A Hering e Riachuelo afirmam não usar IA para produzir imagens. A Renner declinou os pedidos de comentários da reportagem.

Campanha da H&M feita com inteligência artificial.

Campanha da H&M feita com inteligência artificial. Foto: Divulgação

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As gêmeas digitais apresentadas pela H&M são inovadoras em vários sentidos. A própria marca afirmou desconhecer os impactos que o uso de cópias digitais de modelos reais pode ter para essas profissionais e para a indústria como um todo. Em um comunicado oficial, Jörgen Andersson, CEO da H&M, disse que a iniciativa é “algo que vai aumentar nosso processo criativo e a forma como trabalhamos com marketing, mas sem mudar fundamentalmente nossa abordagem centrada no ser humano”.

Quais são as vantagens?

“De maneira positiva, isso pode reduzir custos e aumentar a personalização”, diz o booker internacional da Ford Models, Gustavo Jacques. Os gastos envolvidos na produção de imagens são relativamente menores. O processo é mais rápido e permite um gerenciamento analítico mais simples.

Ter um clone também pode ampliar as oportunidades de trabalho. Estar em dois lugares ao mesmo tempo deixa de ser impossível. Se uma modelo precisa estar em Nova York para um desfile na semana de moda, sua gêmea virtual pode estar em Paris em uma campanha ou ativação digital.

Remuneração e contratos, contudo, são mais um desafio pela frente. “Seriam necessárias adaptações contratuais, incluindo limitações de onde e por quanto tempo as imagens podem ser veiculadas”, comenta o booker Gustavo. “Mas, por mais criterioso que o contrato seja, todos os desdobramentos ainda são inesperados, para a empresa e para a profissional”, explica a consultora de negócios e IA para moda Eva Coutinho.

Campanha da H&M feita com inteligência artificial.

Campanha da H&M feita com inteligência artificial. Foto: Divulgação

Para André Miceli, coordenador do MBA de marketing e negócios digitais da FGV, a novidade é uma ameaça e uma oportunidade ao mesmo tempo.
“Se bem regulamentada e usada com transparência, pode ser uma ferramenta importante, que amplia o alcance e poder”, explica.

Informar ao público que a imagem foi criada com inteligência artificial é uma questão legal. Em abril de 2021, a Comissão Europeia propôs a primeira lei sobre IA para o bloco e, a partir do ano que vem, conteúdos feitos com a tecnologia precisarão ser descritos como tal.

No Brasil, não há uma regra sobre o assunto. A Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais (LGPD) também não se aplica ao cenário, tornando a negociação entre modelo, agência e empresa contratante ainda mais importante para resguardar o direito de uso de imagem.

Campanha da H&M feita com inteligência artificial.

Campanha da H&M feita com inteligência artificial. Foto: Divulgação

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Em Nova York, o Fashion Worker’s Act, proposta de lei apresentada pelo Model Alliance, um grupo dedicado a proteger modelos e seus direitos, entra em vigor em junho. Segundo o texto, o consentimento da modelo é obrigatório para todo e qualquer uso de sua imagem real ou virtual.

No caso da H&M, além de Mathilda, outras 29 modelos ganharão uma gêmea digital. Segundo a companhia, a propriedade das réplicas digitais é das profissionais, que podem decidir como, quando e onde usá-las – inclusive para outras marcas.

Quais são as desvantagens?

A possibilidade de estar em mais de um lugar ao mesmo tempo tem um lado negativo. Muitas vezes, uma modelo é chamada para um trabalho porque outra teve um contratempo. Entretanto, com a tecnologia, a presença física não é sempre necessária. Dessa forma, as oportunidades de trabalho podem ficar – ainda – mais restritas a certos grupos.

Há também impactos em relação a outras profissões envolvidas na produção e criação de imagens de moda. Um set de fotografia ou filmagem envolve mãos e mentes de uma série interdisciplinar de trabalhadores. Com a produção ancorada no digital, não seria mais necessário contratar – ao menos da mesma forma – fotógrafos, stylists, maquiadores, camareiras etc. “Com a IA não existem limites físicos de cansaço”, fala André. “Há um controle total sobre iluminação, cenário, figurino e expressões.”

Campanha da H&M feita com inteligência artificial.

Campanha da H&M feita com inteligência artificial. Foto: Divulgação

Toda novidade, especialmente as tecnológicas, causa estranhamento. “Mas não é nesse nível estrondoso que muitos pregam”, opina Eva. Quando os e-commerces surgiram, muitos lojistas acreditavam que estavam fadados, o que não se mostrou bem assim. “A IA vai roubar o emprego das pessoas que não estiverem com a mente aberta a utilizá-la”, complementa. Sim, os impactos são desconhecidos, mas a necessidade de adaptação, não.

De acordo com Eva, o fotógrafo e o stylist não teriam seus olhares subjetivos trocados pela tecnologia. Suas visões e direcionamentos seriam empregados de outras maneiras. No caso das agências, o posto de booker, acreditam os profissionais entrevistados, também não sumirá. “Vamos precisar de pessoas para trabalhar na contratação do perfil desejado (modelos humanas ou virtuais)”, diz Anderson Baumgartner, fundador da Way Model. “Se o consumidor tiver segurança e comprar cada vez mais a imagem que não é real, talvez isso aconteça mais rapidamente.”

Campanha da H&M feita com inteligência artificial.

Campanha da H&M feita com inteligência artificial. Foto: Divulgação

Por fim, surge uma questão comportamental. Qual é a diferença do impacto psicológico de uma foto retocada, prática vigente das campanhas, e de outra criada por IA? “Agora a manipulação é total. É uma tentativa de eliminar o intervalo entre imagem e realidade concreta”, fala o psicanalista André Alves. “A gente vai ter cada vez mais dificuldade em lidar com imperfeições e frustrações. Isso mostra que aprendemos muito pouco com as redes sociais.”

Não tem escapatória: como qualquer ferramenta, esta tecnologia não é neutra. Pelo contrário, ela é capaz de reforçar certos padrões sociais. “Estudos mostram que a IA corrobora para noções distorcidas sobre aparência”, diz a psicóloga Mônica Gurjão. Inclusive, uma modelo digital da Major Model, a Marjorie, foi criada com base não em uma pessoa, mas em um grupo que já recebeu muita crítica: as angels da Victoria’s Secret. “O cliente queria um contrato de 15 anos”, explica o headbooker da Major, Marcio Kiss. Pelo acordo, Marjorie precisa manter as medidas e visual nesse intervalo. Tarefa fácil para quem não é humana.

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