Sorriso brilhante: entenda o movimento das joias bucais
Ouvimos três odontologistas e duas marcas especializadas no segmento para entender a popularidade (e cuidados) dos grills e caps.
A boca é o desenho da palavra, meio da voz, ímpeto do beijo e êxtase do sorriso. Esta carga simbólica, social e política da boca a torna mais do que uma parte do corpo humano, é algo mais sensível e expressivo. Além da sua funcionalidade óbvia para alimentação, acumulam-se nela várias funções sociais, especialmente as da comunicação e afeto.
Dado todo esse potencial, não deveria ser surpresa a crescente popularidade das joias bucais, como os grills e caps, muito menos sua resistência. Com expressiva presença na cultura, esses acessórios aparecem desde a clássica faixa “Grillz” do Nelly — que ficou por 28 semanas no gráfico da Billboard Hot 100, chegando a primeira posição em 2006 — até o filme vencedor do Oscar, Moonlight (2016), de Barry Jenkins — na belíssima cena do restaurante, quando Black reencontra Kevin.
Antes de continuar, porém, vamos a um pequeno e breve glossário:
Caps, Elements Joia Dental.Foto: Divulgação
Caps são jóias, fixas ou removíveis, que cobrem apenas um ou dois dentes. Elas podem cobrir a frente e lateral do dente ou apenas a faceta, a parte mais visível, ou a coroa, que contorna o dente por inteiro.
Grillz, Horus Joalheira.Foto: Divulgação
Já grills (ou grillz) são conjuntos de mais de 2 dentes, sempre removíveis. No Brasil, os metais mais usados para essas joias são ouro, prata e níquel.
Dentes de ouro, caps e grills provocam impacto imediato, afinal, como ignorar um sorriso que brilha em metais preciosos? Enquanto os dentes de ouro são velhos conhecidos, os outros dois acessórios têm se tornado mais próximos da gente aqui no Brasil nos últimos anos. “A nossa trajetória anda muito em paralelo com a cena do Trap”, conta Fernando Mielli, de 37 anos, sócio da Elements Joia Dental. “O Derek e o pessoal da Recayd são nossos parceiros desde o começo. A gente apostou neles pela estética do Trap e porque precisávamos de foto, de gente falando sobre o produto.” Hoje, a Elements tem uma média de 10 clientes semanais e já fez peças para Cleo Pires, Pabllo Vittar e Karol Conká.
Mielli e seu sócio, Rafael Ferrari, de 37 anos, se autointitulam os pioneiros do movimento de grills e caps no Brasil. Ou, pelo menos, de ter tornado a tímida demanda em um mercado próximo ao que conhecemos hoje. Rafael é dentista e já desenvolvia alguns caps antes da parceria com o amigo – cada nova joia que criava rendia uma nova leva de indicações. Enquanto se especializava em ortodontia, Felipe morava na Flórida, onde teve seus primeiros contatos com a tendência dos grills.
Quando os amigos de infância se reencontraram em São Paulo, em 2016, decidiram montar uma clínica juntos. “O pessoal vinha procurar o Rafa e começamos a enxergar um nicho de mercado”, relembra Fernando. “A gente começou a buscar mais referências lá fora, até com essa vivência que eu tive, vendo muita gente usar e sabendo o que era a cultura das peças maiores, os grills. Somamos conhecimentos: ele com a odontologia e eu com branding e marketing, para procurar artistas e impulsionar o mercado.”
A$AP Rocky.Foto: Getty Images
Já a Horus Joalheria, que atende em Espírito Santo, Minas Gerais, Rio de Janeiro e São Paulo, apareceu mais tarde, em 2018, com uma estrutura ramificada. “A investida surgiu do meu interesse em moda e joalheria em geral e da conexão com a veia odontológica da minha família”, diz o designer Eduardo Corrêa (24). “Estava com meu primo e a gente começou a olhar os grills. Foi quando percebi que era exatamente o que meu pai fazia, mas ele fazia em porcelana. Na mesma hora, mandei mensagem para ele dizendo: ‘qualé, coroa, vamo fazer um dinheiro?'”, relembra.
Em 2019, a Horus começou a entregar suas primeiras peças. A busca por parceiros, no entanto, não foi fácil. “Aprendi que, na verdade, o dentista aplica as lentes, mas quem produz é um protético”, conta Eduardo. “Mandei mensagem para vários protéticos, mas a maioria não quis nem saber. Na odontologia, os profissionais têm um certo desdém pelas jóias bucais, porque, na visão deles, as pessoas colocam dentes de ouro quando o dente está podre. Logo, estar com um dente de ouro significa que você teve um dente podre e está solucionando isso. Demorei até achar alguém que topasse.”
“Começamos com meu pai fazendo o processo de moldagem”, continua o designer capixaba. “Aprendi é que você precisa saber moldar bem, pois, apesar de não ser uma coisa muito complexa, é fundamental para que joia que se adapte. A maior dificuldade dos grills é a questão da adaptação, porque requer um encaixe milimétrico, que fica preso só com a anatomia do seu dente. Por outro lado, estamos falando de fundição e resfriamento de metal: é o contraponto de uma coisa muito sensível e um processo de fabricação muito bruto.”
Sorriso sob medida
A elaboração de uma joia bucal clássica envolve entre três e quatro profissionais: dentistas para fazer o molde, a equipe do laboratório de fundição de metais para confecção da jóia e ourives para finalização. “O processo começa com uma referência, como se fosse uma tatuagem”, diz Fernando. “Geralmente, o cliente já vem com uma ideia, muitas vezes até dentro dos nossos modelos. O primeiro procedimento é com o Rafa, para fazer a moldagem — se é a opção móvel, a gente faz o molde em gesso e vai fazer a jóia. Se é um fixo, o Rafa faz um preparo e depois a moldagem.”
“O preparo é como se fosse um desgaste no dente, um aplanamento e inserção de um trilho que cerca o dente e a gengiva, para o encaixe do cap”, explica Rafael. Parece invasivo, mas não é: trata-se de um desgaste sutil, de no máximo 0,2 milímetros de espessura. Além disso, o procedimento é um consenso entre os três odontologistas ouvidos pela reportagem. Isso porque é preciso que a joia tenha o encaixe perfeito para não ter acúmulo de restos de alimentos entre o acessório e o dente.
Rihanna.Foto: Getty Images
Caso o desgaste do dente não seja feito, o cliente pode desenvolver problemas periodontais, seja de inflamação gengival ou, a longo prazo, uma cárie infiltrada dentro da jóia. É bom lembrar que as jóias fixas são reversíveis se bem aplicadas. Neste caso, Rafael recomenda um processo estético odontológico depois da retirada para manter o dente natural em perfeita aparência.
“A partir do molde em gesso, é feita a escultura em cera da joia encomendada pela pessoa. Essa escultura vai para fundição no metal escolhido — ouro, prata ou níquel”, completa Fernando. “Esse é o processo de uma joia mesmo, só que integramos isso à anatomia da pessoa.”
A Horus segue o mesmo curso clássico de confecção, mas com um trunfo: o design em 3D. Assim, o cliente pode ver a joia final antes dela ser feita. Foi através de uma escuta atenta do seu público que Eduardo entendeu a necessidade de construir uma relação mais participativa. “A nossa matriz de produção é em São Paulo, então a gente escaneia o modelo de gesso para criar a escultura em 3D”, explica. “Primeiro, fazemos o design no computador e enviamos para o cliente ver, girar, entender como a peça vai ficar. Depois, a levamos para impressão 3D e o cliente pode ver como vai ser a joia final, porém em resina. Com a resina pronta e aprovada, é só levar para o forno.”
“Como é o sorriso para as pessoas pretas? Como é a saúde bucal para as pessoas pretas? O que vale o sorriso de uma pessoa preta na sociedade?”, Guilherme Blum
A inserção do design em 3D na cadeia de produção foi decisiva para que a Horus pudesse apresentar modelos mais criativos. Ainda que a maioria dos consumidores busque jóias dentro das opções já disponíveis, artistas têm apreciado a exclusividade. “Estou desenvolvendo um projeto para o Yunk Vino no qual a cravação da joia é totalmente diferente: é uma mistura de pedra branca com pedra vermelha, vai ter uma gotinha de rubi. Isso exige um contato mais próximo”, explica Eduardo. “Outro exemplo muito genial é a jóia da Urias, para o clipe de Racha, ela ia fazer o dente com patinhas de aranha saindo da boca. Infelizmente não rolou por questão de tempo, mas ainda tenho o projeto aqui e estou ansioso para a gente finalizar!”
No geral, um cap varia entre 300 e 700 reais. Já os grills são disponíveis a partir de 1.200 reais. Enquanto na Elements o modelo mais popular é o grills Honey Drip, na Horus o cap em peça dupla, canino e lateral, é o que mais se consome. Segundo a Elements, os metais mais queridinhos do Brasil são prata banhada a ouro e prata banhada a ouro rosé.
A bucalidade negra
“Como é o sorriso para as pessoas pretas? Como é a saúde bucal para as pessoas pretas? O que vale o sorriso de uma pessoa preta na sociedade?”, dispara Guilherme Blum, de 29 anos. O odontologista carioca trabalhou por quatro anos com políticas públicas na Coordenadoria da Saúde da Família, à frente de 28 Clínicas da Saúde da Família. “Como cada clínica atende a população de uma região específica, pude ver como cada lugar se comporta de forma única”, relembra. “Encontrei pessoas, necessidades e formas de se comunicar opostas em bairros vizinhos.”
Sua grande virada profissional de pensamento, contudo, aconteceu quando foi convidado para dar uma palestra em um Congresso de Medicina de Saúde da Família. “Fui chamada para falar sobre a minha perspectiva como dentista preto a respeito da saúde bucal”, conta. “Comecei a fazer a pesquisa e me perguntar: qual é a minha perspectiva como dentista preto? Foi quando encontrei o Carlos Botazzo [autor do texto “Sobre a bucalidade: notas para a pesquisa e contribuição ao debate”]. Quando ele falou da subjetividade da boca, do sorriso, além da questão da saúde, me deu um estalo: por que não estamos pensando em como é a bucalidade negra?”
AFARI com caps da Horus Joalheria.Foto: @daklysdk
Se bucalidade envolve a construção social, histórica, simbólica e política da boca, a da população negra demanda uma análise mais profunda, considerando que a qualidade dos dentes era uma das principais formas de precificação de pessoas negras escravizadas e até o atual medo de dentistas, devido ao racismo na odontologia. Para Guilherme, grills são uma forma de bucalidade preta no sentido do desejo de mostrar-se poderoso, empoderado, com dinheiro e acesso.
“O cirurgião dentista precisa entender a importância cultural desse acessório”, declara Victor Hugo Daniel de Paula, de 31 anos, idealizador da Ayo Odontologia, uma clínica no Rio de Janeiro formada exclusivamente por dentistas negros. “Não via as pessoas chegarem com esta jóia nas clínicas em que eu trabalhei e terem alguma informação que não seja sobre a remoção do acessório. Ainda falta muito para que essa consulta seja favorável para quem usa o acessório, direcionada para que a pessoa entenda quais são os cuidados importantes. O profissional precisa ter a noção que ele só está lá para dar o suporte técnico da pessoa, não para julgar ou apavorar.”
Segundo Victor Hugo, o ouro é um dos materiais que mais tendem a se aproximar da estrutura dentária — bem mais do que uma resina, por exemplo. Só não é muito utilizado pelo fator estético. O cirurgião dentista fundou a Ayo Odontologia depois de passar por um episódio de racismo na clínica em que trabalhava e, hoje, se concentra na valorização cultural e saúde bucal negra.
“O que aconteceu comigo não deveria acontecer com ninguém, mas fez eu olhar para a minha profissão de outra forma”, desabafa. “Comecei a entender que tem muitos clientes que são traumatizados por serem maltratados por profissionais que não respeitam questões culturais, especialmente com pessoas pretas e LGBTs. Atendemos muitas pessoas trans na Ayo, e são pessoas que não se sentem confortáveis nas clínicas tradicionais. Tem gente que senta na nossa frente e começa a chorar.”
Grillz, Elements Joia Bucal.Foto: Divulgação
Sobre os cuidados com as joias bucais, Victor Huga recomenda a adoção de peças removíveis, considerando um uso máximo de quatro horas por dia. Passando disso, pode haver o deslocamento da articulação temporomandibular, principal conexão entre crânio e mandíbula, dependendo da espessura do grills.
Segundo ele, o ideal é fazer uma avaliação profissional antes de colocar a joia e durante o uso. É importante observar se há movimentação do dente, se precisa de ajuste no acessório. “Não para tirar o lugar de quem fabrica a jóia, mas porque este espaço de cuidado é responsabilidade do cirurgião dentista”, adverte. “É de extrema importância que a pessoa vá ao dentista fazer limpeza, remoção de tártaro e acompanhamento radiográfico, para acompanhar a face dentária que a gente não consegue enxergar, além de conferir se há alguma cárie. Se diagnosticado no tempo certo, a gente pode cuidar.”
Em 2021, a Horus Joalheria começou uma parceria com a Ayo Odontologia e, em breve, os dentistas envolvidos na clínica farão o atendimento, moldagem e entrega dos caps e grills do designer capixaba para os clientes do Rio de Janeiro. “Percebo que o preconceito de alguns dentistas afasta as pessoas desses acessórios ou afasta as pessoas que usam os acessórios da consulta. Acredito que estas coisas podem ser comuns”, diz Victor Hugo, em construção de um espaço em que moda, cultura, subjetividade e saúde conversem em harmonia.
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