O que as marcas de moda estão fazendo para combater o trabalho escravo?

28 de janeiro é o Dia Nacional de Combate ao Trabalho Escravo e, na ocasião, investigamos como o setor de moda tem enfrentado a violação que ainda persiste em sua cadeia produtiva. 


Ilustração sobre o trabalho escravo na moda.



Em 2014, quatro imigrantes bolivianos foram resgatados de condições análogas à escravidão, enquanto produziam roupas para a M5 Indústria e Comércio, a dona da M. Officer, que só anos depois foi condenada pelo crime.

A marca faz parte de uma lista de empresas do setor têxtil e de vestuário que foram flagradas, auditadas e/ou denunciadas por conta de trabalho escravo e análogo à escravidão, que, infelizmente, cresce anualmente no Brasil

Para se ter uma noção, o país catalogou 3.422 denúncias de trabalhos escravo e análogo à escravidão em 2023, segundo o Ministério dos Direitos Humanos. Isso representa um aumento de 61%, se comparado ao número de 2022.

Para Marina Ferro, diretora do Instituto Pacto Nacional pela Erradicação do Trabalho Escravo (InPacto), a pressão da sociedade por meio de denúncias é a principal responsável no crescimento do indicador. Ela também cita o avanço das legislações e modelos de fiscalização no país, como o Grupo Móvel, que é um exemplo internacional de atuação e que suscita muitas empresas a mudarem.

O trabalho escravo está relacionado ao efeito da imigração e da desigualdade de gênero” — Marina Ferro, diretora do Instituto Pacto Nacional pela Erradicação do Trabalho Escravo (InPacto)

Marina alerta, porém, que o fato do setor ser baseado principalmente num modelo de negócio em grande escala e pulverizado segue facilitando a existência de casos de trabalho escravo. Ela ressalta ainda que o fato de muitos dos resgatados serem imigrantes, mulheres e mães não se trata de mera coincidência. “O trabalho escravo está relacionado ao efeito da imigração e da desigualdade de gênero”, diz.

Outro fator que pode vulnerabilizar os direitos dos trabalhadores é a prática de compra. Isabella Luglio, coordenadora do Índice de Transparência da Moda Brasil (ITMB) destaca que na última edição deste relatório, essa é uma das sessões com menos transparência por parte das marcas. “Relações de poder desiguais entre fornecedores e os trabalhadores dos fornecedores acabam perpetuando muitas práticas injustas”, ela afirma. 

De acordo com a coordenadora, isso acontece porque a empresa é responsável pela negociação de preços, prazos de pagamento, cronogramas e quantidades. “Uma mudança repentina no volume de pedidos pode fazer com que o fornecedor tenha que recorrer a um subcontratado, e isso pode gerar um impacto também de horas extras excessivas”, ela cita um exemplo. 

Esforços do setor no combate ao trabalho escravo

Há alguns anos, pode-se dizer que empresas e entidades têm olhado com mais seriedade para o enfrentamento do trabalho escravo na cadeia produtiva da moda, criando importantes ferramentas. 

Um exemplo disso é o Programa da ABVTEX (Associação Brasileira do Varejo Têxtil), que consiste na “realização de auditorias nos fornecedores e subcontratados dos varejistas para verificar a não utilização de mão de obra análoga ao de escravos, infantil e de estrangeiro irregular, além de aspectos de segurança do trabalho e cumprimento da legislação trabalhista e ambiental”, como descreve o próprio diretor executivo da entidade, Edmundo Lima. 

Por conta da alta informalidade presente no setor da moda – são 8 milhões de informais, segundo a Associação Brasileira da Indústria Têxtil e de Confecção -, Edmundo defende que é importante que empresas, independente do porte, mas, principalmente, as grandes varejistas, monitorem suas cadeias produtivas. Em números, o Programa já realizou mais de 50 mil auditorias desde a sua criação, em 2010, impactando aproximadamente 400 mil trabalhadores, em 18 estados diferentes.

“O primeiro desafio é fazer com que as áreas entendam a relevância de adotarmos essas práticas, já que para a evolução do projeto é necessário que todos abracem esse compromisso” – Renato Martins, gerente de Projetos ESG e de Comunicação do Grupo Malwee. 

O Grupo Malwee (Malwee, Malwee Kids, Enfim, Basicamente e basico.com) é signatário do Programa ABVTEX. O Gerente de Projetos ESG e de Comunicação da companhia, Renato Martins, explica que, desde 2015, ações como essas, claras e públicas de monitoramento, além de programas de adequação para promover um ambiente de trabalho saudável e justo, são recorrentes no Grupo. Segundo ele, processos como esses exigem comprometimento e dedicação. “O primeiro desafio é fazer com que as áreas entendam a relevância de adotarmos essas práticas, já que para a evolução do projeto é necessário que todos abracem esse compromisso”, ele afirma. 

Para isso, na companhia, existem Comitês de Apoio responsáveis por diferentes áreas da empresa. “O Comitê de Fornecedores, por exemplo, define estratégias para garantir a execução dos planos estratégicos, táticos e operacionais relacionados aos fornecedores no Plano ESG 2030 e analisa riscos relacionados à violação dos direitos humanos e trabalhistas e de questões ambientais”, diz. 

Entre as metas das varejistas alinhadas com o Plano ESG 2030 está a garantia de 100% de rastreabilidade e transparência das condições de direitos humanos na cadeia, manter todos os fornecedores na categoria de excelência em direitos humanos até 2030 e conferir tolerância zero para violações. “Neste último, 91% dos nossos subcontratados e private label [marcas próprias] nacionais foram auditados”, afirma o gerente.

Renato acredita também que ser sustentável sozinho não é o suficiente e, por isso, tem como propósito inspirar a mudança ao redor. Para ele, o grande desafio consiste em atrelar essas práticas ao compliance e dar transparência para essas ações. “Nosso objetivo é mostrar como criar uma moda ética e sustentável benéfica para o planeta e para as pessoas.” 

Compliance e devida diligência

Marcas e varejistas também têm adotado processos de compliance e devida diligência como forma de ir além, entendendo que as auditorias e certificações são etapas importantes,  mas complementares. “A auditoria é um retrato daquele momento. Já a devida diligência tem um aspecto muito mais amplo, porque ela é constante e deve ser sempre revisitada. Trata-se de um processo cíclico, constante, de você olhar as etapas de prevenção, mitigação e reparação em todas as áreas”, afirma Marina. 

Isabella, por sua vez, dá um exemplo prático para o termo: “se uma empresa vai trabalhar com um fornecedor que ela sabe estar em uma região onde tem uma fraca inspeção de um órgão, então ela sabe que vai ter que tomar as medidas mais rigorosas ali”. Isso é um benefício para a própria empresa, antecipando riscos antes mesmo de começar a produção.

Já o compliance, que em tradução livre significa conformidade, engloba a devida diligência e está, muitas vezes, acoplado às áreas jurídicas das empresas. Isabella afirma que tudo isso deve ser realizado com a participação e escuta ativa dos trabalhadores, produtores, sindicatos e outras partes impactadas. 

Ao analisar os dados do ITMB 2023, a coordenadora ressalta que a quantidade de marcas abrindo as suas políticas para os seus fornecedores aumentou. No entanto, quando investigada a transparência com relação às práticas em si, observa-se uma diminuição da divulgação de informações públicas. 55% [das marcas analisadas] divulgam uma política para a questão do trabalho escravo contemporâneo, mas apenas 27% falam como fazem esse processo de devida diligência. “Ou seja, você tem a política, mas como ela atua e quais são os riscos reais?”, questiona Isabella. 

“No mercado do futuro, eu acho que é essa a tendência. Cada vez mais você sofrerá boicote se você não souber a origem do seu produto” – Marina Ferro, diretora do Instituto Pacto Nacional pela Erradicação do Trabalho Escravo (InPacto).

Isso significa que, às vezes, até existe um código de ética que menciona direitos humanos, mas ele não está vinculado aos outros departamentos. “Você pode ter alguém de compras fazendo uma negociação e o pessoal da sustentabilidade tentando aprovar uma outra política, e o processo interno não fazer jus à abrangência necessária”, explica Marina, se referindo a dificuldade de algumas empresas implementarem melhores práticas de forma generalizada e consistente.

Por essa razão, a diretora diz que as marcas não devem se limitar às políticas com seus fornecedores diretos, de primeiro nível, e reforça o papel que elas devem ter como vetores de transformações. “As grandes empresas, as grandes marcas, têm o poder econômico para conseguir gerar mudanças na cadeia. No mercado do futuro, eu acho que é essa a tendência. Cada vez mais você sofrerá boicote se você não souber a origem do seu produto”, ela finaliza. 

Lembrando que você pode denunciar o trabalho análogo ao escravo no Sistema Ipê, por meio de um formulário anônimo. É possível também denunciar por meio do aplicativo Pardal, do MPT; no Disque 100; e no aplicativo Direitos Humanos BR. É importante inserir o máximo de informações possíveis, como local, descrição do espaço e número estimado de trabalhadores. Dessa forma, aumentam-se as chances da denúncia ser fiscalizada com rigor e precisão. 

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