A escravidão contemporânea ainda está na moda

Mais um Dia Nacional de Combate ao Trabalho Análogo ao Escravo se passou. Conversamos com quem luta diretamente contra a violação de direitos para descobrir o que avançou e o que permanece na cadeia produtiva do vestuário.


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Ilustração: Gustavo Balducci



Há poucos meses, a emissora britânica Channel 4 investigou fábricas fornecedoras da varejista chinesa Shein. A apuração virou documentário e um dos pontos centrais eram as jornadas de trabalho de funcionários terceirizados que configuravam escravidão contemporânea. Mas não precisamos ir tão longe para descobrir que essa realidade existe bem mais perto, no Brasil e na indústria da moda local.

Para o Dia Nacional de Combate ao Trabalho Análogo ao Escravo, o Ministério Público do Trabalho (MPT) divulgou que 2.575 pessoas foram resgatadas dessa condição em 2022. Desse número, 92% são homens do meio rural. O número, contudo, pode estar subnotificado. 

Quem avalia é de Lys Sobral, procuradora e coordenadora da Coordenadoria Nacional de Erradicação do Trabalho Escravo (Conaete), braço do MPT. “Existe uma provável invisibilidade do trabalho escravo contemporâneo de mulheres. Ao longo desses anos, elas terem sido menos de 10% dos resgatados não significa a não exploração, mas sim que algumas formas (de violação) estão passando. Entre as apostas, a cadeia da moda é uma delas”, explica.

O crime é explorar a situação de necessidade.” – Lys Sobral, procuradora e coordenadora da Coordenadoria Nacional de Erradicação do Trabalho Escravo (Conaete).

A subnotificação do meio urbano pode ter relação com a incidência das fiscalizações, que são majoritariamente realizadas no âmbito rural. É um comportamento histórico do combate à escravidão contemporânea no país, que foi um dos primeiros a reconhecer o problema frente às Nações Unidas, em 1995. Naquele mesmo ano, também houve a criação do Grupo Especial de Fiscalização Móvel, um dos recursos que torna o Brasil referência internacional no assunto. 

Atualmente, a lei brasileira configura um trabalho como análogo à escravidão quando envolve um ou mais de quatro fatores: trabalho forçado, servidão por dívida, condições degradantes e jornada exuastiva. Segundo Lys, ainda é possível enquadrar o tráfico de pessoas e a exploração sexual no conceito de escravidão contemporânea.

O perfil das pessoas resgatadas também tem alguns denominadores comuns. Em geral, são aquelas em situação de vulnerabilidade socioeconômica. “É disso que a exploração vive. O crime é explorar a situação de necessidade”, avalia a procuradora. No caso da moda, que concentra mais incidências da violação em centros urbanos, o perfil não é diferente. Frequentemente são trabalhadores e trabalhadoras migrantes ou imigrantes. Como explicação, Lys cita a concentração de terras no Brasil e na América Latina, a ausência de reforma agrária e uma dificuldade nas políticas públicas em garantir aos povos originários e comunidades tradicionais a sua terra. Desgarradas delas, essas pessoas se tornam mais suscetíveis a migrações e a aceitarem qualquer forma de trabalho que aparecer.

A cadeia produtiva da moda

Mesmo que o perfil dos trabalhadores seja semelhante, as cadeias produtivas nas quais eles estão inseridos pode variar substancialmente. Um cafezal é diferente de uma oficina de costura num centro metropolitano.. “No meio urbano, a pulverização é maior”, diz Lys. “Na mesma medida em que se terceiriza, se pulveriza, e muitas empresas acabam adotando a terceirização como fuga da responsabilidade”. Como se sabe, é um modelo de trabalho e de negócio bastante comum na moda.

Patricia Lima, consultora e presidente do Instituto Trabalho Decente, explica que a prática da terceirização cria  possibilidades e facilita as violações trabalhistas. A reforma trabalhista, aprovada no Governo Temer em 2017, é um exemplo. “É sempre preocupante pensar que, para o desenvolvimento econômico de um país, você tenha que fragilizar os direitos trabalhistas. É contraditório pensar em um desenvolvimento no qual as pessoas não são o foco”, questiona. 

A terceirização esbarra ainda na dificuldade de rastrear todas as etapas da produção. Algumas marcas têm avançado nesse quesito, com ajuda de tecnologias como blockchain ou concentrando as etapas iniciais de manufatura em fábricas próprias. Contudo, Lys destaca que rastrear, prevenir e combater o trabalho análogo ao escravo em uma cadeia com tanta informalidade como a da moda exige outras formas de regulamentação. “É prerrequisito da situação análoga à escravidão que haja vínculo de emprego. Quando flagramos, precisamos encontrar o responsável. Quando não achamos, não conseguimos fazer o resgate”, explica ela.

“O combate à escravidão contemporânea é invisibilizado, pois toca na ferida do que faz a concentração de renda ser possível.” – Luana Genót, executiva e fundadora do Instituto Identidades do Brasil (ID_BR).

Tal informalidade atinge principalmente as mulheres. Elas são mais de 60% da força de trabalho da moda. Para Patrícia, é importante incluí-las no debate, com um recorte específico de gênero e raça. “A situação da mulher envolve responsabilidades familiares, e elas ganham menos do pouco que é pago para quem não precisa se comprometer algumas horas do dia aos afazeres domésticos”, afirma a diretora. Ela também aponta o risco do trabalho infantil. Muitas vezes, a mãe trabalhadora não tem outra opção senão levar as crianças para as oficinas de costuras, onde ficam por horas.

A falta de transparência é outro sintoma do descontrole da cadeia produtiva da moda. No Brasil, o Índice de Transparência da Moda 2022 avalia como 60 grandes marcas e varejistas divulgam suas práticas ambientais e trabalhistas. Isabella Luglio, coordenadora da pesquisa, afirma que os resultados são preocupantes: “52% das marcas (analisadas) dizem ter uma política relacionada ao (combate de) trabalho forçado, mas quando olhamos para como isso é colocado em prática, como você faz essa política acontecer, o número cai para 20%”.

Panorama global

A cada 150 pessoas, pelo menos uma vive em situação de escravidão moderna. Essa é uma estimativa da Organização Internacional do Trabalho que aumenta a cada ano: em 2022, dez milhões de pessoas a mais estavam em situação de escravidão contemporanea, em comparação com as estimativas de 2016. 

O setor de moda global faz parte do problema. Delphine Williot, gerente de políticas e campanhas do Fashion Revolution, maior movimento de moda ativista do mundo, explica que “como as marcas não têm visibilidade de toda a sua cadeia de suprimentos e dependem de fornecedores e subcontratados, isso promove uma corrida incessante, onde as más condições de trabalho podem prosperar”. Ela sinaliza como a maioria dos trabalhadores têxteis e de vestuário, em todo o mundo, ganham salários baixos e estão em condições de pobreza. Diferentemente do Brasil, muitos países não têm um salário mínimo garantido por lei. 

Entre as diferenças de cadeias produtivas, “no Brasil, vemos que grande parte dos casos estão ligados a fornecedores diretos, subcontratados na etapa da costura. Já (em outros países), observamos casos mais no início do processo de produção”. Um exemplo é a Índia, maior produtor de algodão do mundo e que concentra a maior parte de seus trabalhadores no meio rural, mas com altos índices de trabalho análogo ao escravo, de acordo com a Global Modern Slavery.

“Precisamos garantir que os compromissos e ações sobre salários dignos não sejam apenas voluntários, mas uma exigência legal. Isso também significa proibir práticas comerciais desleais em que fornecedores são pressionados a operar com o menor custo.” – Delphine Williot, gerente de políticas e campanhas do Fashion Revolution.

Essa é uma das razões da Delphine defender o “living wage” para todos os elos da cadeia. Conhecido como salário digno para viver, trata-se de um salário que leva em conta múltiplos fatores para uma condição plena de vida: acesso a moradia segura, alimentação saudável, educação de qualidade, transporte, lazer e cultura. Segundo a gerente de campanhas, a aplicação do living wage permite resguardar os trabalhadores de condições degradantes de trabalho, uma vez que mitiga a vulnerabilidade socioeconômica.   

Outra diferença está na sindicalização trabalhista. Em território nacional, a prática é resguardada por leis. Porém, em outros países produtores e exportadores de vestuário, a realidade é outra. Um relatório de 2022 da Business & Human Rights Resource Centre, entrevistou mais de 150 líderes e ativistas sindicais em Bangladesh, Camboja, Índia, Indonésia e Sri Lanka. Dois terços dos entrevistados relataram que a liberdade da associação e negociação coletiva piorou desde a pandemia. Quase metade deles aponta um aumento de discriminação, ameaças e assédio por conta do sindicalismo. 

A responsabilidade de garantir um trabalho digno é coletiva e global, mas o tema ainda é sub-debatido internacionalmente, avalia Luana Genót. A executiva e fundadora do Instituto Identidades do Brasil (ID_BR) participou do mais recente Fórum Econômico Mundial em Davos, e acredita que o combate à escravidão contemporânea é invisibilizado. “Toca na ferida do que faz a concentração de renda ser possível”, afirma. Ela defende a necessidade de discussões sobre taxação de grandes fortunas e distribuição de riquezas, justamente para propiciar condições dignas de vida que não coloquem as pessoas em vulnerabilidade socioeconômica, em especial aquelas já historicamente exploradas. 

Caminhos de mudança

Luana acredita que uma das medidas para promover o trabalho decente é pensar em ações afirmativas para os grupos mais vulnerabilizados, como mulheres, pessoas racializadas e imigrantes. “É questão de ter pessoas negras e indígenas em cargos de liderança, e não só como fornecedoras e em trabalhos precarizados”, argumenta. 

A garantia dessa representação pode fortalecer outros elos da cadeia de enfrentamento. Isabella reforça que “é necessário que os grupos (afetados pela escravidão contemporânea) estejam envolvidos nas estratégias (de combate), e que isso não seja pensado só nos escritórios das marcas. Deve haver participação do trabalhador, do sindicato, das mulheres.”

Algo que precisa mudar, continua a coordenadora, é o comprometimento das marcas com a devida diligência. Em síntese, é sobre ter um processo de diagnóstico preliminar de riscos nos negócios. “Poucas têm isso, que é mapear esses riscos antes deles acontecerem, antes mesmo da auditoria. Por exemplo, se você vai abrir uma fábrica em determinada região, ali existe alta taxa de evasão escolar? Se sim, pode ter um risco de trabalho infantil”, explica ela. 

“Embora a mídia social desempenhe um papel relevante, ao destacar as questões da indústria da moda, ainda temos um longo caminho a percorrer para garantir melhores condições de trabalho para mulheres trabalhadoras do setor em todo o mundo” – Delphine Williot.

Patrícia tem um ponto de vista semelhante. “Se algum ator dessa cadeia produtiva está se beneficiando (do trabalho forçado), ele não está sendo diligente em fiscalizar sua cadeia para assegurar-se de que não está se valendo de alguma forma”. Tal compromisso, diz a diretora, exige responsabilidade e recursos das empresas, mas também engajamento e enfrentamento coletivo da sociedade, ainda mais quando falamos de um país de origem escravocrata como o Brasil.

Na esteira do mapeamento de riscos a nível internacional, Delphine conta que a União Europeia está elaborando uma Diretiva de Due Diligence de Sustentabilidade Corporativa, mas que muitas marcas de moda podem ficar de fora da lei por não se encaixarem em algumas das diretrizes. Como resposta, o Fashion Revolution e outras organizações criaram a campanha Good Clothes Fair Pay, para exigir o living wage a uma prática de due diligence realmente efetiva. “Precisamos garantir que os compromissos e ações sobre salários dignos não sejam apenas voluntários, mas uma exigência legal para toda a indústria. Isso também significa proibir práticas comerciais desleais em que fornecedores são pressionados por marcas a operar com o menor custo sob o risco de perder negócios para seus concorrentes”, argumenta a gerente.

Levar em conta as intersecções entre gênero, classe, raça e clima é crucial, na visão de Delphine, para garantir que a escravidão contemporânea seja realmente cessada na indústria do vestuário. “Embora a mídia social desempenhe um papel relevante, ao destacar as questões da indústria da moda, ainda temos um longo caminho a percorrer para garantir melhores condições de trabalho para mulheres trabalhadoras do setor em todo o mundo”, finaliza. 

Saiba como denunciar o trabalho análogo ao escravo no Brasil

Você pode denunciar o trabalho análogo ao escravo no Sistema Ipê, por meio de um formulário anônimo. Ainda, é possível denunciar por meio do aplicativo Pardal, do MPT; do Disque 100; e do aplicativo Direitos Humanos BR. É importante inserir o máximo de informações possíveis, como local, descrição do espaço e número estimado de trabalhadores. Dessa forma, aumentam-se as chances da denúncia ser fiscalizada com rigor e precisão. 

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