O que a moda tem a ver com o movimento #StopAsianHate?
O continente asiático é tão grande quanto diverso, mas sua presença na moda ainda é marcada por estereótipos. Nesta reportagem, te convidamos a ampliar o olhar sobre a luta contra a discriminação e a conhecer estilistas, criadores de conteúdo e designers asiáticos.
Recentemente, um atentado em Atlanta, nos Estados Unidos, despertou a atenção sobre a discriminação sofrida por pessoas asiáticas ou de descendencia asiática. Na ocasião, um homem branco invadiu três casas de massagem da cidade e atirou em pessoas amarelas. Oito morreram, seis eram mulheres. O crime deu mais força aos protestos da organização Stop AAPI Hate, comumente referenciado nas mídias sociais com a hashtag #StopAsianHate.
Segundo a organização, foram registradas 3.795 denúncias pelo seu centro de ouvidoria entre 19 de março de 2020 e 28 de fevereiro de 2021. O número, no entanto, pode estar subnotificado. Destes casos, 68% são contra mulheres, a maioria delas chinesas (42,2%), seguidas das coreanas (14,8%).
O movimento não é novo, mas crimes recentes, como o de Atlanta, reforçam a necessidade de debater raça e a presença de pessoas asiáticas na moda (assunto que está longe de se esgotar com uma só matéria). Afinal, o continente detém 75% de toda a classe trabalhadora da indústria (80% composta de mulheres) e exporta 70% do vestuário global. Em termos de consumo, a região movimenta milhões. Só a China, por exemplo, foi responsável por 38% do crescimento global da moda em todos os segmentos – e 70% quando falamos só do mercado de luxo. Para além do economês, são de lá alguns dos designers mais criativos, revolucionários e influentes das últimas décadas.
Protestos do #StopAsianHate em Detroit (EUA).Foto: SETH HERALD/AFP via Getty Images
Ainda assim, a imagem vendida e consumida da Ásia e suas várias culturas segue pasteurizada, carregada de estereótipos e preconceitos reforçados durante a pandemia do novo coronavírus. Caroline Ricca Lee, artista transdisciplinar, ativista e pesquisadore no Núcleo de Estudos sobre Marcadores Sociais da Diferença (Numas/USP), relata que recebe ”mensagens de pessoas asiático-brasileiras que sofreram situações de injúria racial e/ou agressão física” desde o início da crise sanitária no Brasil. ”Essa situação é consequência da nomeação de um ‘vírus chinês’, termo preconceituoso, difundido como estratégia política, mas que acabou revelando um imaginário discriminatório enraizado em nossa cultura e sociedade. No final, a discriminação contra amarelos e o sentimento antiasiático não é algo que se inicia com a Covid-19.”
Os EUA podem ser o epicentro midiático do assunto, mas não é, de modo algum, o único lugar em que a hashtag #StopAsianHate se aplica. De acordo com Ricca Lee, ”o momento é crucial para avaliarmos como a cultura pop, a arte e a moda produzem imaginários de pessoas asiáticas como meros objetos à disposição dos prazeres alheios, reproduzindo dominação e violência. Essa é a maneira que, infelizmente, olhamos para essas pessoas há muito tempo”. A artista fundou em 2016 a Lótus Feminismo, a primeira coletiva feminista na luta por equidade de gênero que busca dar visibilidade às narrativas asiático-brasileiras.
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O que vem na sua mente quando você pensa na Ásia?
O continente asiático é o maior do mundo, concentra metade da população mundial e agrupa 50 países. Muitas vezes é visto de forma homogênea, mas falar de Ásia é falar de diversidade – seja ela social, religiosa, econômica, artística, tecnológica e cultural – de diversos grupos étnicos. ”O termo ‘asiático’ seria uma definição étnica para qualquer pessoa que seja nacional ou tenha ascendência de algum desses países”, explica Ricca Lee. “Por isso, o termo não se refere exclusivamente às vivências da raça amarela (como japoneses, chineses e coreanos), mas também de pessoas marrons (tais como indianos, iranianos e libaneses).”
Os estereótipos podem percorrer toda a indústria criativa, do cinema até a música, mas aqui daremos destaque para a moda. ”Existe tanto preconceito que motiva ódio e nojo, como também a ideia de ‘minoria modelo’. É uma dinâmica esquisita, de ser um exemplo, um molde, mas ser também o outro, o exótico, para ser então desprezado. Na moda, isso não é muito diferente”, diz Gil Tokio, ilustrador e professor de desenho no Instituto Europeo di Design de São Paulo (IED-SP). Brasilerio descendente de japoneses, seu pai veio para o Brasil durante o alto fluxo imigratório em meados de 1950.
Ilustração: Gil Tokio/Estúdio Pingado
O professor elenca dois estereótipos mais comuns relacionados à produção de moda asiática. Um deles é o de associar tudo de origem asiática (às vezes, especificamente chinesa) a produtos baratos ou de má qualidade. Como o maior continente do globo, a Ásia concentra de tudo um pouco. De peças com menor qualidade de acabamento e tecido até uma tecnologia avançada, fibras com menores impactos ambientais e qualidade impecável. O continente não é homogêneo, então por que a produção seria?
O outro é sobre a cadeia produtiva. Não é incomum ouvirmos que ‘só tem trabalho escravo na China’. Mas, é impossível fazer tal afirmação. ”Isso acontece muito no país, mas também em São Paulo, e não fazemos essa associação”, pontua Miwa Kashiwagi, criadora de conteúdo sobre cultura, sociedade e política. Ela cita como exemplo o boom da varejista chinesa Shein, que dominou os vídeos de recebidos de blogueiras e registra lucros bilionários. ”É realmente uma marca suspeita, mas as pessoas começaram a falar muito do ‘trabalho escravo da Shein’. Nunca tinha visto esse levante antes. As pessoas acham muito mais fácil que haja trabalho escravo numa marca chinesa do que em outras.”
A exploração do trabalho, assim como outras mazelas ambientais e sociais, percorre toda a indústria da moda e deve ser criticada e combatida. Porém, fazer essa análise com uma lente carregada de preconceito não ajuda muito a superar tudo isso. Para Gil, precisamos falar sobre o assunto a partir de uma perspectiva não-discriminatória. ”Existem centenas de pessoas, fábricas e marcas trabalhando, inclusive de alto padrão. Então não dá para generalizar dessa forma.”
”A mesma atenção que você dá para o k-pop como vertente musical, para a cultura de massa japonesa, para os sete passos de beleza coreana, ou para o reality show de milionários, dê agora para a questão de violência contra as pessoas asiáticas.” – Caroline Ricca Lee
Brasileira descendente de coreanos, a maquiadora e criadora de conteúdo Kamila Hee comenta sobre os estereótipos acerca da indústria da beleza. Relembrando sua juventude, na década passada, ela compartilha como gostaria de ver mais pluralidade em campanhas, editoriais e revistas. ”Não me via representada. As poucas atrizes e cantoras que haviam eram estereotipadas”, diz. Na Coréia do Sul, o gênero musical k-pop ajudou a popularizar a cultura do país, assim como o k-beauty, popular rotina de beleza das coreanas. ”Mas não é toda coreana que gosta daquilo e é apaixonada por skin care”, fala. Para apresentar outras narrativas, ela tem um quadro intitulado #AsiaticasIncriveis no seu Instagram.
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Seu comentário se conecta ao que foi dito por Ricca Lee sobre a produção cultural em torno de pessoas asiáticas. Muitas das imagens que ganham o mundo são apenas reproduções do eurocentrismo onipresente e opressor. ”A moda utiliza as linguagens asiáticas apenas como estética, e acaba nisso”, diz Sabrina Kim, fundadora da marca Solenzara, com lojas nos bairros da República e Mooca, em São Paulo. Não faltam (maus) exemplos de editoriais e campanhas reproduzindo ideias pré-concebidas e discriminatórias sobre as culturas asiáticas. Alguns até bem recentes.
A fetichização é outro problema. ”Tem uma questão de acharem que pessoas amarelas são ‘um tipo’. Isso deriva de um pensamento e estereótipo racial que nos vê como submissas ou hiperssexualizadas”, explica Miwa, descendente de japoneses. Não é coincidência que as principais vítimas das agressões no atentado em Atlanta sejam mulheres. ”É preciso identificar como a fetichização e a hiperssexualização de mulheres asiáticas é uma herança colonial. Isso não apenas desumaniza essas identidades, como abre vias para violência sexual e agressão física contemporaneamente”, complementa Ricca Lee.
Existiria moda sem a Ásia?
Dados da Organização Internacional do Trabalho (OIT) apontam o continente asiático como o maior produtor de roupas do mundo. Existem vários fatores para explicar esse fenômeno – núcleos produtivos imensos e alta capacidade de escoamento de produtos –, mas um dos principais é o preço. Lá, empresas internacionais podem pagar menos e produzir mais. O que não signifca que alguns países, como China, não invistam, cada vez mais, em tecnologia, novas fibras e otimização industrial.
No Brasil, podemos destacar a presença dos coreanos e coreanas, especialmente em São Paulo, um dos principais pólos têxteis do país. A capital começou a recebê-los em meados de 1960. De acordo com dados de 1966 da Embaixada Coreana, das famílias coreanas que chegaram e permaneceram em São Paulo, 75% trabalhavam na indústria têxtil ou de vestuário. Muitos se instalaram nos bairros do Brás e Bom Retiro, historicamente operários e, atualmente, referências nacionais, seja para comércio, confecção ou criação.
”A moda utiliza as linguagens asiáticas apenas como estética, e acaba nisso.” – Sabrina Kim
O Brás e Bom Retiro representam boa parte da moda brasileira (hoje com uma alto contingente de trabalhadores sul-americanos), mas ainda enfrentam preconceitos e estereótipos. Em fevereiro, uma influenciadora digital viralizou ao dizer que as roupas produzidas no segundo eram feitas ”em chão sujo, com materiais de terceira”. A fala gerou mobilização nas mídias sociais, mas ”o que a influencer falou não é novo, está na cabeça de muita gente”, comenta Sabrina, filha de pais coreanos. Nos seus anos trabalhando com moda, ela diz já ter experienciado comentários semelhantes.
De Yamamoto à Minju Kim
Além de milhares de consumidoras, costureiras, modelistas e agricultoras, o continente asiático concentra renomados designer e estilistas – mas falta visibilidade. Podemos rememorar Kansai Yamamoto, que morreu em julho de 2020 e foi o primeiro estilista japonês a ganhar notoriedade fora do país. Ele antecede grandes nomes como Yohji Yamamoto, Issey Miyake e Rei Kawakubo e reforça a pluralidade do seu país natal. Além disso, o estilista indiano Manish Arora já vestiu desde a aniversariante do último domingo, Lady Gaga, até Katy Perry. Temos ainda a jovem Angel Chen, que participou do Next in Fashion, reality show da Netflix, em 2020, e Minju Kim, coreana, que participou do mesmo programa e levou o prêmio para casa.
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A marca eco friendly sul-coreana Danha, que ganhou popularidade ao vestir integrantes da banda BlackPink, também é um exemplo. Outra que vale acompanhar é a Ambush, idealizada pela coreana Yoon Ahn. Além do próprio negócio, ela é responsável pelas jóias masculinas da Dior.
Em território nacional, Jum Nakao marcou a história da moda brasileira com seu desfile A Costura do Invisível, em 2004. A coleção, inteiramente de papel, foi totalmente rasgada no final da apresentação. Atualmente, podemos citar a designer nipo-brasileira Teodora Oshima, Paula Kim, da Lapo Sports, e as irmãs Thali e Gabi, que produzem conteúdos audiovisuais no Two Lost Kids. No campo da beleza e lifestyle, você pode ver Vitor Goto e Priscila Jinn. Já na antropologia e ciências sociais, pode acompanhar a Gabriela “Kemi” Shimabuko e o coletivo feminista coreano-brasileiro Mitchossó no Instagram.
O que podemos – e devemos – fazer?
O site do AAPI tem uma sessão semelhante a uma ouvidoria, que permite reportar denúncias. Além disso, o movimento elenca como outras ações se informar e divulgar informações sobre o tema, ajudando a ampliar o debate sobre o preconceito sofrido por asiáticos; doar para que o trabalho de pesquisa e engajamento continue acontecendo; e mudar a visão acerca de tudo que circunda um continente tão plural quanto a Ásia.
Sobre isso, Ricca Lee faz um pedido às pessoas não-asiáticas: ”A mesma atenção que você dá para o k-pop como vertente musical, para a cultura de massa japonesa, para os sete passos de beleza coreana, ou para o reality show de milionários, dê agora para a questão de violência contra as pessoas asiáticas. Se eduque. Conscientize as pessoas a sua volta. E vamos juntos nessa mobilização para uma ampla e real solidariedade antirracista.”
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